Livraria Cultura: promessa de ‘tempos áureos’ por enquanto é obra de ficção

Em recuperação judicial desde 2018, tradicional rede de livrarias não paga honorários da administradora Alvarez & Marsal desde 2020 e fechou 14 das 17 lojas

Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, a maior unidade entre as três que restaram da rede tradicional (Reprodução/Instagram)
Por Rogério Gentile
10 de Agosto, 2022 | 07:38 AM

Bloomberg Línea — Ao entrar com pedido de recuperação na Justiça em outubro de 2018, a Livraria Cultura citou um comentário feito pelo escritor português José Saramago após uma visita ao Brasil, dez anos antes: “A Livraria Cultura é uma obra de arte”.

No mesmo documento, disse também que, a despeito da grave crise que a levara àquela situação extrema, seu “futuro” era “promissor” e que os resultados iriam aparecer em um “curto prazo”.

Quase quatro anos e uma pandemia depois, o “futuro promissor” e o “curto prazo” continuam sendo apenas peças de retórica para uma organização que, desde então, já fechou 14 das suas 17 lojas e tem dificuldades para pagar até mesmo os honorários da administradora nomeada pela Justiça para acompanhar e fiscalizar o processo de recuperação judicial.

Em relatório enviado ao juiz Ralpho Waldo De Barros Monteiro Filho, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais, a administradora Alvarez & Marsal afirma que a Livraria Cultura não lhe paga os vencimentos determinados pela Justiça desde setembro de 2020, o que, de acordo com as suas contas, perfaz uma dívida de cerca de R$ 819,7 mil. “Em março de 2022, completou um ano e seis meses que esta auxiliar cumpre seu múnus [tarefa] sem nenhum tipo de remuneração”, declarou a administradora.

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A ausência do pagamento dos honorário é apenas um dos indicadores que mostram que a situação da Livraria Cultura, fundada em 1947, continua difícil, a despeito da profunda reorganização operacional pela qual a empresa passou desde que a Justiça aceitou o pedido de recuperação.

A proteção judicial teve como efeito a suspensão das ações de execução e viabilizou a elaboração de um plano de quitação de suas dívidas em condições menos sufocantes.

A Cultura, que desde junho de 2018 demitiu 1.517 dos seus 1.674 funcionários, segue no vermelho, de acordo com informações que constam do processo de recuperação judicial.

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No primeiro trimestre, acumulou um resultado negativo de R$ 7,8 milhões (dado disponível mais recente), ainda que esse prejuízo tenha sido 53% menor do que o registrado no mesmo período no ano anterior, muito afetado pela pandemia do coronavírus.

A empresa foi também obrigada a se desfazer da sua plataforma online de livros usados, a Estante Virtual, vendida em um leilão no ano passado por R$ 31,1 milhões para uma empresa afiliada ao Magazine Luiza (MGLU3).

A Estante Virtual havia sido adquirida pelo grupo Cultura em 2017, no auge do processo de expansão da empresa, criada 70 anos antes na sala de estar de sua fundadora, Eva Herz, uma imigrante que havia deixado a Alemanha nazista com a família no início da 2ª Guerra Mundial em busca de refúgio no Brasil.

À época da fundação, a empresa chamava-se Biblioteca Circulante e era um modesto empreendimento de aluguel de livros em São Paulo, idealizado por Eva Herz com o objetivo de permitir que outros judeus alemães pudessem ter acesso a livros escritos em sua língua materna. Com o sucesso, a biblioteca virou uma livraria em 1950, instalando-se em um sobrado na tradicional rua Augusta.

Dezenove anos depois, em 1969, quando começou a ser gerida por Pedro Herz, filho de Eva, mudou-se para o Conjunto Nacional, na avenida Paulista, sua principal loja até hoje e responsável por 50,5% do seu faturamento anual. No auge, a Cultura chegou a ter um catálogo de aproximadamente 9 milhões de obras em diversos idiomas, além de 600 mil títulos em música, filmes, jogos e revistas.

Na tentativa de expandir suas atividades, em 2017, além de adquirir a Estante Virtual, incorporou a subsidiária brasileira da francesa Fnac. A notícia do negócio surpreendeu o mercado em razão da já delicada situação financeira da Cultura em meio à crise econômica que atingia o país.

Em um documento elaborado pela Alvarez & Marsal logo após a abertura do processo de recuperação judicial, a administradora apontou a estagnação econômica, a partir de 2014, como uma das principais razões para as dificuldades da Cultura, citando que a redução do PIB em quase 10% impactou consideravelmente o consumo de livros no país.

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Além disso, naquele mesmo ano, a gigante Amazon (AMZN) entrou no mercado da venda de livros físicos no país, instalando uma verdadeira guerra de preços entre as livrarias físicas e o comércio online. O Ebitda (lucro antes de juros, impostos, amortizações e depreciações) da Cultura caiu de R$ 21 milhões em 2013 para um resultado negativo de R$ 77 milhões em 2017.

A situação levou, no ano seguinte, ao pedido de recuperação judicial, quando a companhia acumulava uma dívida de R$ 285,4 milhões e corria o risco de ter sua falência decretada. De lá para cá, de acordo com relatórios da administradora judicial, a Cultura conseguiu pagar 2.368 dos seus 3.450 credores.

Outro lado

A reportagem procurou a Livraria Cultura para que pudesse se manifestar sobre o relato feito pela administradora judicial de que não recebe seus honorários desde setembro de 2021, mas o escritório de advocacia que a representa no processo de recuperação judicial não respondeu os questionamentos.

Em manifestação enviada à Justiça, a Livraria Cultura afirmou considerar que “muito em breve” o processo de recuperação judicial poderá ser encerrado, com o cumprimento de suas “obrigações”.

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A empresa destacou no documento que a sua viabilidade econômica é “inquestionável” e que vai retomar os seus “tempos áureos”. A Cultura disse também à Justiça que, após dois anos de intensos reflexos negativos por causa da Covid-19, “o setor livreiro, enfim, está se recuperando perante o mercado”.

Citou levantamento realizado pelo IBGE, segundo o qual “o setor demonstrou crescimento de 36,1% em março de 2022 quando comparado ao mesmo período de 2021, além de um aumento de 4,7% em suas atividades entre os meses de fevereiro e março de 2022″.

“Esse crescimento se deve a fatores macroeconômicos, como a retomada das atividades e, principalmente, das aulas na forma presencial em todo país, o que implica aumento no consumo de materiais de papelaria e livros em geral”, declarou a Cultura.

A livraria afirmou ainda que várias medidas foram adotadas para melhorar a rentabilidade da companhia e solidificar a sua marca, tais como “a modernização dos canais digitais, a criação do Sebo Cultura (compra e venda de livros usados) e de um clube de empréstimos de livros, além de um novo sistema de inteligência para gestão de estoques”.

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