‘Terceiro turno’ pode levar Brasil a uma crise, diz professor de Harvard

Para Steven Levitsky, co-autor do livro ‘Como as Democracias Morrem’, eventual vitória de Lula não significa preferência pela esquerda, mas descontentamento com governo atual

El analista político es director del Centro David Rockefeller de Estudios Latinoamericanos de la Universidad de Harvard. (Foto: LAP_WilsonCenter / Flickr)
28 de Outubro, 2022 | 09:10 AM

Bloomberg Línea Brasil — Para Steven Levitsky, professor da Universidade Harvard e co-autor do livro “Como as Democracias Morrem”, a perspectiva de um resultado apertado no segundo turno das eleições aumenta as chances de a disputa no Brasil ter um desfecho como ocorreu nos Estados Unidos há cerca de dois anos. O que se convencionou chamar no mercado de terceiro turno.

O ex-presidente Donald Trump custou a reconhecer a derrota para Joe Biden em 2020, com alegações de fraude sem apresentação de provas, o que acirrou o ambiente político polarizado. Houve a invasão do Capitólio, o Congresso americano, por manifestantes em janeiro de 2021, em ato sem precedente na história da democracia americana, que serve historicamente como exemplo para o Ocidente.

“O republicano [Donald Trump] mostrou a Bolsonaro que isso pode ser feito, e o brasileiro deu a entender que poderia fazer algo do tipo [em caso de derrota]. Acredito que a eleição deva ser muito apertada e que contestá-la pode levar a uma crise”, afirmou em entrevista à Bloomberg Línea.

Problemas do Brasil continuam

Por outro lado, o pesquisador avalia que uma eventual vitória do petista não resolve os principais problemas dos brasileiros. Ele ressalta que, em todo o mundo - e em especial na América Latina -, há uma onda de descontentamento com os governos, sejam de esquerda ou de direita. Em uma eventual vitória de Lula, a direita deve continuar sendo forte.

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“São quase dez anos complicados economicamente [na América Latina], além de escândalos de corrupção horrendos em muitos países, sendo que o Brasil é um deles. Outros fatores, como o crime e a violência, também estão aumentando nos últimos anos, em níveis muito, muito altos em alguns países da região, e os serviços públicos têm sido bastante medíocres”, disse Levitsky, que tem a região como uma das áreas de especialização.

“É por isso que os eleitores estão querendo tirar os seus governantes do poder.”

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada para fins de clareza:

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Bloomberg Línea: Como as eleições de 2022 se diferenciam das de 2018?

Steven Levitsky: A eleição deste ano é diferente da de 2018 de algumas maneiras. Agora sabemos muito mais sobre quem é Bolsonaro, e como ele vai governar. Houve alguma incerteza em 2018, embora ele tenha deixado bem claro ao longo de sua carreira que ele não era tão comprometido assim com as regras democráticas. Agora ele está no governo há quatro anos e os brasileiros o conhecem muito melhor.

Mas, mais importante do que isso, acho que há muitas evidências de que quanto mais tempo os autocratas eleitos estiverem no poder, mais danos eles causarão. E, em particular, em democracias fortes e em instituições como os Estados Unidos e o Brasil — e, depois de serem ameaçadas, leva um tempo para que as instituições sejam, de fato, desgastadas.

Demora para que um autocrata ganhe o controle para corromper e gerenciar totalmente as estruturas. E, em oito anos, um autocrata eleito pode causar muito mais dano do que em quatro anos, e é por isso que era tão importante nos Estados Unidos que Donald Trump fosse tirado do jogo. E a mesma situação se repete no Brasil agora.

Se o Bolsonaro ficar oito anos no poder, já tendo falado sobre a Suprema Corte, por exemplo, a sua capacidade de controlar instituições estatais muito importante, das forças militares às autoridades eleitorais e aos tribunais, seria muito ampliada. Ele seria muito, muito mais perigoso no segundo mandato do que foi no primeiro.

Qual é o risco de enfraquecimento da democracia no Brasil? Há risco de golpe?

Não acredito que aconteça um golpe como o que Getúlio Vargas deu no começo do século 20. Seria uma erosão muito mais lenta, em que um governo eleito continua com um mandato constitucional, mantendo uma instituição formal da democracia, mas gradualmente corroendo-a. Então eu não tenho certeza se veríamos algo que se caracterizaria como golpe no senso geral da palavra.

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Não posso prever quem vai ganhar as eleições e o que vai acontecer. Sabemos, no entanto, que vai ser uma eleição muito apertada e ficaria surpreso se qualquer um dos candidatos ganhasse por uma grande margem. Isso é muito lamentável porque aumenta o risco de acontecer no Brasil o que aconteceu nos Estados Unidos quando Joe Biden foi eleito.

Bolsonaro, como Trump, deve questionar o resultado das eleições e se recusar a aceitá-lo, alegando uma fraude sem fundamento, o que pode criar uma crise. O republicano mostrou a Bolsonaro que isso pode ser feito, e o brasileiro deu a entender que poderia fazer algo do tipo. Acredito que a eleição deva ser muito apertada e que contestá-la pode levar a uma crise.

Se Bolsonaro ganhar a presidência, é provável que o Brasil continue a avançar em uma direção autoritária. Se Lula vencer, há risco de uma crise logo no início do governo — também como houve com Biden —, mas, passado esse choque inicial, se o Brasil conseguir passar por essa situação, as chances de restauração e de reequilíbrio da democracia são mais altas.

A vitória do petista, obviamente, não resolve todos os problemas enfrentados pelo povo brasileiro. E o PT não se renovou tanto quanto deveria nos últimos quatro anos, e vai ter que se reinventar, especialmente em uma possível era pós-Lula. O partido vai ter que fazer isso de qualquer maneira, mesmo se perder.

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Partidos de esquerda tiveram vitórias nas eleições em países da América Latina nos últimos anos, como Colômbia, Peru, Chile e Argentina. O senhor vê um movimento mais amplo de fortalecimento da esquerda na região?

Não. O que vejo é um alto nível de descontentamento com os atuais governos, o que não é muito diferente dos Estados Unidos. A direita ainda é muito forte nos Estados Unidos e deve continuar sendo no Brasil e na América Latina.

Os latino-americanos em quase todos os países da região não estão satisfeitos com seus governos, e por muitas razões. As economias latino-americanas estão, em sua maioria, passando por problemas desde o fim do ciclo de alta das commodities por volta de 2014.

São quase dez anos complicados economicamente, além de escândalos de corrupção horrendos em muitos países, sendo que o Brasil é um deles. Outros fatores, como o crime e a violência, também estão aumentando nos últimos anos, em níveis muito, muito altos em alguns países da região, e os serviços públicos têm sido bastante medíocres.

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É por isso que os eleitores estão querendo tirar os seus governantes do poder, votando principalmente em pessoas de fora, em partidos e candidatos que estão longe do status quo político.

Vimos isso no Peru, com a eleição de Pedro Castillo, no Chile, com Gabriel Boric, e na Colômbia, com Gustavo Petro. Acho que a direita provavelmente será eleita na Argentina na próxima eleição. Isso indica um afastamento dos eleitores dos titulares e dos candidatos do establishment.

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Isso tudo não mostra uma curva à esquerda. De fato, estamos vendo um fortalecimento de uma ala política, a da direita liberal, em toda a América Latina, em boa parte relacionado a uma resposta à violência. Quando as pessoas se sentem inseguras, quando estão com medo, elas muitas vezes se voltam para a direita.

Vemos isso no Brasil. Ao mesmo tempo, existe uma onda de movimentos políticos evangélicos que são de extrema-direita, que estão reagindo a certas mudanças culturais sociais, como legislações relacionadas ao feminismo, a direitos LGBTQA+ e à maior igualdade para membros historicamente marginalizados da sociedade.

O senhor publicou seu livro em 2018. Identifica alguma mudança sobre as ameaças à democracia ao redor do mundo desde então?

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Desde que escrevemos nosso livro, os Estados Unidos deixaram completamente de ser um modelo para a democracia e pararam até mesmo de promovê-la. Joe Biden está tentando restabelecer os EUA como um defensor global da democracia liberal. Mas, para melhor ou pior, o país basicamente desistiu desse papel depois de Trump e do dia 6 de janeiro — isso impossibilitou a visão dos EUA como um paraíso democrático.

E isso tem impacto global porque os Estados Unidos são um estado muito poderoso e influente. O mundo não é como na década de 1990; os EUA não são tão poderosos e influentes como há 25 anos. A Europa não é tão poderosa ou influente como era há 25 anos. Tanto a Europa quanto os Estados Unidos têm suas próprias crises, lidaram com crise econômica e com o autoritarismo aumentando. O oeste não é o que era.

A China cresceu muito nestes últimos anos. A Rússia se tornou muito mais agressiva do que era na década de 1990 como um ator anti-liberal. Portanto, temos um mundo em que o ocidente liberal não é dominante como era há 25 ou 30 anos, e isso tem consequências negativas para a democracia liberal.

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Mas não sou totalmente pessimista sobre o destino da democracia. É verdade que perdemos democracias em países importantes, como a Nicarágua, mas vemos países como o Brasil e os Estados Unidos lutando para reestabelecê-la. O jogo da democracia ainda não acabou.

Usando uma metáfora de futebol, estamos agora no segundo tempo e há uma boa chance de a democracia brasileira, com todos os seus muitos, muitos, muitos problemas, sobreviver a esse processo. Assim como os Estados Unidos sobreviveram a Trump.

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Tamires Vitorio

Jornalista formada pela FAPCOM, com experiência em mercados, economia, negócios e tecnologia. Foi repórter da EXAME e CNN e editora no Money Times.