Exclusivo: Privatizações de saneamento correm o risco de serem engavetadas

Sinalização do governo Lula de alterar o marco regulatório do setor trava planos de estados que já tinham estudos avançados de concessão ou privatização

Investimentos necessários para levar água e esgoto para toda a população ultrapassam R$ 800 bilhões, segundo estudos
07 de Março, 2023 | 04:50 AM

Bloomberg Línea — Investidores ainda tentam entender os sinais do governo federal sobre o novo marco regulatório do saneamento, que definiu as metas para a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033. Até o início deste ano, a expectativa era a de que a iniciativa privada liderasse os investimentos no setor, mas crescem as incertezas sobre novos projetos de privatização, que podem ser engavetados ou até cancelados no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Segundo apurou a Bloomberg Línea com pessoas próximas às operações, pelo menos cinco projetos estruturados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) estão em estágio avançado de formulação da modelagem para concessão ou privatização, mas a maior parte deles pode ficar pelo caminho.

Um dos mais adiantados é o do município de Porto Alegre (RS), que, além da universalização de água e esgoto, também prevê investimentos em drenagem de águas pluviais. O saneamento da capital gaúcha é de responsabilidade do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), uma autarquia municipal.

Projetos no âmbito estadual – que envolvem companhias estatais – também estão avançados em Paraíba, Sergipe, Rondônia e Pernambuco.

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Para três fontes próximas às operações, que falaram sob condição de anonimato porque as discussões são privadas, os projetos dificilmente sairão do papel neste ano. E, por falta de apoio político, podem ainda ser engavetados permanentemente.

De acordo com uma das pessoas ligadas às negociações, a preocupação é que, com o viés mais intervencionista do governo federal, as administrações estaduais vão repensar o modelo. Se não forem cancelados, os projetos vão precisar de mais tempo para serem amadurecidos.

Para um executivo de um banco de investimento, que falou sob condição de anonimato, os estados de Sergipe e Pernambuco devem esperar até 2024 para colocar seus projetos na rua. Segundo esse executivo, a ideia é esperar na esperança de uma melhora do cenário macroeconômico.

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A meta de universalização dos serviços de água e esgoto até 2033, prevista no novo marco regulatório, aprovado em julho de 2020, demandará investimentos que ultrapassam a casa dos R$ 800 bilhões, de acordo com estimativas de entidades governamentais e ligadas ao setor.

Nesse contexto, projetos de parceria entre o poder público e a iniciativa privada foram contratados para estudos, sendo os mais expressivos em recursos estruturados pelo BNDES.

BNDES: R$ 118 bilhões estimados

Só na carteira do banco de fomento, os investimentos estimados em projetos de saneamento somam cerca de R$ 118 bilhões. Desde a aprovação do marco até dezembro do ano passado, 12 leilões já foram realizados com aproximadamente R$ 61 bilhões contratados.

Segundo a superintendente da Área de Estruturação de Projetos do BNDES, Luciene Machado, entre os projetos mais maduros em carteira, o de Porto Alegre está em vias de ter uma proposta formulada.

O projeto de Sergipe também está em estágio mais maduro, relatou a executiva. Nesse caso, são 75 municípios envolvidos.

“Porto Alegre e Sergipe são os mais avançados. Acreditamos que seria possível ter o edital na rua e provavelmente realizar o leilão ainda neste ano, dentro dos cronogramas que temos pactuados com esses dois clientes”, disse a executiva à Bloomberg Línea. Ela avaliou que os outros projetos devem ficar para o ano que vem.

De acordo com uma fonte envolvida nos estudos, que falou sob condição de anonimato, o ambiente para novas concessões mudou. Segundo essa fonte, os projetos estaduais podem até ser paralisados, ainda mais aqueles capitaneados pelo BNDES, pois passam por uma decisão política de dar sobrevida às estatais.

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Alterações no marco

Mudanças no marco regulatório do saneamento vêm sendo discutidas pelo governo federal e, embora a maioria só possa ser feita via alteração da lei, já causam preocupação entre agentes do setor.

Uma das mais relevantes é a possibilidade de retorno dos chamados contratos de programa, firmados entre prefeituras e companhias estaduais sem licitação.

Segundo o diretor-executivo da Associação das Operadoras Privadas de Saneamento no Brasil (Abcon), Percy Soares Neto, atualmente 1.107 municípios estão com contratos de saneamento irregulares.

Uma parcela está vencida; uma parte dos municípios não conseguiu comprovar capacidade econômico-financeira para atingir a universalização – exigência do novo marco. Conforme o dirigente, alguns contratos sequer existiram de maneira formal.

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“Entendemos que o grande risco para o setor como um todo é a volta da discussão sobre o marco no Congresso. Isso vai paralisar os investimentos”, avaliou Soares.

O governo federal vem sinalizando que pode dar mais poder às companhias estaduais. Um relatório do grupo de transição na área de Cidades, concluído em dezembro, apontava que a Lei 14.026/2020, que estabeleceu o novo marco regulatório do saneamento, “causou desequilíbrio, pois ao vedar contratos de programa, proibiu a cooperação federativa e causou insegurança jurídica.”

O documento sugeria a edição de um novo marco regulatório que restituísse a possibilidade de contratos de programa.

Soares relata que as discussões para a volta dos contratos de programa estão no âmbito da Casa Civil e do Ministério das Cidades. Como o tema pode gerar resistência, o retorno poderia vir “disfarçado”, com a formalização das operações irregulares.

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Público x privado

Integrantes do governo também criticaram o protagonismo da iniciativa privada em detrimento das companhias estaduais após a aprovação do novo marco regulatório.

Segundo levantamento da consultoria especializada Terrafirma, feito a pedido da Bloomberg Línea, 51% da população brasileira ainda é atendida por operadores de água e esgoto municipais ou estaduais de capital fechado; 29% por companhias estaduais de capital aberto – Sabesp, Copasa e Sanepar –, e 19%, por empresas privadas.

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Conforme o estudo, as operadoras privadas ainda possuem capital majoritariamente brasileiro (67%). Atualmente, são 36 operando no país, segundo a Terrafirma. Aegea, Iguá e BRK são responsáveis, juntas, por 16% da população atendida do País, mas há ainda outras operadoras de grande porte como GS Inima, Águas do Brasil e a elétrica Equatorial, que, recentemente, estreou no setor ao levar uma concessão no Amapá.

Dentre os acionistas estrangeiros dessas empresas, destacam-se o fundo soberano de Cingapura – que detém 34% da Aegea, maior operadora privada de saneamento do Brasil – e fundos de investimento e de pensão canadenses, com participações na Iguá, na BRK e na Equatorial.

Para o sócio da Terrafirma Consultoria, Vitor Ivanoff, os projetos de saneamento estaduais tendem a ser paralisados. “As concessões estaduais provavelmente devem ser engavetadas, os estados que têm suas estatais de água e esgoto vão querer manter suas operações do jeito que estão”, avaliou.

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Por outro lado, ele afirmou que os projetos municipais devem continuar normalmente. “Há muitos projetos que estão fora do radar, mas que sabemos que vão sair.”

No mercado, a expectativa é que as concessões plenas – quando o serviço é concedido à iniciativa privada por determinado período de tempo – devem ficar cada vez mais de lado.

Já as parcerias público-privadas (PPPs), que pressupõem o pagamento de contraprestações do governo mediante o atingimento de metas do contrato, podem virar uma alternativa mais comum, embora analistas apontem que o caixa do poder público, em suas diversas esferas, está combalido demais para esse tipo de modelo.

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Prioridade

A superintendente do BNDES esclareceu que, quando o banco recebe mandato para um projeto de infraestrutura, diferentes cenários são apresentados de acordo com o marco legal vigente.

“A depender de eventuais mudanças [na lei], é claro que a modelagem é impactada, alguns cenários se tornam menos possíveis. Obviamente, precisamos propor um projeto que esteja perfeitamente aderente ao marco legal vigente”, disse Machado.

Em sua avaliação, o cronograma de projetos de saneamento para 2023 pode ser mais ou menos ambicioso dependendo da situação específica de cada estado.

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Para a chefe do Departamento de Estruturação de Projetos em Saneamento do BNDES, Luciana Capanema, a ideia é de continuidade em saneamento.

“Nossa ambição é até de ampliação, seguimos buscando estados interessados. Neste início de governo, temos sido bastante procurados. Nossa perspectiva é muito positiva para a continuidade dos investimentos e estruturação de projetos em saneamento”, relatou. “Esperamos novos projetos em carteira, não podemos garantir, mas estamos trabalhando para isso”, acrescentou.

Privatizações planejadas

Após a venda da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) em um leilão no final do ano passado, conquistado pela Aegea, o mercado aguarda novos processos de privatização de companhias estaduais.

O mais esperado é o da Sabesp (SBSP3), que tem 50,3% das ações nas mãos do governo do estado de São Paulo. A contratação de estudos para a privatização da companhia deve ser concluída em breve, segundo o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

A privatização da Sabesp é uma das prioridades do novo governador, segundo afirmou o secretário de Desenvolvimento Econômico de São Paulo, Jorge Lima, à Bloomberg Línea.

Espera-se também a privatização da Copasa, estatal de saneamento de Minas Gerais. No entanto, segundo fontes ouvidas pela Bloomberg Línea, os processos devem ser extremamente longos, pois envolvem negociações com cada município atendido.

Esses processos devem testar o capital político dos governadores envolvidos em suas respectivas casas legislativas.

Para analistas, mesmo que os processos tenham início em breve, não devem ser concluídos antes de 2025.

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Juliana Estigarríbia

Jornalista brasileira, cobre negócios há mais de 12 anos, com experiência em tempo real, site, revista e jornal impresso. Tem passagens pelo Broadcast, da Agência Estado/Estadão, revista Exame e jornal DCI. Anteriormente, atuou em produção e reportagem de política por 7 anos para veículos de rádio e TV.