Vaca Muerta: o megacampo de gás argentino que o BNDES deve financiar

Novo trecho do gasoduto Néstor Kirchner reduziria dependência do Brasil do gás da Bolívia, mas custos e gargalos no escoamento levantam questionamentos

Instalação para extração de gás de xisto na região conhecida como Vaca Muerta, na Argentina
13 de Fevereiro, 2023 | 05:00 AM

Bloomberg Línea — Vaca Muerta era um nome desconhecido no Brasil até poucas semanas atrás. O megacampo de gás natural da Argentina veio à tona após o governo do país vizinho dizer que o BNDES financiaria o novo trecho do gasoduto Néstor Kirchner para que o insumo possa abastecer o mercado brasileiro.

O plano é, para a Argentina, obter financiamento a taxas atrativas para escoar gás de uma das maiores reservas do país; para o Brasil, reduzir a dependência do insumo importado da Bolívia. O presidente Lula recentemente defendeu o crédito do BNDES para o projeto. Mas, afinal, faz sentido para a economia brasileira diante do crédito estimado de US$ 690 milhões (cerca de R$ 3,6 bilhões)?

Na teoria, o plano é factível. Na prática, porém, sobram dúvidas sobre custos, tempo de implantação do projeto e até disponibilidade da produção para o Brasil, dado que o vizinho é um grande consumidor de gás no inverno – tornando-se inclusive importador nas estações mais frias do ano. Foi o que apontaram especialistas consultados pela Bloomberg Línea nos últimos dias.

Vaca Muerta é uma grande área com óleo não-convencional (shale gas) na Província de Neuquén, no oeste da Argentina, com vários campos produtores e contratos de diferentes operadoras.

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Estima-se que a produção do campo atinja um pico de 1,2 milhão de barris de óleo equivalente por dia (boed) em 2033. Para efeito de comparação, a produção total da Petrobras (PETR3, PETR4) no quarto trimestre de 2022 atingiu 2,64 milhões de boed.

Segundo a consultoria especializada Wood Mackenzie, a produção total de hidrocarbonetos em Vaca Muerta atingiu um recorde histórico de 706 mil boed em junho de 2022.

Uma parcela relevante dessa produção é operada pela estatal argentina YPF, mas petroleiras estrangeiras, como Shell (SHEL), Total (TTE) e ExxonMobil (XOM) também estão presentes na exploração do campo, mostra levantamento da Wood Mackenzie.

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O diretor de pesquisa na área de upstream para América Latina da consultoria global, Marcelo de Assis, explicou que, diante do aumento expressivo da produção na região, é preciso elevar a capacidade de transporte do gás associado à produção, sob pena de limitar os volumes de petróleo.

“A produção de Vaca Muerta está aumentando, por isso é tão crítico que haja a construção de um novo gasoduto”, disse o especialista.

Gasoduto Néstor Kirchner

A previsão é que o primeiro trecho do gasoduto Néstor Kirchner, que ligará Neuquén a Buenos Aires, fique pronto entre 2023 e 2024. Um segundo trecho levaria o insumo da capital argentina até a Província de Santa Fé, onde já existe uma ligação de dutos até Uruguaiana, no Rio Grande do Sul.

No município gaúcho, há uma usina térmica que não fica ligada o ano todo, disse o sócio fundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Adriano Pires.

“Para ser economicamente viável, o projeto de distribuição de gás de Vaca Muerta para o Brasil precisa necessariamente de uma ligação de Uruguaiana para Porto Alegre, onde há os chamados consumidores-âncora, que demandam gás o ano inteiro”, afirmou.

Além de abrigar o polo petroquímico de Triunfo, Porto Alegre pode ter uma nova térmica, disse o especialista, que chegou a ser convidado para comandar a Petrobras no ano passado, mas recusou. “Também é possível emendar a nova infraestrutura ao gasoduto já existente Brasil-Bolívia, permitindo o transporte de gás para Santa Catarina e Paraná.”

Segundo Pires, a integração na área de gás entre Brasil, Bolívia e Argentina é um sonho antigo do setor e dos governos envolvidos. “O projeto faz todo sentido, o problema é que a Argentina e a Bolívia não são parceiros confiáveis”, avaliou.

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Ele lembrou que, no passado, governos dos dois países mudaram regras dos contratos de fornecimento de gás para o Brasil, com aumentos de preços não previstos, ameaças de cortes de suprimento e fim dos incentivos à produção do insumo, o que acabava limitando a oferta disponível.

Instalações em Fortín de Piedra, parte da área geológica conhecida como Vaca Muertadfd

“Essa integração nunca acontece porque não há segurança jurídica e estabilidade regulatória. Com a mudança de governos, inclusive no Brasil, de repente o vizinho se torna um inimigo”, disse. “A ideia é boa porque precisamos de gás, mas, se essa infraestrutura toda não for feita, não adianta.”

De acordo com o CEO da consultoria especializada Gas Energy, Rivaldo Moreira Neto, o trecho de gasoduto de Uruguaiana até Porto Alegre teria cerca de 600 quilômetros. “Estamos falando de um projeto de alguns bilhões de reais.”

Ele disse que os planos do governo argentino de expandir a infraestrutura de escoamento de Vaca Muerta não são novos e que a crise cambial no país vizinho atrapalhou o projeto.

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“É difícil atrair investimentos para o gasoduto, as tarifas ficaram congeladas por muito tempo. Por isso o governo foi buscar o BNDES, porque não há capital interno e interesse externo para o projeto”, disse Moreira.

Choque do gás

Pires disse que a diversificação das fontes de energia é algo que tem se mostrado uma necessidade no mundo todo. “Quanto mais oferta de gás, mais competitivo será o mercado brasileiro. Principalmente após a guerra na Ucrânia, percebemos o tamanho do problema causado pela dependência de uma só fonte de energia”, afirmou.

Com o aumento das sanções à Rússia em decorrência do conflito, as cotações do gás natural na Europa quase triplicaram em poucos meses (veja gráfico abaixo), evidenciando a dependência da região em relação à oferta russa. “Tivemos o primeiro choque do petróleo, o segundo e agora o choque do gás natural”, disse Pires.

A alternativa que vem ganhando mais força nos últimos anos é o gás natural liquefeito (GNL), que pode ser transportado por navios.

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No entanto, para que essa opção se torne possível, é preciso que haja plantas de liquefação (na origem) e de regaseificação (no destino).

No Brasil, há terminais de regaseificação de GNL no Ceará, no Rio de Janeiro, na Bahia e em Sergipe e operações futuras em Santa Catarina, São Paulo e Pará. Adicionalmente, há estudos para novas plantas em Pernambuco, Espírito Santo e no Maranhão.

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O analista de petróleo e gás da Tendências Consultoria, Walter de Vitto, afirmou que uma parcela importante do consumo de gás no Brasil vem da produção doméstica, além da Bolívia, o que reduz por ora essa dependência de navios. “O GNL é mais caro e serve para complementar o suprimento.”

Para Moreira, o GNL deve ter um papel importante no mercado brasileiro, mas o contexto de preços internacionais não favorece a competitividade brasileira. “Se quisermos comprar GNL, vamos competir com a Europa. Quem paga mais vai garantir suprimento.”

Gás que vem do pré-sal

Pires afirmou que, embora a opção do gás argentino seja bem-vinda, a prioridade precisa ser o insumo brasileiro, principalmente do pré-sal.

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Segundo o especialista, o volume de reinjeção de gás no pré-sal – quando o insumo é extraído no processo produtivo, mas “devolvido” ao campo – chega a quase 70 milhões de metros cúbicos por dia.

Um dos principais motivos para essa reinjeção é a falta de um mercado consolidado e estável, com demanda ao longo de todo o ano, disse Moreira.

A solução para isso, segundo Pires, é aumentar a capacidade de transporte de gás do pré-sal para a costa brasileira.

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“Para mandar o gás extraído de águas ultraprofundas para o litoral, precisamos dos consumidores-âncora”, disse o especialista, citando indústrias de fertilizantes, aço e químicos, entre outras.

Assis disse que alguns projetos que ainda terão pico de produção no Brasil vão agravar o problema da falta de capacidade de transporte de gás localmente. “Alguns deles vão ter 100% de reinjeção.”

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Juliana Estigarríbia

Jornalista brasileira, cobre negócios há mais de 12 anos, com experiência em tempo real, site, revista e jornal impresso. Tem passagens pelo Broadcast, da Agência Estado/Estadão, revista Exame e jornal DCI. Anteriormente, atuou em produção e reportagem de política por 7 anos para veículos de rádio e TV.