123milhas: as razões que explicam a crise do negócio e a recuperação judicial

Empresa não priorizou margem, ciclo financeiro e lucro e apostou em cenário benigno de preços de passagens sem fazer hedge, aponta especialista em finanças

Empresa entrou com pedido de recuperação judicial nesta semana, que já foi deferido pela Justiça de MG
31 de Agosto, 2023 | 08:27 PM

Bloomberg Línea — O pedido de recuperação judicial da 123milhas, aceito pela 1ª Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte nesta quinta-feira (31), revelou em detalhes o passo a passo da crise financeira que levou a plataforma a esse estágio. A lista de credores tornada pública apontou mais de 700 mil pessoas, das quais a grande maioria consumidores, segundo a Justiça.

Desde que o pedido foi apresentado na terça-feira (29), especialistas em reestruturações de empresas e de finanças se dedicaram a analisar os números revelados pela primeira vez de forma pública.

“Pensaram o negócio de forma escalável (R$ 1,2 bilhão em marketing em 2022 e R$ 2,37 bilhões em marketing em 2021), não priorizando margem, ciclo financeiro e lucro”, disse Júlio Damião, presidente do IBEF-MG (Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças de Minas Gerais), em post no LinkedIn.

“A empresa vendia uma passagem aérea com um preço abaixo do mercado (Programa Promo 123), ficava com o dinheiro e comprava esta passagem (com milhas de outros clientes) dez dias antes da sua viagem, correndo o risco de pagar um preço maior ou menor. Em finanças, isto se chama especulação (opções de ações); em negócios, se chama ‘não fazer hedge’ (fazer importação sem ‘travar’ o dólar, apostando que a cotação não vai subir até o dia do pagamento)”, explicou o especialista em finanças.

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Esse “descasamento” de caixa chegou a R$ 2,3 bilhões, o valor apontado da causa no pedido de recuperação judicial.

O presidente do IBEF-MG destacou que a 123milhas “financiou a sua operação ineficiente através de juros de recebíveis a 0,3% ao mês, e, quando passou para 1,5% ao mês, ‘a água começou subiu no pescoço’.”

A compra da concorrente MaxMilhas no início do ano - “ganhar escala sem sinergia” - reduziu ainda mais o caixa. “Tentaram fazer o que as fintechs em dificuldades fizeram, buscar um investidor ou fundo para conter a sangria do caixa - “ofereceram 30% da empresa a R$ 100 Milhões”. Mas não obteve sucesso.

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“A 123 Milhas não tinha mais como respirar. Prejuízo de janeiro a julho de 2023 de R$ 1,6 bilhão, os custos subiram 15x para R$ 825 milhões, perda de desvalorização de ativos [...] O patrimônio líquido, que já estava negativo em dezembro de 2022 em R$ 5,8 milhões, em junho de 2023 já estava negativo em R$ 1,6 bilhão. Sem saída, cancelaram as passagens e dez dias depois entraram em RJ”, escreveu.

O presidente do IBEF-MG fez a sua avaliação das decisões tomadas pelos administradores que levaram ao quadro de recuperação judicial.

“Em qualquer tamanho do seu negócio, priorize a margem, o fluxo de caixa operacional positivo, o percentual de endividamento e o ciclo financeiro equilibrado. Todo o resto é consequência disso. Quanto mais vender sem margem, mais rápido vai quebrar”, afirmou o especialista.

123milhas na RJ: cenários não previstos

Segundo a empresa, no pedido de recuperação judicial, a crise chegou a esse ponto porque “os resultados previstos mediante estudos preparatórios do Programa Promo123 acabaram não sendo atingidos”. A expectativa era que, para cada voo vendido, o cliente também iria adquirir outros produtos atrelados à viagem, como reservas de hospedagem e passeios, o que, na prática, não aconteceu.

“Nesse contexto, a 123 Milhas se viu impossibilitada de emitir passagens aéreas, pacotes de viagem e seguros adquiridos pelos clientes do Programa Promo123, especialmente nos prazos contratados, motivo pelo qual entendeu por bem retirar o Programa Promo123 do ar e buscar, por meio do presente pedido de recuperação judicial, cumprir tais obrigações de forma organizada”, apontou no documento.

A 123milhas citou também como outro motivo uma expectativa frustrada na redução dos preços das passagens aéreas no pós-covid.

Segundo a 123milhas, “houve um aumento significativo da demanda (muito maior do que a oferta) por voos nacionais e internacionais”, o que, “aliado ao aumento do preço do combustível de aviação, ocasionado pela queda do real em relação ao dólar e a alta da inflação, fez com que o preço das passagens e pacotes se elevassem, fazendo com que a 123Milhas não conseguisse adquirir tais produtos nos termos contratados com seus clientes”.

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Outros fatores citados pela empresa são a mudança na precificação das passagens pelas companhias aéreas, que passaram a exigir maior quantidade de pontos e/ou milhas para a emissão de passagens e a criação de novas regras pelas mesmas em seus programas de fidelidade.

“A recuperação judicial da 123milhas é diferente, por exemplo, do que aconteceu com as Lojas Americanas ou com a Oi, em que temos atividades econômicas tradicionais, pautadas em ativos sólidos, carteiras de clientes, outorgas... São negócios em que é muito mais simples medir performance e fazer previsões”, disse o advogado Fábio Pimentel, da Pimentel Aniceto Advogados.

Ainda segundo ele, no caso da 123milhas, os consumidores correm o maior risco nesse novo cenário apresentado pela companhia, citando que o primeiro efeito prático do começo da recuperação judicial é a suspensão do pagamento ou da execução de qualquer dívida por 180 dias.

“Os consumidores têm ações normalmente em juizados especiais, pois esses créditos não têm preferência na ordem, isto é, ficam para o fim e são realizados de acordo com a ordem de chegada. De ontem para hoje, quase uma centena de pessoas se habilitou já nos autos do pedido de recuperação judicial informando deterem créditos dessa natureza contra a empresa”, afirmou.

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“Logo as pessoas receberão, desde que a empresa tenha sucesso em cumprir o plano. Ou seja, receberão se a empresa conseguir honrar todos os créditos e sempre obedecendo à ordem legal.”

123milhas diz que busca honrar compromissos

Em nota enviada à Bloomberg Línea, a 123Milhas afirmou que “a medida tem como objetivo assegurar o cumprimento dos compromissos assumidos com clientes, ex-colaboradores e fornecedores” e que “a recuperação judicial permitirá concentrar em um só juízo todos os valores devidos”.

A empresa, fundada em 2016 em Belo Horizonte, começou a operar fazendo a intermediação entre pessoas que queriam vender milhas e clientes em busca de passagens de avião mais baratas.

Anos depois, a 123Milhas passou a oferecer também opções de reservas de hotéis, pacotes de viagens, aluguel de carro e seguro viagem.

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Tamires Vitorio

Jornalista formada pela FAPCOM, com experiência em mercados, economia, negócios e tecnologia. Foi repórter da EXAME e CNN e editora no Money Times.