Por que grandes locadoras têm reduzido a frota de carros elétricos no Brasil

Empresas do setor têm negociado modelos até com prejuízo diante de demanda aquém do necessário para rentabilizar a operação, segundo fontes que falaram à Bloomberg Línea

José Cruz/Agência Brasil
27 de Março, 2024 | 05:05 AM

Bloomberg Línea — Em uma roda de conversa em um recente evento do setor automotivo em São Paulo, executivos de concessionárias e locadoras chegaram a um raro consenso no setor: os carros elétricos estão muito longe de tomar o mercado. “O mundo não vai ser elétrico”, disseram dois deles.

No mercado de locação, a promessa de eletrificação parece estar ainda mais distante de se tornar realidade. Após um movimento inicial de compra de carros elétricos e híbridos, grandes locadoras estão vendendo essas frotas com prejuízos, segundo apurou a Bloomberg Línea nas últimas semanas com diferentes fontes do setor, ouvidas sob condição de anonimato porque as discussões são privadas.

Uma das primeiras iniciativas consideradas mais importantes na área de eletrificação pelas locadoras aconteceu em meados de 2017 com a Localiza (RENT3).

Na ocasião, a empresa fechou a compra de um lote do híbrido Prius, da Toyota. Mais recentemente, em 2021 e 2022, a Movida (MOVI3) fez uma grande aposta no segmento ao comprar lotes considerados “grandes” de carros eletrificados que incluíram o Nissan Leaf, o Renault Zoe e o Fiat 500e.

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Atualmente, os veículos eletrificados correspondem a pouco mais de 0,5% (8.426 unidades) do total da frota das empresas de locação no país, segundo dados da Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis (ABLA).

A Localiza, maior empresa do setor, não abre dados de frota por segmento. Em resposta à Bloomberg Línea, a companhia disse que “oferece um mix diversificado de modelos e marcas de carros para promover a melhor experiência para seus clientes”.

A locadora acrescentou que a frota “considera também a matriz energética brasileira e a infraestrutura para que a jornada de mobilidade de seus clientes seja fluida e com a menor fricção”.

E informou que a frota de carros flex corresponde a cerca de 95% de seu volume total, todos abastecidos com etanol, “opção mais democrática para o cliente” por ter menos emissões na cadeia do que a gasolina e por ser mais acessível do “ponto de vista financeiro e de infraestrutura”.

Procurada pela Bloomberg Línea, a Movida, segunda maior empresa do setor no Brasil, disse que não comentaria o assunto.

Segundo especialistas desse mercado, para obter uma remuneração considerada “boa” no aluguel de um carro, uma locadora precisa de uma taxa de utilização de pelo menos 75%. A depender do modelo e da empresa, modelos elétricos presentes em frotas não têm chegado a 25% de utilização diante da baixa demanda, relatou um executivo do setor que falou sob condição de anonimato.

Nesse contexto, as locadoras vêm tentando vender os carros que já atingiram uma idade média considerada elevada, ainda que seja a preços baixos, segundo a fonte. Em boa parte dos casos, as vendas são feitas com prejuízo, acrescentou.

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Outro executivo de locadora confirmou que as empresas vêm amargando prejuízos na venda de veículos eletrificados. Ele explicou que o aluguel de diárias – rent a car, ou RAC, no jargão do setor – é um negócio complexo e sofisticado no mundo inteiro, o que dificulta a rentabilização em condições tradicionais. No segmento de carros elétricos, lucrar é ainda mais desafiador.

A Hertz (HTZ), uma das maiores locadoras do mundo, anunciou em janeiro que pretende vender o equivalente a um terço da sua frota de veículos elétricos nos Estados Unidos devido à demanda fraca e aos altos custos de manutenção, segundo explicou à época. Isso significa que a gigante da locação tinha decidido se desfazer de 20.000 carros movidos a bateria.

Modelo de negócios

O anúncio da Hertz teve impacto nas expectativas sobre algumas montadoras com modelos elétricos, que em geral contam com empresas de locação como importantes aliadas na divulgação e na consolidação de seus produtos.

Historicamente, as locadoras são responsáveis por colocar nas ruas grandes lotes de lançamentos das marcas, o que promove principalmente os carros novos. O aluguel também permite que o consumidor teste o veículo por um tempo antes de decidir pela compra.

No segmento eletrificado, a dinâmica não deveria ser diferente. Porém, além da baixa demanda de clientes, as locadoras não têm conseguido comprar os modelos híbridos ou totalmente elétricos mais demandados no varejo com desconto, apurou a reportagem com cinco fontes do setor.

Somando todos esses fatores, a velocidade de expansão dos elétricos no país se torna uma incógnita. De acordo com o presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), Ricardo Bastos, atualmente de 10% a 15% das vendas do segmento é destinada à locação.

“O modelo de locação de elétricos tem crescido. No negócio de aplicativos, por exemplo, está acontecendo uma migração para carros eletrificados. ‘A conta fecha’ muito mais do que nos veículos a combustão”, disse o dirigente.

A exemplo de outros especialistas, ele acrescentou que, quanto mais o veículo eletrificado for utilizado, mais rapidamente o investimento se paga. “O carro elétrico ainda é mais caro do que os modelos a combustão, mas os preços vêm caindo. Em muitos casos, principalmente para os motoristas de aplicativo, a decisão de compra é mais vantajosa”, acrescentou.

Para o dirigente, a decisão da Hertz teve mais a ver com o contrato específico de compra dos carros com a Tesla (TSLA) do que a justificativa alegada de alto custo de manutenção.

“Estudamos o episódio da Hertz, trata-se de um caso particular. O custo de administração da frota do ponto de vista da manutenção é mais barato em carros eletrificados. Por outro lado, o custo de reparo é mais caro porque o modelo elétrico ou híbrido é mais completo, possui mais tecnologias.”

Rentabilidade do negócio

O analista responsável por empresas de transporte no Citi (C) Brasil, Filipe Nielsen, afirmou que o carro elétrico deprecia muito mais do que o modelo a combustão.

“Existem diversos fatores que impactam a avaliação de investimento nesse tipo de frota, como mercado de revenda, incertezas quanto à tecnologia, custos com manutenção e bateria. Não é só sobre o preço ser mais alto na hora da compra”, explicou.

Segundo ele, as empresas de locação não têm avançado na eletrificação da frota no Brasil. “Ainda é um mercado pequeno, as locadoras têm colocado pontualmente carros elétricos em suas frotas.” No geral, isso acontece quando um cliente demanda esse tipo de veículo principalmente no negócio de gestão e terceirização de frota (GTF, no jargão do setor).

“Nesses casos, a locadora cobra a tarifa com premissas muito mais conservadoras”, disse Nielsen. O analista acredita que a baixa adesão a elétricos por locadoras no país é acertada à medida que há preocupações sobre rentabilidade.

“Tenho visto uma adoção na medida certa, no seu tempo, dado que há diversas preocupações em termos de rentabilidade. No fundo, as empresas de aluguel têm que focar no retorno dos ativos.”

Os principais pontos levados em consideração para que o investimento na frota remunere o negócio são os preços de compra e venda do veículo, além dos custos de manutenção e reparo.

Do lado da demanda, o principal receio do consumidor é ficar sem abastecimento de energia, relatam especialistas. Segundo levantamento da Bright Consultoria Automotiva, atualmente existem cerca de 4.300 pontos de recarga públicos no país. Apenas 6% são carregadores rápidos, o que significa que a ampla maioria demanda horas para carregar totalmente um automóvel elétrico.

“O Brasil tem dimensões continentais e há estados em que os pontos de recarga inexistem ou são ínfimos”, afirmou o diretor da Bright, Murilo Briganti.

Mercado de usados

Além de tarifas assertivas no aluguel, as locadoras precisam dar saída para os carros de frota para não comprometer a saúde financeira. No entanto, diante de um cenário de incertezas para veículos eletrificados, há dificuldades para o “giro” no mercado de usados - o que acaba contaminando o negócio de seminovos de empresas de locação.

A ABVE projeta que as vendas de veículos novos elétricos e híbridos atinjam 150 mil unidades neste ano, um crescimento de 60% sobre o ano passado.

De acordo com a entidade, a frota eletrificada no país já supera 200 mil unidades. “Esse volume está muito concentrado em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Estamos trabalhando para avançar principalmente no Nordeste, em Brasília e no Centro-Oeste”, disse Bastos.

Segundo a Bright, atualmente a frota brasileira tem cerca de 31.500 veículos puramente elétricos. Um terço está concentrado no estado de São Paulo.

A projeção de vendas da consultoria para 2024 é um pouco mais otimista que a da ABVE, de aproximadamente 200 mil unidades (entre elétricos e híbridos). A Bright leva em consideração lançamentos prometidos pelas montadoras, o que deve movimentar o mercado.

Apesar da previsão de crescimento no varejo, a locação e o mercado de usados de elétricos não têm acelerado na mesma proporção. Segundo uma fonte do setor automotivo, os donos de concessionárias têm enfrentado dificuldades para vender modelos eletrificados com 10 mil km de uso após adquirirem os modelos usados na troca por um novo. Para conseguir comercializar esses veículos, as lojas acabam concedendo descontos mais elevados.

Já na locação, uma parcela importante dos carros elétricos tem sido vendida no mercado conhecido como de “atacado”, cujas lojas pedem descontos ainda maiores para fechar negócio.

O conselheiro gestor da ABLA, Paulo Miguel Jr., disse que o carro elétrico ainda é uma incógnita para o setor. “A mudança da tecnologia e a guerra de preços entre as montadoras acabam prejudicando [o fluxo de] veículos no estoque das locadoras.”

Efeito BYD no mercado

O crescimento exponencial da chinesa BYD no segmento de carros elétricos vem sendo apontado como um “divisor de águas” para a indústria automotiva global. Segundo especialistas ouvidos pela Bloomberg Línea, o avanço da marca teria sido crucial para a decisão da Tesla de adotar uma estratégia agressiva de redução de preços no ano passado, o que acabou afetando o mercado com um todo.

Diante da imprevisibilidade na precificação dos veículos, as locadoras têm sido cautelosas na hora de investir na eletrificação da frota.

No setor automotivo, executivos concordam que a BYD terá um papel decisivo na eletrificação do mercado consumidor. Na locação, isso também deve acontecer assim que a montadora tiver oferta suficiente para brigar com volumes mais elevados.

“O preço do elétrico vem caindo sequencialmente. Vimos o efeito BYD puxando o mercado para baixo”, disse o analista do Citi.

“A tendência é que esse mercado seja impulsionado no varejo antes que as locadoras acelerem a eletrificação. A adoção dos carros elétricos pelas empresas de locação deve vir depois do mercado de pessoas físicas”, acrescentou a Nielsen.

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Juliana Estigarríbia

Jornalista brasileira, cobre negócios há mais de 12 anos, com experiência em tempo real, site, revista e jornal impresso. Tem passagens pelo Broadcast, da Agência Estado/Estadão, revista Exame e jornal DCI. Anteriormente, atuou em produção e reportagem de política por 7 anos para veículos de rádio e TV.