À espera de Brasília, empresas investem de olho na ‘Arábia do hidrogênio verde’

Brasil tem energia eólica a custo competitivo e localização privilegiada para negócios com a Europa, mas falta um plano nacional para essa fonte renovável, segundo especialistas

Uma grande vantagem na produção do hidrogênio verde é a fonte renovável a partir de espaços abertos nas regiões com mais vento (Foto: Maria Magdalena Arrellaga/Bloomberg)
Por Peter Millard
30 de Junho, 2023 | 05:05 AM

Bloomberg — Os matagais repletos de cobras e tatus da Serra da Babilônia, no nordeste do Brasil, são impressionantes. Ali, a energia renovável tem transformado o Brasil, e a economia do hidrogênio verde do país começa a se estabelecer.

A Casa dos Ventos, maior empresa geradora de energia eólica do país, acaba de instalar 80 turbinas. As torres produzem energia suficiente para abastecer uma pequena cidade, mas a geração ali tem outro destino. O principal comprador é a produtora de produtos químicos Unigel, que a utilizará para dividir moléculas de água e produzir hidrogênio em um porto no litoral da Bahia.

“Vemos o Brasil como líder na economia do hidrogênio verde por um motivo principal: a disponibilidade de energia renovável”, disse o diretor da Unigel Luiz Felipe Fustaino.

A Unigel transformará o hidrogênio em amônia verde, para se tornar a primeira exportadora do Brasil. A amônia produzida a partir do carvão ou do gás natural é um dos produtos químicos industriais mais comuns e é usada na fabricação de fertilizantes, plásticos e têxteis. A amônia verde permite que o Brasil leve sua energia renovável para o mundo todo.

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Diferentemente da eletricidade que depende de linhas de transmissão, a amônia pode ser resfriada, armazenada e depois enviada a clientes. A Casa dos Ventos faz parte de outro empreendimento com parceiros que incluem a TransHydrogen Alliance e o Porto de Roterdã para exportar volumes ainda maiores para a Europa.

A energia renovável é um dos negócios que mais crescem no país, cuja economia ainda está afetada pelas taxas de juros mais elevadas em seis anos. A capacidade de geração eólica e solar cresceu 260% de 2017 a 2022, e esse percentual continua a aumentar graças a projetos como os da Babilônia.

A demanda global por hidrogênio verde pode estimular mais crescimento. O consumo global de hidrogênio precisa mais do que quintuplicar e chegar a 500 milhões de toneladas em 2050 para que as emissões mundiais atinjam zero líquido, de acordo com a BloombergNEF.

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Se esse aumento acontecer, ele transformará algumas das partes mais difíceis de renovar da economia global, como agricultura, transporte marítimo, siderurgia, refino de petróleo e até mesmo a aviação.

O Brasil está pronto para aproveitar o momento. O país tem a energia eólica mais barata das Américas devido aos ventos consistentemente fortes em lugares como Babilônia, e sua localização lhe dá uma vantagem.

A costa nordestina está estrategicamente posicionada para exportações para a Europa e, mesmo incluindo os custos de transporte, a amônia verde brasileira é mais barata do que a produção subsidiada do produto químico na Alemanha, de acordo com a BloombergNEF. Empresas privadas e governos estaduais já procuram transformar a região em um centro de hidrogênio verde.

“Esse novo setor de hidrogênio vai impulsionar mais o desenvolvimento de energias renováveis”, disse Natalia Castilhos Rypl, analista da BloombergNEF que cobre o hidrogênio verde na América Latina. “É um bom sinal para os desenvolvedores de energias renováveis.”

Ainda assim, há muito espaço para o Brasil cometer erros nessa nova fase da transição energética. Ao contrário do Chile, que tem a segunda energia eólica mais barata da região, o Brasil não definiu um plano nacional para o hidrogênio verde com metas e incentivos.

O Congresso ainda está elaborando a legislação para a energia eólica offshore, o hidrogênio verde e os mercados de carbono – algo que a maioria dos desenvolvedores aguarda para dar início aos investimentos de vários bilhões de dólares. Se o Brasil não agir rapidamente, outros países construirão cadeias de suprimentos primeiro. A Unigel preferiria vender a amônia verde localmente, mas não existe uma política para recompensar os compradores do produto químico.

O governo, juntamente com a Petrobras (PETR3, PETR4), também planeja aumentar a produção de gás natural de campos offshore para reduzir os preços até a metade, o que competiria com a energia renovável tanto para a produção de eletricidade quanto de hidrogênio.

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O Brasil é um dos poucos países que se qualificam para termos comerciais preferenciais ao vender hidrogênio para a Europa devido ao domínio das energias renováveis. Se o país construir mais usinas de gás natural, os combustíveis fósseis terão uma participação maior na rede elétrica e o Brasil poderá perder seu status preferencial, de acordo com Rypl.

O Brasil também pode acabar competindo com o hidrogênio verde barato dos Estados Unidos, fortemente subsidiado pela Lei de Redução da Inflação do país. A ideia é que os compradores americanos comprem o combustível, mas se não houver clientes domésticos suficientes, ele poderá inundar o mercado de exportação.

Se o maior país da América Latina acertar a jogada, o hidrogênio verde permitirá uma transição de um setor petrolífero que deve começar a declinar na década de 2030. O Brasil pode produzir o hidrogênio verde mais barato do mundo, excluindo os subsídios, de acordo com a BloombergNEF.

Para ter sucesso, o governo precisa excluí-lo dos impostos de exportação, acelerar o licenciamento das linhas de transmissão e incentivar os vendedores de equipamentos a construir mais usinas no Brasil, disse Antonio Bastos, CEO da empresa de energia renovável Omega Energia. “O Brasil pode ser a Arábia Saudita do hidrogênio verde”, disse. “Podemos competir com os EUA sem nenhum dos subsídios.”

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A primeira turbina eólica do Brasil foi instalada em 1992, mas foram necessários mais 15 anos para que a construção de turbinas realmente se acelerasse. Em 2017, o custo da energia eólica caiu abaixo da energia hidrelétrica, e grandes empresas começaram a aproveitar as regulamentações favoráveis aos negócios do Brasil para comprar eletricidade renovável diretamente de grandes produtores eólicos.

O Brasil é abençoado com amplos espaços abertos nas partes com mais vento no país e uma rede elétrica nacional interconectada, o que facilita a produção de energia limpa em locais remotos e o consumo da quantidade equivalente de elétrons mais perto dos grandes centros populacionais. É por isso que o setor de energia renovável do Brasil conseguiu prosperar.

A capacidade eólica instalada quase dobrou durante seu mandato. Ela continua crescendo, e Lula tem grandes planos para atrair bilhões de dólares para desenvolver instalações eólicas offshore e fornecer energia para uma segunda fase do desenvolvimento do hidrogênio verde.

Os primeiros parques offshore poderiam começar a operar em 2030. Mas primeiro o Congresso precisa aprovar a legislação para o setor offshore neste ano, o que permitiria que os desenvolvedores obtivessem licenças no leito marinho, disse Elbia Gannoum, diretora da Associação Brasileira de Energia Eólica. “Estou trabalhando 24 horas por dia nisso”, disse. “O Brasil precisa criar um marco regulatório.”

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Na Serra da Babilônia, o negócio de energia eólica continua a crescer. Para chegar aos parques, cada caminhão enorme que transporta torres, pás e geradores tem que passar pela pequena cidade de Ourolândia.

Parques eólicos no Nordeste levaram oportunidades para habitantes da região, segundo as empresas (Foto: Maria Magdalena Arrellaga/Bloomberg)dfd

As fortunas de muitos moradores da cidade aumentaram junto com as turbinas. Tamara Leite de Souza, de 20 anos, cresceu em uma estrada de terra que se tornou a principal rota de acesso aos projetos eólicos. Quando criança, sua família cultivava vegetais em um pequeno terreno. Então, há cerca de seis anos, chegaram as empresas de energia eólica. No início, a família vendia aos recém-chegados sucos e coxinhas. Depois, decidiram abrir um restaurante.

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Agora, Tamara estuda enfermagem e gestão ambiental na Universidade do Norte do Paraná. “Há dois anos, isso se tornou realidade, graças ao crescimento da comunidade”, disse ela.

Mais adiante, na caatinga, o setor eólico também muda vidas. Em Mulungu, uma comunidade fundada no século XIX por escravos fugitivos, Edislão dos Santos, de 32 anos, curtia uma tarde de brisa com seus dois filhos e sua família. Turbinas operadas pela Rio Energy, uma das concorrentes da Casa dos Ventos, estavam girando nas proximidades. Segundo ele, empresas de energia eólica ampliaram a estrada, trouxeram serviços básicos e oferecem trabalho temporário nos parques para os moradores locais. “Antes, tínhamos que percorrer oito quilômetros para conseguir água”, disse. “Tudo melhorou.”

Mas nem tudo foi pacífico. Desenvolvedores usam empreiteiras para contratar mão-de-obra local quando a construção está a todo vapor. Às vezes, atrasam o pagamento dos salários e os moradores locais respondem fechando as estradas de acesso. Isso aconteceu em frente ao restaurante de Souza neste ano.

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Negócio da família começou quando decidiram vender sucos e coxinhas aos recém-chegados (Foto: Maria Magdalena Arrellaga/Bloomberg)dfd

A maioria das pessoas, no entanto, gostaria de ver mais turbinas e painéis solares. Mais energia renovável significa mais matéria-prima necessária para produzir hidrogênio verde, o que poderia industrializar seções do litoral e promover uma indústria doméstica de fertilizantes para abastecer o agronegócio dominante no Brasil, disse Lucas Araripe, chefe de novos negócios da Casa dos Ventos.

“Importamos muito fertilizante e poderíamos produzi-lo aqui no Brasil”, disse ele. “Temos muitos setores no Brasil que usarão o hidrogênio verde.”

‘Formigas transportando folhas’

A cerca de 200 quilômetros ao sul da Serra de Babilônia, caminhões enormes que transportam pás e torres congestionam a rodovia principal que leva ao parque eólico de Assurua, administrado pela Omega, também no estado da Bahia. Os enormes componentes fazem com que os caminhões pareçam formigas transportando folhas gigantes.

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A Omega monta uma torre por semana em Assurua e ampliará a capacidade do parque para 800 megawatts ainda neste ano.

No Ceará, a Omega tem planos para um parque solar de 4,6 gigawatts, com mais capacidade de geração do que a quarta maior usina hidrelétrica do Brasil. A empresa trabalha para finalizar um acordo para vender a energia para a mineradora australiana Fortescue, que quer usá-la para produzir hidrogênio verde. As mineradoras usam o hidrogênio verde para abastecer caminhões e máquinas, e ele pode ser usado em fornalhas.

Bastos, CEO da Omega, defende o Brasil. Disse que a Europa procura se libertar do gás russo e ninguém está em melhor posição do que o Brasil para produzir amônia a partir do hidrogênio verde e exportá-la.

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“O sol e o vento que temos vão possibilitar isso”, disse ele.

Para desencadear essa nova fase de desenvolvimento, o governo precisa isentar o setor de impostos e tributos que representam 40% das contas de eletricidade, além de acelerar a construção de linhas de transmissão, disse Bastos.

O governo trabalha para gerar apoio público. Lula e sua equipe econômica se vangloriam regularmente de acordos multibilionários com indústrias europeias e chinesas, bem como com grandes petrolíferas, para impulsionar o hidrogênio verde. Mas, até o momento, o único projeto que conseguiu passar por uma decisão final de investimento foi o da Unigel na Bahia.

Um dos problemas é que o Brasil também tem que competir com os produtores subsidiados do mesmo hidrogênio e amônia dos EUA. Os fabricantes de eletrolisadores (o principal dispositivo que divide a água em hidrogênio e oxigênio) estão com pedidos atrasados, e a maioria vai para os EUA.

A Unigel, que já é uma grande produtora de amônia e outros produtos químicos, disse que está no começo da fila de espera por equipamentos essenciais. Mas precisa encontrar parceiros financeiros para dar andamento à segunda e à terceira fases. Caso contrário, apenas uma fração do seu projeto de US$ 1,5 bilhão se tornará realidade.

“A próxima onda será inaugurada por aqueles que estiverem dispostos a pagar para serem os pioneiros”, disse Gannoum, da Associação Brasileira de Energia Eólica. “A humanidade não espera até esgotar um recurso para começar a usar outro.”

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