Renúncia no comando de Harvard expõe divisões políticas e sociais de décadas

Claudine Gay, primeira mulher negra a presidir a instituição, foi acusada de permitir e depois não condenar protestos contra Israel considerados antissemitas, além de plágio

Universidade Harvard está no alvo de um debate nacional sobre os limites da liberdade de expressão após inúmeros casos de antissemitismo (Foto: Michael Fein/Bloomberg via Getty Images)
Por Janet Lorin
07 de Janeiro, 2024 | 08:07 AM

Bloomberg — A Universidade Harvard enfrenta uma pressão crescente para resolver um dos capítulos mais contenciosos de sua história após a remoção da presidente Claudine Gay.

A primeira líder negra da instituição renunciou na terça-feira (2) passada, após apenas seis meses no cargo. A sua ascensão histórica foi interrompida por alegações de plágio e pela indignação com sua abordagem aos casos de antissemitismo no campus na sequência do ataque de 7 de outubro do Hamas, grupo classificado como terrorista pelos Estados Unidos e pela União Europeia, a Israel.

O tumulto manchou a marca da universidade mais antiga e rica dos Estados Unidos, provocou uma revolta entre seus doadores abastados e aprofundou as divisões entre professores, estudantes e administradores.

Claudine Gay, ex-presidente (cargo equivalente no Brasil ao de reitora) da Universidade Harvard (Foto: Haiyun Jiang/Bloomberg)dfd

A Harvard Corp., a principal autoridade que governa a instituição, está pronta para realizar a busca pelo sucessor de Claudine em meio a esse cenário, com a universidade no centro de debates nacionais mais amplos sobre liberdade acadêmica, liberdade de expressão, diversidade e governança, questões que já dividem o campus há anos.

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“Deveria ser um momento para Harvard fazer um balanço, entender como chegamos a essa situação e fazer mudanças para restaurar sua reputação”, disse Steven Pinker, professor de psicologia de Harvard e autor conhecido. “Agora é o momento para Harvard traçar uma linha entre o futuro e implementar reformas em benefício dela mesma e do ensino superior em geral.”

A Harvard Corp. afirmou ter aceitado a renúncia de Gay com pesar e destacou de maneira incisiva a “raiva repugnante e, em alguns casos, racista” dirigida a ela.

O atual conselho de 11 membros, liderado pela ex-Secretária de Comércio Penny Pritzker, nomeou Alan Garber como presidente interino e anunciou o início de uma busca por um novo líder, pouco mais de um ano após a escolha de Gay, que superou outros 600 candidatos.

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A reputação da universidade sofreu quando ela demorou a condenar mais de 30 grupos estudantis que culpavam exclusivamente Israel pelo ataque do Hamas.

Em questão de dias, Larry Summers, ex-presidente de Harvard, afirmou estar “nauseado” pela falta de resposta da universidade e destacou a discrepância entre seu silêncio e os escritos impactantes de Gay sobre o assassinato de George Floyd em 2020, quando ela comandava a Faculdade de Artes e Ciências.

Gay tentou aplacar a controvérsia, mas esta se intensificou à medida que os protestos se multiplicaram e relatos de incidentes antissemitas foram destacados nas redes sociais.

Doadores proeminentes, como os bilionários Idan Ofer e Leslie Wexner, interromperam seu apoio, enquanto o senador dos EUA Mitt Romney acusou a universidade de negligenciar a segurança dos estudantes judeus.

Alvoroço no Congresso

A controvérsia se intensificou quando Gay compareceu perante o Congresso em 5 de dezembro para depor sobre o antissemitismo nos campi dos Estados Unidos.

Em respostas às perguntas de Elise Stefanik, uma republicana de Nova York, Gay e seus colegas da Universidade da Pensilvânia e do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) deram depoimentos amplamente criticados, nos quais deixaram de condenar chamados ao genocídio contra judeus como violação da política universitária.

A presidente da Penn, Liz Magill, renunciou dias depois. Gay enfrentou uma onda de pedidos de renúncia, incluindo os de Stefanik, do bilionário investidor Bill Ackman e outros ex-alunos de Harvard.

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O professor Avi Loeb, um astrônomo de renome mundial que está em Harvard desde 1993, disse ter ficado horrorizado com o testemunho de Gay. Loeb, que cresceu em Israel e perdeu 65 membros da família de seu pai no Holocausto, expressou preocupação com o impacto a longo prazo na escola, incluindo sua capacidade de arrecadar dinheiro junto a doadores e de trabalhar com legisladores em Washington.

“As consequências são óbvias”, disse ele antes da renúncia de Gay.

Apoiada pelo corpo docente

Outros 700 membros do corpo docente, no entanto, muitos deles da Faculdade de Artes e Ciências, expressaram seu apoio a Gay após a audiência em Washington. Eles assinaram uma petição defendendo “a independência da universidade” e instaram sua liderança “a resistir às pressões políticas que estão em desacordo com o compromisso de Harvard com a liberdade acadêmica.”

Uma das signatárias foi a professora Suzanne Blier, que havia apoiado a candidatura de Gay à presidência - equivalente à posição de reitor no Brasil.

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“A renúncia da presidente Claudine Gay não impedirá a desanimadora decadência nacional na civilidade”, disse Blier, professora de belas artes e estudos africanos e afro-americanos. “Precisamos de discussões calmas e racionais para promover o respeito e a confiança mútua, e não de mais divisão.”

Como outros apoiadores de Gay, Blier fazia parte de um grupo que anos antes havia buscado a remoção de Summers do cargo máximo de Harvard. Ele renunciou quase 18 anos atrás após conflitos com o corpo docente, incluindo declarações que fez sobre a aptidão das mulheres para ciência e engenharia.

Impacto na diversidade

Filha de imigrantes haitianos, Claudine Gay foi escolhida em 2022 como a muito aclamada sucessora de Lawrence Bacow.

Sua pesquisa como cientista política frequentemente se concentrava em questões raciais, e uma das características de sua liderança era a promoção de políticas de diversidade, equidade e inclusão. Ela assumiu as rédeas em Harvard no meio de 2023, dias depois de a Suprema Corte dos EUA abolir a raça como fator em admissões de graduação.

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“Quando me tornei presidente, considerei-me particularmente abençoada pela oportunidade de servir pessoas de todo o mundo que viam em minha presidência uma visão de Harvard que afirmava seu senso de pertencimento - o senso de que Harvard recebe pessoas de talento e promessa, de todos os históricos imagináveis, para aprender e crescer juntas”, disse Gay em sua carta de renúncia.

Ela permanecerá no corpo docente de Harvard.

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A política de diversidade tem sido há muito tempo alvo de legisladores e comentaristas conservadores. Após a audiência no Congresso, esses ataques se intensificaram, inclusive do candidato presidencial republicano Vivek Ramaswamy. Já Bill Ackman, que já apoiou democratas, concentrou cada vez mais suas críticas a Harvard nas iniciativas de diversidade, sugerindo que a nomeação de Gay resultou disso.

Um de seus ex-professores chamou os comentários de Ackman sobre a eleição de Claudine Gay de “um assobio para mulheres negras”. Ackman rejeitou essa afirmação.

Em uma postagem extensa após Gay anunciar sua renúncia, Ackman disse que sempre apoiou “diversidade em sua forma mais ampla”, incluindo raça, etnia, religião, origem socioeconômica, identidade sexual, pontos de vista e política. No entanto ele afirmou que a política de Harvard se tornou “um movimento de defesa política em favor de certos grupos considerados oprimidos.”

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Ackman continuou dizendo que Pritzker e outros membros do conselho da Harvard Corp. deveriam renunciar. Pritzker, por sua vez, permanece, de acordo com o jornal estudantil Harvard Crimson, que citou um porta-voz da universidade.

A Harvard afirmou que Gay foi alvo de “ataques repugnante e, em alguns casos, racista” por meio de e-mails e telefonemas.

“Estas últimas semanas deixaram claro o trabalho que precisamos fazer” para “combater o preconceito e o ódio em todas as suas formas, criar um ambiente de aprendizado no qual respeitamos a dignidade uns dos outros, tratamos uns aos outros com compaixão e reafirmamos nosso compromisso duradouro com a investigação aberta e a livre expressão na busca da verdade”, escreveu Gay em sua carta.

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No final, Gay foi derrubada também por crescentes alegações de plágio em sua pesquisa, incluindo novas acusações publicadas na última semana no Washington Free Beacon.

Um comitê da Câmara pediu que Harvard responda a perguntas sobre seus padrões de integridade acadêmica e como lidou com as acusações contra Claudine Gay.

“Devemos exigir o máximo de todos, e Harvard deveria ter acadêmicos de alto nível como membros do corpo docente e líderes da universidade”, disse David Weitz, professor de física em Harvard desde 1999, antes do anúncio da saída de Gay. “Como posso dizer aos meus alunos para não plagiar? Como você pode ter padrões diferentes? Simplesmente não vejo isso.”

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O conselho da universidade, que havia apoiado Gay menos de um mês atrás, afirmou que permanecerá fiel a seus “valores fundamentais de excelência, inclusão, livre investigação e expressão”.

Mas avançar não será fácil. Doadores cortaram laços e, em um sinal preocupante, as inscrições antecipadas para vagas - o application - diminuíram 17%.

O Congresso também continua a exercer pressão. Além da investigação de plágio, o comitê que convidou Claudine Gay para depor ainda está investigando os casos de antissemitismo nos campi. Stefanik, que celebrou após a renúncia de Gay, afirmou que isso é “apenas o começo de um acerto de contas”.

Pinker propôs adotar uma política clara de liberdade acadêmica, promovendo uma ampla gama de pontos de vista e adotando a neutralidade institucional ao evitar pronunciamentos sobre eventos do dia.

“Não se trata apenas de Harvard mas do ensino superior e das instituições em geral”, disse Pinker.

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