Picape elétrica da Ford nos EUA usa alumínio suspeito de poluir Amazônia

Refinaria que processa a bauxita sofre ação coletiva na Justiça acusada de despejar materiais tóxicos que deixaram milhares de pessoas doentes; empresa diz que investiga o caso

Refinaria da Norsk Hydro Alunorte em Barcarena, perto de Belém, no estado do Pará: empresa é acusada na Justiça de causar a poluição do rio com materiais tóxicos, levando doenças a milhares de pessoas (Jonne Roriz/Bloomberg)
Por Sheridan Prasso e Jessica Brice
27 de Fevereiro, 2023 | 05:15 PM

Bloomberg — O novo modelo totalmente elétrico da picape mais vendida nos EUA, a Ford F-150, conta com alumínio para torná-la leve e veloz. Sem a demora de um motor a combustão, ela consegue disparar como um carro esportivo de zero a 100 km/h em cerca de 4 segundos. Não emite fumaça nem faz barulho.

No entanto seu impacto pode ser sentido na Floresta Amazônica, no Brasil. É lá que começa a problemática trajetória do alumínio da Ford F-150.

Um porta-voz da Ford (F) disse que a empresa está investigando as questões levantadas pela Bloomberg News. “A Ford está comprometida com uma cadeia de suprimentos que exceda os requisitos mínimos de conformidade regulatória e respeite os direitos humanos, incluindo o direito a ar e água limpos”, disse o porta-voz da montadora americana.

O alumínio usado para estruturar a cabine de passageiros da caminhonete pode ser rastreado desde o histórico complexo de montagem da Ford em Dearborn, no estado americano do Michigan, a uma fabricante de peças na Pensilvânia, uma fundição no Canadá e, finalmente, até o Brasil.

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No coração da Amazônia, a bauxita cor de ferrugem é extraída de uma mina que há muito enfrenta acusações de poluição e apropriação de terras. E, perto de onde o rio Amazonas deságua no Atlântico, uma refinaria que processa o minério é acusada de deixar milhares de pessoas doentes.

Uma ação coletiva em nome de 11.000 moradores de bairros próximos a essa refinaria, a Hydro Alunorte, aponta a controladora Norsk Hydro, da Noruega, como responsável por poluir seus rios e córregos - a empresa nega que cometa qualquer irregularidade (veja mais abaixo).

Moradores que estão com ação na Justiça contra a Norsk Hydro levantam a mão quando questionados sobre quem sofre com problemas de saúde cujas causas são suspeitas de serem da poluição da refinaria de bauxita da empresa em Barcarena, no Pará (Jonne Roriz/Bloomberg)dfd

O processo cita lama tóxica contendo supostos níveis elevados de alumínio e outros metais pesados, que são subprodutos do refino da bauxita em alumina, o pó branco que se transforma em alumínio. As ações da Alunorte, alegam os moradores, causaram problemas de saúde como câncer, queda de cabelo, disfunção neurológica, defeitos congênitos e aumento da mortalidade.

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“Todo dia morremos um pouco”, diz Maria do Socorro, de 57 anos, da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), principal autora do processo. Ela mora em uma cabana não muito longe da refinaria.

Os órgãos de seu neto irromperam pela pele no nascimento, e oito pessoas em sua família foram acometidas de câncer, diz ela, incluindo ela e seu marido, que ela diz ter morrido por causa disso. “Somos vítimas dessa empresa, a Hydro. Eles vêm, ganham dinheiro e não deixam nada para nós.”

A Ford, que começou a fabricar a F-150 Lightning EV em abril passado, a chama de “caminhonete do futuro”. Os veículos são a maior fonte de emissões de carbono nos Estados Unidos, e a mudança para elétricos é essencial para atingir o objetivo do governo de reduzi-las.

Isso significa persuadir a classe média americana - não apenas os compradores ambientalmente conscientes que dirigem Teslas - a mudarem para elétricos também. “Isso pode mudar quem imaginamos dirigir uma caminhonete, quem dirige um EV, quem dirige um Ford”, disse a montadora.

Essa transformação precisa de alumínio. Muito alumínio. A demanda por peças de alumínio vem de todas as montadoras, especialmente aquelas que estão mudando para veículos elétricos.

Picape Ford F-150 Lightning, totalmente elétrica, um dos modelos mais vendidos da Ford no mundo: uso de alumínio cuja cadeia de produção sofre suspeita de poluir e causar doenças em milhares de pessoas na Amazônia (Emily Elconin/Bloomberg)dfd

Um carro norte-americano típico contém cerca de 500 libras-peso (227 kg) de alumínio, quase o dobro da quantidade de 20 anos atrás, e os veículos elétricos têm cerca de 150 libras a mais, segundo a consultoria Ducker Carlisle.

A Ford, que trocou o aço pelo alumínio no exterior da F-150 a combustão em 2015, diz que usa cerca 310 kg do metal na versão elétrica, sem contar o que está na bateria e outros componentes pré-montados. Grande parte do alumínio que reveste a caminhonete, além do que a Alunorte fornece, também pode ser rastreada até a Amazônia, segundo uma investigação da Bloomberg News.

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Para os consumidores que buscam reduzir suas pegadas de carbono, os custos ambientais e sociais dos veículos elétricos podem ser maiores do que imaginam. O custo humano da extração de minerais usados em baterias foi bem documentado: cobalto e cobre da República Democrática do Congo; lítio do Chile; níquel da Indonésia.

Mas os danos ao longo da cadeia de fornecimento de alumínio não foram examinados. Foi somente depois que a Hydro e outras empresas anunciaram no ano passado que forneceriam peças de alumínio para a F-150 EV que a trilha de volta ao Brasil tornou-se rastreável.

Pesquisadores que estudam as comunidades ao redor da refinaria da Alunorte em Barcarena, nos arredores de Belém, descobriram que rios e córregos estão poluídos com metais tóxicos. Alguns estavam em níveis 57 vezes maiores do que os especialistas em saúde consideram seguro.

Os moradores mostraram à Bloomberg News os resultados dos exames médicos com níveis ainda mais altos: no caso de uma mulher, 175 vezes o limite de alumínio no cabelo e 81 vezes mais no sangue.

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A Hydro, com sede em Oslo, cujo maior acionista é o governo norueguês, foi multada em R$ 20 milhões pelas autoridades brasileiras e ordenada a reduzir temporariamente a produção da usina após uma descarga de água não tratada durante uma enchente em 2018. Depois concordou em pagar mais R$ 160 milhões.

A Hydro nega qualquer irregularidade ou culpa pelo incidente e afirma que a Alunorte cumpre todos os padrões de responsabilidade social, saúde, segurança e meio ambiente.

Os moradores de Barcarena contestam isso com a mesma veemência e acusam o governo de não fazer o suficiente para protegê-los.

“A alumina aqui é produzida à custa de muita miséria”, diz Ismael Moraes, o advogado brasileiro que se associou ao escritório de advocacia Pogust Goodhead, com sede em Londres, para mover a ação coletiva contra a Hydro na Holanda depois de não conseguir avançar em cinco casos relacionados à poluição no Brasil.

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A ação busca responsabilizar a Hydro por 10 incidentes que resultaram em poluição e danos à saúde da comunidade, mais da metade deles anteriores à aquisição da refinaria em 2011. A Hydro, que nega as acusações, tem até 8 de março para apresentar uma resposta.

Fordlândia na Amazônia

A história da Ford na Amazônia remonta a 1928, quando Henry Ford embarcou em uma tentativa de criar uma plantação de borracha e uma cidade industrial conhecida como Fordlândia. Sua ideia era obter a matéria-prima para os pneus dos carros que saíam da linha de montagem da fábrica de Rouge. Mas os gerentes americanos ignoraram as condições locais de cultivo, falharam em produzir muita borracha e destruíram a paisagem antes de abandonar o projeto.

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A mina de bauxita Mineração Rio do Norte, conhecida como MRN, fica a cerca de 240 quilômetros ao norte de Fordlândia. Situada em uma floresta nacional ao longo de um afluente do Amazonas, a mina, inaugurada em 1979, fazia parte de uma tentativa do governo de desenvolver a região – um esforço que se acelerou nos últimos anos com o desmatamento desenfreado sob o ex-presidente Jair Bolsonaro.

A MRN, de propriedade de um consórcio de mineradoras, busca permissão para expandir sua área de atuação, já três vezes o tamanho de Manhattan, em cerca de um terço, desmatando outra Manhattan.

Executivos de minas dizem que estão reflorestando grande parte disso, mas pode levar décadas para que a floresta tropical se regenere totalmente. Os reguladores rejeitaram duas vezes os estudos ambientais por consultarem insuficientemente as comunidades vizinhas. Os estudos foram finalmente aceitos para revisão em outubro, e uma decisão é esperada para este ano.

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A mina cobre parcialmente terras reservadas para descendentes de escravizados que têm direito à proteção legal. Pessoas próximas entrevistadas pela Bloomberg News dizem que a MRN os ajudou a estabelecer o título legal da terra, mas diminuiu sua parte legítima. Um deles, que pediu para não ser identificado por temer comprometer as relações com a empresa, comparou a MRN a um intruso que entra em sua casa e fecha a cozinha.

A MRN afirma que a demarcação das áreas protegidas foi feita por órgãos governamentais sem qualquer interferência da empresa e que segue todas as leis de mineração e ambientais.

“A gente tem um diálogo permanente com essas comunidades”, afirma o diretor-presidente Guido Germani. “Tem uma história aí de muitos anos, de muita evolução. O mundo mudou, a mineração mudo, a indústria mudou muito nos últimos anos. E a gente já entrou com filosofia de mudança.”

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A MRN extrai mais de 12 milhões de toneladas de bauxita por ano da floresta tropical, transporta o minério ao longo de 27 km de ferrovia, depois tritura, seca e despeja através de uma bica em graneleiros oceânicos que se alinham em seu terminal em Porto Trombetas.

Moradores das proximidades reclamam de passar mal se chegarem muito perto. Eles dizem que a fumaça que antes era negra expelida da chaminé da instalação é menos visível agora, mas não menos perniciosa. Partículas transportadas pelo ar danificaram a câmera de um fotógrafo da Bloomberg News em setembro. A mina não pode ser visitada sem autorização, o que a empresa negou.

Resíduos despejados em lago

Em 1984, a MRN começou a despejar resíduos de mineração não tratados nas proximidades do Lago Batata, do qual os residentes locais dependem para obter água e peixes. O resíduo da bauxita é uma lama alaranjada com metais pesados, e a destruição foi tão grande que ainda hoje, mais de 30 anos após o fim do despejo, a lama tóxica do Batata fica visível na estação seca, e peixes e tartarugas ficam vermelhos.

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Quem se atreve a comê-los fica com diarreia, e quem lava a roupa ou toma banho no lago fica com coceira na pele, diz Maria Dilma dos Santos, de 64 anos, que mora há décadas com a família em uma casa de madeira à beira d’água. “Isso não pode ser limpo”, diz ela com um encolher de ombros. “Ninguém seria capaz de limpar isso.”

O órgão ambiental do governo não tem recursos para fazer testes independentes de água, diz Lúcia M.M. de Andrade, coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio, grupo sem fins lucrativos que defende os direitos das comunidades indígenas e tradicionais. “A percepção da empresa e a percepção das comunidades sobre os impactos e benefícios são muito diferentes”, diz ela.

Os problemas também são visíveis ao sul da mina, em comunidades ao longo do rio que só podem ser alcançadas por cursos d’água envoltos em árvores, com largura que mal dá para passarem barcos motorizados semelhantes a canoas conhecidos como rabetas. Em Saracá, a água costumava ser tão clara que os moradores dizem que podiam ver peixes nadando lá embaixo. Depois que a mina começou a operar, dizem eles, ela ficou um laranja queimado.

Agora está tingido como chá levemente infundido. Os moradores dizem que os peixes de que dependiam para se alimentar praticamente desapareceram e a água não é mais adequada para beber ou lavar. Algumas comunidades ao redor da MRN recebem pastilhas de purificação de água distribuídas pelo governo, enquanto outras recebem água encanada por meio de tubos de plástico branco que se projetam do solo.

“Dói na alma falar isso”, diz Guilherme da Silva, 43, que ganha a vida fazendo biscates em Saracá. Meia dúzia de vizinhos se reuniram em sua casa à beira do rio em uma manhã de sábado para expressar lamentos semelhantes. A empresa costumava enviar representantes para ouvir suas preocupações, diz Silva, mas não envia ninguém há anos e nunca forneceu os resultados dos testes de água que realiza. Ele acusa a MRN de “má-fé”.

MRN não abre resultados dos testes

A MRN diz que os resultados de seus testes privados estão disponíveis ao público no site do Ibama, mas um link enviado pela empresa exigia uma senha, que a MRN não forneceu, e se recusou a fornecer os dados por e-mail. Vladimir Senra Moreira, diretor de sustentabilidade da mineradora, diz que respeita a opinião dos membros da comunidade, mas “os dados que nós temos, eles não indicam exatamente esse nexo causal entre a percepção deles de contaminção da água e atividade de mineração.”

O Ibama reconheceu que não testa a qualidade da água, mas multou a MRN em mais de US$ 6,5 milhões por 29 infrações nas últimas duas décadas, incluindo o lançamento de resíduos líquidos ou sólidos. A assessoria de imprensa do órgão disse que a MRN pagou menos de 10% desse valor. A MRN diz que está apelando das multas e não é obrigada a pagar até que uma sentença seja emitida.

Germani, presidente da MRN, diz estar confiante de que a licença para expandir será aprovada porque restam apenas cinco ou seis anos de reservas de bauxita na atual área de mineração. “O governo brasileiro reconhece a importância dessa mina na cadeira de alumínio”, diz ele.

Mesmo com um sistema de drenagem que direciona o escoamento para as barragens de rejeitos, a existência de minas a céu aberto em uma floresta tropical em altitude mais elevada do que as comunidades próximas põe em risco lugares como Saracá. “Tudo volta para o rio”, diz Raimundo Nelson da Silva, irmão de Guilherme.

O pai deles, Raimundo, de 79 anos, observou essas mudanças de sua varanda de madeira com vista para a água por quase metade de sua vida e diz que não tem esperança de melhora para seus filhos e netos. Em vez disso, ele escreve canções lamentando a poluição e a destruição de seu modo de vida tradicional. Ele começa a cantá-las, em rima:

Muito lindo é o céu

Mais bonito é o mar

Mas é feia nossa água

Que ninguém pode tomar

Está na cara, está na vista

A grande poluição

Da sujeira da bauxita

Que vem da mineração

Enormes navios do tamanho de transatlânticos são carregadas com bauxita triturada em Porto Trombetas antes de descerem por um afluente que se funde com o Amazonas. São 1.300 km até a Alunorte, um rota que contorna o equador e o atravessa ao chegar ao Atlântico. Outras transportadoras seguem para a costa nordeste do Brasil, para outra refinaria, a Alumar, que produz alumina que é enviada para fundições na América do Norte de propriedade da Alcoa e da Rio Tinto.

A viagem de dois dias pela Amazônia até a Alunorte é uma viagem por infinitos tons de verde: ilhas de flora flutuante; margens ladeadas por altos açaís e palmeiras, seringueiras, cedros espanhóis e milhares de outras espécies de vegetação; cipós balançando na água. Garças ficam rígidas ao longo das margens do rio, papa-moscas disparam e ziguezagueiam e grupos de vacas brancas pastam em clareiras.

O rio Amazonas se alarga e se estreita e se alarga novamente, chegando a ter quilômetros de largura em alguns pontos. Assentamentos com igrejas azuis e brancas que datam de expedições missionárias interrompem o fluxo. O pôr-do-sol e o nascer do sol brilham em âmbar e carmesim na umidade, que às vezes se transforma em tempestades repentinas e violentas.

Os navios trazem quase metade da produção da MRN para a Alunorte. Lá, ela é misturada à bauxita de outra mina brasileira, a de Paragominas, da Hydro. O site da empresa reconhece que Paragominas tem “questões não resolvidas” relacionadas à suposta apropriação de terras de pessoas deslocadas por um duto de 240 km que transporta bauxita para a Alunorte e diz que elas remontam ao tempo anterior à Hydro se tornar proprietária. A Hydro diz que está tomando medidas para remediar o problema.

O processo de fabricação de alumina depende de uma tecnologia de uso intensivo de energia desenvolvida no século XIX. A bauxita é misturada com soda cáustica e cal e aquecida em tanques de alta pressão para extrair o pó branco da alumina da lama vermelha. O resíduo, que pode incluir alumínio, arsênico, cromo, cádmio, chumbo e níquel, é canalizado para áreas de contenção do tamanho de lagos.

Níveis de chumbo e alumínio

A química Simone Pereira, que há anos estuda a água potável em 26 comunidades ao redor da refinaria, encontrou altos níveis de chumbo em todas, exceto duas. “Não só chumbo, mas alumínio, fósforo e outros metais”, diz Pereira, que dirige o Laboratório de Química Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará. “Eu me concentro no chumbo porque o chumbo é cancerígeno. Ele mata as pessoas.”

Pereira e uma equipe de pesquisadores encontraram solo ao redor da refinaria que tinha o dobro do limite legal de chumbo, que eles atribuíram aos vazamentos das lagoas de rejeitos da indústria de alumina. Os peixes tinham chumbo excedendo os limites legais e a água tinha concentrações de alumínio cerca de 57 vezes maiores do que os níveis aceitos.

Pereira, cuja pesquisa foi publicada em revistas especializadas, também testou o cabelo dos residentes e encontrou níveis elevados de alumínio em 90% das amostras. Os níveis de chumbo eram até três vezes o limite. “Você não vê esse tipo de nível naturalmente”, diz Pereira, que parece exausta depois de anos lutando para limpar Barcarena. “Não há lugar em Barcarena onde a água não esteja poluída.”

Pesquisadores do Instituto Evandro Chagas, vinculado ao Ministério da Saúde, encontraram pessoas que vivem na zona industrial de Barcarena com até 10 vezes o nível recomendado de chumbo no sangue, muito mais alto do que em uma comunidade mais distante. Marcelo Lima, pesquisador de saúde pública do instituto, diz que testes de alumínio, cádmio, manganês e bário também mostraram níveis elevados.

O chumbo se acumula nos ossos e pode causar danos renais e neurológicos. Quantidades excessivas de alumínio podem resultar em perda de cabelo, fraqueza muscular e crescimento retardado em crianças.

Lima diz que os defeitos congênitos que foram relatados, bem como a perda de cabelo, distúrbios digestivos, problemas de pele, disfunções neurológicas e cânceres, podem estar todos ligados ao ambiente tóxico ao redor da refinaria. “Com certeza o motivo é a poluição”, diz ele. “Mesmo que as fontes de exposição terminem, o indivíduo ao longo dos anos manterá níveis elevados de chumbo no corpo.”

A Casa Civil documentou a “contaminação crônica por alumínio” nos rios e córregos de Barcarena em 2018. O órgão observou que os rios ao redor da Alunorte estavam poluídos com alumínio e chumbo comparando testes de linha de base antes da construção da refinaria com níveis em estudos de Pereira e órgãos governamentais. O relatório da Casa Civil culpou a “atividade industrial”, acrescentando que a alta de 2018 foi insuficiente para explicar os altos níveis.

Outro relatório de 2018, resultante de uma investigação parlamentar estadual, disse que a Alunorte era responsável por um histórico de danos ambientais e observou que a empresa usava semântica e interpretações textuais duvidosas em uma tentativa de escapar da responsabilidade por suas ações.

Uma porta-voz da Hydro negou que as operações em Barcarena tenham causado qualquer dano ambiental. “A denúncia contra a Hydro e entidades brasileiras se refere a uma mistura de supostos fatos que não ocorreram e eventos definidos que ocorreram, mas com impacto limitado e sem impacto duradouro no entorno”, disse ela. Ela também disse que altas concentrações de alumínio e outros metais no meio ambiente ocorrem naturalmente e não estão restritas à área ao redor da Alunorte.

Durante uma visita à refinaria em setembro, o diretor de operações da Alunorte, Carlos Neves, que estava de plantão no momento do incidente de 2018, insiste que era “apenas água da chuva” e afirma que não houve vazamento de resíduos cáusticos. Um cano de esgoto que o governo disse que a Alunorte usava clandestinamente e foi autuado em sete infrações estava com uma pequena rachadura e não estava sendo usado na época, disse. Quanto à fumaça que sai da refinaria, que segundo os moradores os fazem sufocar e lacrimejar, Neves as chama de “puramente água”.

O relatório anual de 2022 da Hydro para operações globais reconhece que a Alunorte teve emissões de dióxido de enxofre e dióxido de nitrogênio, que, segundo especialistas, podem causar queimaduras na garganta, olhos e pulmões. A empresa diz que as emissões foram “principalmente do uso de carvão como fonte de energia na Alunorte” e da eletrólise na fundição de alumínio da empresa do outro lado da rua.

Neves diz que as emissões da Alunorte estão “bem abaixo de todos os parâmetros legais”. Ele diz que a empresa está convertendo seus processos a carvão em gás natural liquefeito e planeja eliminar totalmente o carvão até 2030. Isso poderia reduzir as emissões de dióxido de carbono em 2,4 milhões de toneladas anualmente, aproximadamente o que a Islândia produz.

A refinaria desativou a sua primeira área de recolha de resíduos e revestiu-a com uma camada impermeável onde planta árvores. “Estamos cada vez melhores a cada dia”, diz Neves. Em fevereiro, a Hydro anunciou que planejava construir uma nova fábrica na Alunorte até 2024 para processar ainda mais os resíduos de bauxita.

A Hydro observou que não é a única indústria em Barcarena. Perto há uma fábrica que produz caulim, usado para cerâmica e para branquear papel, que foi responsabilizada por incidentes ambientais, incluindo derramamento de efluentes não tratados em cursos d’água e uma explosão química em dezembro de 2021. Outra fábrica, a fundição de alumínio de propriedade majoritária da Hydro, faz hastes e cabos. Mas essas plantas são muito menores que a Alunorte.

Para Maria Cardoso, uma avó na casa dos 70 que mora ao lado da Alunorte, a prova da culpa da Hydro está na água marrom-avermelhada que veio da direção da usina e inundou sua modesta casa em 2018, junto com uma lista de dores e doenças que ecoam as de duas dúzias de outros moradores entrevistados em setembro.

Cardoso levanta duas garrafas, que um funcionário da cidade que acompanha um repórter da Bloomberg confirma que Cardoso coletou em sua propriedade no dia da enchente. A água era tão tóxica que matou suas galinhas, diz Cardoso, apontando para onde ficava o galinheiro.

A cidade lacrou o poço em seu quintal depois disso, mas quando ela e seus vizinhos usam outro no final de sua rua, eles ficam doentes, diz ela. “Quero saber, por que não posso beber água do meu poço?” Cardoso pergunta. “A empresa diz que nada aconteceu aqui, então por que não? Eles não respondem a isso.”

Ela sussurra que dois homens armados bateram em sua porta depois que ela entrou no processo e ameaçaram matá-la. Agora, um dos filhos dela trabalha na Alunorte, e Cardoso se mostra cautelosa quando ele chega para ouvir. “Sinto-me dividida porque é uma situação difícil”, diz ela. “No entanto, meu filho ficar desempregado seria uma situação mais difícil.”

Vários outros reclamantes também dizem ter sido ameaçados. Alguns apresentam marcas de queimaduras nas pernas, que dizem ser de água descartada pela Alunorte. Alguns mostram fotos de si mesmos ficando carecas, uma condição que persistiu até que parassem de beber a água local. A maioria dos moradores agora recebe água da cidade em jarros de 5 galões, pagos pela Hydro, que concordou com as medidas de emergência exigidas pelo governo após o incidente de 2018. Não cobre as necessidades de famílias maiores para beber, cozinhar, tomar banho e regar suas árvores frutíferas, então as pessoas recorrem à água da torneira de qualquer maneira.

Nem todo mundo recebe água, e alguns dizem que ela é negada àqueles que criticam publicamente a Hydro. “A empresa me marcou”, diz Ângela Santiago, 62 anos, que diz ter parado de receber água. “Eles escolhem quem querem que receba água e quem não”. Ela mostra a toalha manchada que mantém sobre a torneira da cozinha, que fica marrom lamacenta depois que a água da torneira passa por ela.

Na mesma rua, Graciete Valente da Silva também não recebe água. Ela vai até a casa da mãe a cerca de 10 minutos de moto para dividir a dela quando pode. Seu filho de 10 anos frequentemente vê seu cabelo caindo nas páginas de seus livros escolares, diz ela, e ele sofre de dores de cabeça e letargia. “Esses exames mostram que estamos tão poluídos quanto o meio ambiente por essa empresa”, diz Silva, cujo cabelo e sangue apresentavam os níveis mais altos de alumínio e chumbo entre os moradores de Barcarena que mostraram à Bloomberg seus exames médicos.

Após o incidente de 2018, diz ela, ficou mais difícil respirar. Ela sofre de dores de cabeça, perda de memória e não se sente bem. À noite, quando as emissões podem ser vistas vindo da Alunorte, o ar “fica pesado por aqui, parece pimenta ao respirar”, diz ela. “A noite chega e tudo que eu quero é dormir. Não sabemos se vamos acordar.”

A Hydro ainda está financiando o fornecimento de água, mas há anos atrasa outras promessas feitas em um acordo com o governo após o vazamento, diz Maria Olívia Pessoni Junqueira, promotora federal que ajuda a monitorar o cumprimento do acordo. Desde o fim da pandemia, que atrasou a implementação de algumas disposições, e à medida que a Bloomberg começou a fazer consultas, ela viu uma aceleração nos esforços da Alunorte para cumprir suas obrigações. “Mas ainda não estou satisfeita”, diz Pessoa. “Temos um longo caminho a percorrer em relação à transparência.”

A porta-voz da Hydro diz que a empresa não está parando. Ela diz que a Hydro cumpriu muitas de suas obrigações e outras ainda estão em andamento. E ela diz que a empresa não retém água de seus críticos. Algumas pessoas foram dispensadas depois de ingressar em outros programas de apoio, diz ela. A Hydro também negou qualquer envolvimento em supostas ameaças contra moradores, apontando para um alto nível de violência de gangues na área.

O acordo não incluiu um cronograma para a Hydro realizar estudos epidemiológicos e de impacto ambiental obrigatórios ou exigir qualquer limpeza, e os moradores estão fartos. É por isso que eles entraram com uma ação no ano passado na Holanda, onde a Hydro também tem operações, buscando compensação para fornecer assistência médica e remediação. Muitos moradores dizem que esperam se mudar se receberem algum dinheiro.

Nem todo mundo quer sair. “Chegamos aqui primeiro”, diz Socorro, cujo grupo representa indígenas, mestiços e descendentes de ex-escravizados que dizem que seus direitos à terra não foram honrados quando a refinaria foi construída, antes de a Hydro adquiri-la. “É a nossa terra. Essa empresa maligna precisa ir embora.”

Aqueles que lutam contra a poluição em Barcarena apontam para a ironia de que o governo norueguês, dono de 34% da Hydro, tem sido um dos críticos mais ferrenhos do histórico ambiental do Brasil, criticando funcionários públicos e empresas por seu papel na aceleração do desmatamento. Também financiou esforços de preservação da Amazônia. “Fico muito brava quando ouço os noruegueses dizerem que não sabemos cuidar da Amazônia”, diz Pereira, química da Universidade do Pará. “Se a Noruega está defendendo a Amazônia com tanta força, por que eles estão deixando todo esse lixo para nós?”

O governo da Noruega diz que as operações da Hydro no Brasil têm sido objeto de discussões com a empresa. “O governo norueguês espera que as empresas totalmente ou parcialmente estatais liderem o trabalho de conduta empresarial responsável”, disse Halvard Ingebrigtsen, secretário de Estado do Ministério da Indústria, Comércio e Pescas, em um e-mail. Ele disse que o processo é uma questão para a empresa resolver.

Luiz Inácio Lula da Silva, empossado como presidente do Brasil em janeiro, disse que o combate ao desmatamento da floresta tropical será uma prioridade. Lidar com a poluição nas operações industriais será mais difícil, em parte por causa do sistema judiciário bizantino do Brasil e da corrupção onipresente. Muitas minas estão em regiões remotas nas profundezas da floresta amazônica.

Órgãos ambientais minguaram na última década e não têm recursos para fazer inspeções regulares, mesmo em instalações próximas a grandes cidades como Belém. Espera-se que Lula os reforce, mas essas equipes provavelmente se concentrarão na captura de desmatadores ilegais.

A Alunorte e a MRN foram certificadas no ano passado pela Aluminium Stewardship Initiative, um grupo com sede na Austrália que descreve sua missão como a promoção do fornecimento responsável de alumínio e cujos membros incluem grandes produtores como Hydro e Rio Tinto. A certificação envolve auditorias, visitas ao local e coleta de informações públicas para determinar se uma empresa atende aos padrões do grupo.

Mas algumas organizações sem fins lucrativos que monitoram as empresas de mineração dizem que as certificações da ASI dependem muito das declarações das próprias empresas. Os processos da organização “carecem de detalhes, rigor e transparência para avaliar adequadamente se as empresas e suas instalações estão respeitando os direitos humanos”, escreveram a Human Rights Watch e a Inclusive Development International em uma carta à ASI em fevereiro passado.

Um porta-voz da ASI disse que o grupo fortaleceu seus critérios de direitos humanos em resposta e que seu processo de certificação “foi projetado para apoiar o rigor e a integridade”. Jim Wormington, pesquisador sênior da Human Rights Watch, diz que “uma mudança mais profunda é necessária, incluindo uma participação mais forte da comunidade nas auditorias, relatórios de auditoria totalmente transparentes e padrões mais detalhados que se concentram nos impactos no terreno”.

A Ford diz que reduziu o peso de cada caminhão em até 700 libras-peso quando mudou de aço para alumínio na versão a combustão da F-150 em 2015. No início, a Alcoa era o principal fornecedor, mas depois que dividiu sua unidade de peças das operações de matérias-primas em 2016, outras empresas cresceram.

A antiga unidade de fabricação de peças da Alcoa, a Arconic, agora fornece os painéis que envolvem a cabine de passageiros das versões elétrica e padrão da F-150, juntamente com a Novelis, uma unidade da indiana Hindalco Industries. A Constellium, uma empresa francesa, fabrica as faixas sob as portas e a acima do para-brisa, para a Lightning EV.

Todas as três empresas usam alumínio comprado de fundições da Alcoa ou da Rio Tinto na província de Quebec, no Canadá, que recebem alumina da Alunorte, de acordo com registros de remessas analisados pela Bloomberg News e pessoas familiarizadas com as cadeias de suprimentos que pediram para não serem identificadas para evitar comprometer os relacionamentos.

A maior dessas fundições, a maior das Américas, é a Aluminerie Alouette, com sede em Quebec, 40% de propriedade da Rio Tinto e 20% da Hydro. Ela diz que obtém três quartos de sua alumina da Alunorte e envia lingotes de alumínio para os EUA diretamente ou por meio de tradings como a Trafigura.

Cerca de 90% da alumina importada pelo Canadá em 2021 veio do Brasil, segundo estatísticas do governo canadense. Quase tudo isso é feito de bauxita que vem de minas na Amazônia, incluindo MRN e Paragominas. A Alunorte envia 29% de sua produção para o Canadá, segundo a Hydro.

Os Estados Unidos, que produzem menos de 1 milhão de toneladas das 5 milhões de que necessita anualmente, importam 75% do alumínio produzido no Canadá.

É assim que a alumina de origem amazônica acaba no metal usado pelos fabricantes de autopeças dos EUA, bem como em latas de cerveja, aviões e materiais de construção. Ao longo do caminho, ela é misturada com alumina de outras refinarias, inclusive da Alumar, tornando difícil dizer quanto há de bauxita brasileira ou alumina da Alunorte em determinada peça.

A Rio Tinto não quis comentar sobre sua cadeia de suprimentos, assim como a Arconic. A Alcoa disse que define métricas ambientais, de direitos humanos e de desenvolvimento sustentável para seus fornecedores.

Uma porta-voz da Constellium disse que todos os seus fornecedores são obrigados a assinar um acordo de código de conduta e cumprir uma política de gerenciamento responsável da cadeia de suprimentos, e que a Rio Tinto é certificada pela ASI. A Novelis disse o mesmo. A Ford apontou para seu código de conduta e uso da certificação ASI para verificar sua cadeia de suprimentos.

A Hydro possui uma planta de extrusão em Cressona, Pensilvânia, uma instalação da Segunda Guerra Mundial que gastou milhões para se modernizar e expandir. Lá, lingotes da Alouette e de outros lugares são misturados com alumínio reciclado e transformados na tubulação que será colocada ao redor das estruturas de aço da F-150 EV. As peças são enviadas para Dearborn de caminhão — a última etapa de uma jornada de 8.400 km das minas de bauxita na Amazônia.

No complexo de Rouge, onde a Ford fabrica carros há quase 100 anos, a tubulação é montada junto com milhares de outras peças em picapes de 563 cavalos com motores elétricos duplos.

A Ford planeja aumentar a produção da Lightning EV para uma taxa anual de 150 mil veículos ainda neste ano, a preços a partir de US$ 56 mil. O verdadeiro custo, diz Moraes, advogado que representa os demandantes em Barcarena, “é a saúde da população, com injustiça social e muita degradação ambiental”.

- Atualizado às 12h de 28 de fevereiro com a íntegra da reportagem.

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