Reformas de Milei colocam à prova economia do polo industrial da Terra do Fogo

Província no extremo sul da Patagônia, que concentra fábricas beneficiadas por isenção fiscal desde os anos 70, enfrenta queda da produção e aumento do desemprego

Rio Grande, na Argentina
Por Manuela Tobias
29 de Setembro, 2024 | 02:54 PM

Bloomberg — Na época de bonança, as pessoas que desciam para as planícies da Patagônia eram recebidas por representantes das maiores empresas argentinas com ofertas de trabalho que pagavam até quatro vezes mais o salário em qualquer outra parte do país.

Quatro décadas depois, o único voo diário que aterrissa de madrugada na cidade de Rio Grande, 200 quilômetros ao norte de Ushuaia, é recebido por desempregados dirigindo Uber e competindo com taxistas para levar passageiros por, no máximo, cinco dólares.

Os sortudos que ainda têm emprego se deslocam por ruas enlameadas até as fábricas para montar celulares Samsung e sistemas de ar-condicionado. Mas, se no ano passado as linhas de montagem de eletrônicos, plásticos e têxteis da cidade fervilhavam de atividade 24 horas por dia, agora muitas fecham no início da tarde, assim que os trabalhadores terminam os turnos.

As isenções fiscais concedidas há meio século incentivaram muitas empresas a se instalarem na Terra do Fogo, a província insular de montanhas, geleiras e pinguins no extremo sul da Patagônia, onde o continente termina, próximo à Antártica.

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Hoje, o principal centro de produção eletrônica da Argentina e os moradores da região são levados ao limite pela terapia de choque do presidente Javier Milei, que busca reerguer a economia do país. Em Rio Grande, o polo industrial no fim do mundo, saberemos se o experimento do governo dará resultados.

Rio Grande está em declínio há bastante tempo. Anos atrás, o salário mensal de um professor bastava para alugar uma casa, mobiliá-la e viajar com a família nas férias.

A situação mudou muito: a pobreza disparou, uma vez que a Terra do Fogo teve um dos maiores percentuais de perdas de empregos no setor privado entre qualquer outra província desde que Milei assumiu o poder em dezembro. Cerca de 10% dos aproximadamente 37.900 postos de trabalho que existiam até novembro de 2023 foram perdidos.

“É uma situação bem triste em comparação ao que era há um ano”, disse Pablo Blanco, senador pela província da Terra do Fogo. “Se você não tem o que comer ou como seguir em frente, não vai comprar uma televisão, um ar-condicionado ou um celular.”

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A cidade industrial, a mais populosa da ilha e a mais afetada pela austeridade de Milei, não possui nenhum dos atrativos naturais que atraem turistas para as montanhas nevadas e lagos tranquilos de Ushuaia, mais ao sul.

Também é o pesadelo de um urbanista: uma mistura de casas móveis de metal e residências de madeira de um andar sobre solo industrial e enormes fábricas que se espalham pelas áreas residenciais.

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Austeridad de Milei agrava crisis del empleo en Argentina  |

No inverno, as pessoas praticam esportes em ambientes fechados ou ficam em casa, encolhidas perto de seus aquecedores a lenha. É preciso uma certa resistência para suportar o pior, tanto na vida quanto no trabalho.

A produção de eletrônicos, principal pilar da ilha, caiu cerca de 50% no primeiro semestre do ano em comparação com o mesmo período do ano anterior, segundo Ana Vainman, diretora executiva da Associação de Fábricas Argentinas Terminais de Eletrônica, ou AFARTE.

A produção dá sinais de recuperação na segunda metade do ano, à medida que os dias rigorosos de inverno se estendem até a primavera. Supermercados e lojas de eletrodomésticos agora oferecem até 12 meses de parcelamento sem juros.

“Obviamente, enquanto o poder aquisitivo dos salários não melhorar, será difícil. Mas o aumento do financiamento é uma ferramenta que está ajudando, e isso já estamos percebendo”, disse ela de seu escritório em Buenos Aires, onde residem todos os executivos das empresas.

Recuperación en fabricación de productos electrónicos  | Contracción afectó al motor económico de Tierra del Fuego

Desde que assumiu a presidência, Milei conseguiu conter a inflação galopante, a promessa que o levou a ser eleito presidente de uma Argentina à beira do colapso. Mas a solução amarga —o corte brutal de custos em todos os aspectos da vida cotidiana— causou uma profunda recessão, aumentando a pobreza e o desemprego a níveis que rivalizam com os da pandemia. Agora, Milei terá que convencer as pessoas de que pode controlar a espiral de preços e reativar a economia.

Cada vez mais, a segunda parte dessa equação será a chave para o seu sucesso. O setor informal da Argentina — aproximadamente metade do mercado de trabalho total — perdeu mais de 500.000 empregos apenas no primeiro trimestre, enquanto os trabalhadores formais perderam empregos durante 10 meses consecutivos.

Pesquisas do governo mostram que mais de 20% dos fabricantes em todo o país planejam demitir funcionários nos próximos três meses. Portanto, faz sentido que as pesquisas mostrem que a preocupação com o desemprego agora tenha superado a inflação como a principal preocupação dos eleitores.

“Se, no final, for um remédio que cure a doença, então, bem, foi ruim tomá-lo, mas vai valer a pena”, disse Juan Pablo Guaita,

da Aires del Sur, que vende cerca de 10% dos aparelhos de ar-condicionado na Argentina.

Enquanto isso, na fábrica da empresa no coração de Rio Grande, 160 trabalhadores soldam tubos de cobre, montam peças minúsculas em painéis de controle e as encaixam em estruturas de plástico enviadas da China. Esse número é superior aos 140 trabalhadores anteriores, mas nem de longe se aproxima dos 420 que são contratados durante a alta temporada de verão.

“Não saberemos se concordamos ou não com tudo o que estamos vivendo até o final”, acrescentou Guaita.

A Terra do Fogo foi batizada assim por conta das fogueiras acesas pelas tribos indígenas, os selk’nam e os yámanas, avistadas pelos primeiros exploradores europeus.

A ilha é dividida em duas por uma linha que separa o flanco ocidental chileno, escassamente povoado, do centro fabril argentino. Mais ao leste estão as Ilhas Malvinas, pelas quais a Argentina entrou em guerra com o Reino Unido em 1982. Ao sul do arquipélago está o Canal de Beagle, cedido ao Chile por um tratado em 1984.

Em 1972, quando essas tensões ainda fervilhavam, o governo argentino começou a conceder isenções fiscais às empresas, que ainda permanecem em vigor.

Foi um sucesso. Fabricantes de eletrônicos como Philips e Hitachi, a petroleira estatal YPF, chegaram à ilha, e a população passou de cerca de 13.000 habitantes em 1970 para 200.000 atualmente.

Durante o crescimento dos anos 80, as amplas e retas ruas principais da cidade eram cheias de cassinos, cinemas e lojas de produtos importados que não se encontravam nas províncias pobres e áridas do norte, de onde vinham a maioria dos trabalhadores.

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“Era uma ilha de fantasia”, disse Santiago Pauli, parlamentar do partido libertário de Milei, enquanto tomava mate açucarado em seu escritório em Rio Grande, mobiliado com duas mesas de madeira vazias, um mapa de papel da cidade e uma pequena bandeira argentina.

Do lado de fora, sacos plásticos presos em cercas de arame e pallets de madeira descartados, frequentemente queimados por manifestantes durante greves, poluem a paisagem. O cinema, que fechou, agora é um prédio de apartamentos, e o cassino permanece vazio.

Em toda a província, a pobreza saltou de 32% nos últimos três meses de 2023 para quase 50% nos primeiros três meses deste ano, um dos aumentos mais acentuados do país, segundo estimativas baseadas em dados do governo.

O sofrimento começou na década de 1990, quando o então presidente argentino Carlos Menem — um dos ídolos de Milei, que vinculou o peso ao dólar dos Estados Unidos — privatizou a petroleira nacional e demitiu milhares de pessoas.

Ele também abriu o país para as importações, inundando o mercado com produtos mais baratos fabricados no exterior.

A economia local se reativou sob o governo de Cristina Fernández de Kirchner, que levou o protecionismo a novos patamares, mas voltou a cair quando o pró-empresarial Mauricio Macri abriu o mercado a algumas importações, encerrando a produção de laptops na ilha.

Embora Milei tenha cortado drasticamente o orçamento do Estado, ele não mexeu na lei de isenção de impostos que mantém a ilha de pé, apesar de custar aproximadamente 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB) em receita perdida a cada ano, segundo dados do governo.

Ele disse que reduzirá as tarifas e flexibilizará as regulamentações, mas com a escassez de dólares no banco central, ainda está longe de oferecer aos argentinos os produtos importados baratos que desejam.

Pablo Guaita, gerente geral da Aires del Sur, admitiu que “se abrirem para importação, você vai à falência”, mas observou que os funcionários do governo de Milei visitaram o polo industrial com mais frequência do que qualquer outro governo na história recente.

Dificuldade logística

O caso da Terra do Fogo é uma anomalia em muitos sentidos. A matéria-prima necessária para a manufatura chega de navio a Buenos Aires antes de iniciar uma viagem rodoviária de 3.000 quilômetros em direção ao sul, através de campos cheios de ovelhas e vacas que no passado impulsionaram a economia argentina.

Em seguida, os produtos são enviados de volta à capital. Não é de se admirar que os produtos eletrônicos na Argentina custem entre duas e três vezes mais do que no vizinho Chile.

Uma das últimas tentativas de conectar a ilha com o mundo por mar foi abandonada pela metade; o quebra-mar abandonado do porto abriga uma colônia de leões-marinhos.

Signs on the faade of the recently closed Textil Ro Grande factory in Rio Grande, Tierra del Fuego, Argentina, on Tuesday, Aug. 27, 2024.

O gigante argentino da eletrônica Mirgor —que opera amplas fábricas de alta tecnologia na ilha que produzem sistemas de controle climático para empresas como Ford e Volkswagen, além de celulares para a Samsung — está aceitando o desafio.

Como parte de um esforço para reinventar a economia da Terra do Fogo — um requisito para a renovação da lei de isenção de impostos em 2021 — a Mirgor começaria a construção de um porto de US$ 500 milhões a 24 quilômetros ao norte da cidade nos próximos seis meses.

O objetivo é não apenas amenizar o pesadelo logístico, mas também servir como porto de abastecimento para a Antártida e ajudar no embarque de petróleo e gás.

“Nesses 40 anos de história da Mirgor, ela soube passar por todas as crises e todos as fases”, disse de Buenos Aires Juan Donal, vice-presidente de assuntos corporativos da empresa. “Esta é só mais uma, e vemos que está passando.”

Alternativas para a população

No final de uma ponte de pista única congestionada que conecta as fábricas e o centro da cidade com a parte mais pobre, a estrada principal se transforma em um caminho de terra. Ali, uma mulher, de pé sobre um pallet de madeira descartado que serve de tapete, dá as boas-vindas às pessoas em sua garagem transformada em cozinha comunitária, onde serve três refeições por semana.

María Elizabeth Leyes, de 51 anos, começou a cozinhar junto a um grupo de mulheres em 2022 para ajudar a aliviar sua própria depressão e ansiedade, explicou na penumbra de sua cozinha, apoiando a mão em um freezer cheio de pequenos frangos que ela assa ou cozinha em ensopados.

“Já estávamos mal. Então, suponho que as pessoas se cansaram”, diz ela sobre a inesperada vitória de Milei. “As pessoas, acostumadas a outra vida por aqui, acreditaram nesse homem que disse que ia acabar com a classe política. Não sabiam que ele começaria por eles mesmos.”

O empreendimento dela é uma das 72 cozinhas comunitárias da cidade, que tem cerca de 98.000 habitantes. O que antes era doado pelas famílias de classe média agora é vendido nos mercados de fim de semana para obter lucro, e as doações dos atacadistas de alimentos diminuíram de lotes semanais para uma entrega mensal, diz.

À medida que Milei cortava as transferências para as províncias, os orçamentos para programas de assistência social também desapareceram.

“Vai chegar um momento em que as pessoas não vão mais conseguir apertar o cinto e vão dizer que já deu”, disse Leyes. “Mas, por enquanto, ainda estão resistindo.”

Gustavo Melella, governador peronista da Terra do Fogo, atribui a derrota de seu partido para Milei à sua incapacidade de controlar a inflação. Os peronistas estiveram no poder por 16 dos últimos 20 anos, e muitos eleitores ainda os consideram responsáveis por grande parte da pobreza que assola o país.

Com um governo recém-empossado, as pessoas ainda têm esperança, segundo Melella, ex-prefeito de Rio Grande. “Quando as pessoas perceberem que não há crescimento, não há avanço, que não estão vivendo melhor, a paciência acabará”, disse ele.

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Apesar de todo o sofrimento, é difícil encontrar alguém em Rio Grande que culpe Milei por tudo. Assim como as frágeis árvores que crescem paralelas ao chão para sobreviver aos ventos furiosos, os habitantes da ilha são muito resilientes.

Ezequiel Ruiz, de 26 anos, trabalha como motorista do Uber há um mês desde que foi demitido de uma empresa de logística. Sua parceira, que perdeu o emprego alguns meses antes da chegada de Milei, luta para manter um negócio de catering. Ruiz diz que não votou em Milei e que mal conseguem sustentar suas duas filhas até o final do mês. Mas ele não desiste.

“Sempre tive esperança de que a Argentina fosse se ajustar”, diz ele enquanto dirige ao longo do calçadão deserto com vista para o oceano Atlântico. “Uma mudança rápida não aconteceria com nenhum presidente.”

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