Onda de distratos é ameaça para incorporadoras, alerta gestora

Brunno Bagnariolli, sócio da Mauá Capital, diz à Bloomberg Línea que empresas do setor não buscaram jurisprudência que reforçasse segurança jurídica da lei

Aumento dos juros e dos custos de construção pressionam para cima os valores dos imóveis e dos financiamentos
31 de Julho, 2022 | 07:15 AM

Bloomberg Línea — Depois de um ciclo de bonança para o mercado imobiliário, com recordes de lançamentos residenciais impulsionados pelas menores taxas de juros da história do país, o cenário atual com uma Selic acima de 13% ao ano amplia os riscos para incorporadoras. A avaliação é de Brunno Bagnariolli, sócio e head de real estate da Mauá Capital, gestora com foco em investimentos alternativos.

“Vamos ter uma safra grande de entregas [de imóveis] no fim deste ano e no ano que vem, mas muitos compradores podem não conseguir financiamento, seja porque os bancos estão mais restritivos como também porque a renda do consumidor não subiu para conseguir destinar uma parcela maior aos pagamentos mensais”, afirmou Bagnariolli à Bloomberg Línea.

Isso deve acontecer principalmente em imóveis adquiridos pelo público de média e baixa renda, segundo ele.

O sócio da Mauá Capital diz que a Lei do Distrato, que passou a vigorar no fim de 2018, acabou sendo pouco utilizada por empresas do setor desde então diante da forte valorização de imóveis novos com a demanda aquecida, sem que tenha sido criada uma jurisprudência nos tribunais.

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Nos casos de desistência do imóvel por parte do comprador, incorporadoras não recorreram à Justiça para fazer valer a lei porque conseguiam vender o mesmo apartamento ou casa a um preço mais alto e lucrar mais mesmo fazendo a devolução de uma parcela maior do dinheiro.

Mas o cenário mudou. “Agora vai vir um ‘caminhão’ de distratos, porque os preços [dos imóveis] pararam de subir e muitos não vão suportar as novas condições de financiamento”, disse.

Segundo avaliação do head de real estate da Mauá, a criação de uma jurisprudência, de forma a possibilitar um entendimento em tribunais em todo o país na forma de julgar casos parecidos, deve levar em média três anos. Nesse cenário, diversas incorporadoras podem “sangrar muito até lá”.

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Parcela mensal mais alta

Além do aumento do valor das parcelas mensais por causa das taxas de juros mais altas, o montante a ser financiado também subiu acima do esperado para quem comprou um imóvel antes da pandemia por causa da forte pressão dos custos da construção civil nos últimos dois anos.

O Índice Nacional do Custo de Construção (INCC) da Fundação Getulio Vargas, que serve como indexador para o valor a ser financiado em contratos de compra, sobe acima de 10% na taxa em 12 meses desde o começo de 2021. Neste ano, o INCC subiu 8,44% até julho. Em 12 meses, 11,66%.

Tudo isso somado, parcelas de financiamento que haviam sido projetadas para sair, por exemplo, em R$ 2.000, podem saltar para R$ 3.000, além da capacidade de pagamento de muitas famílias.

Brunno Bagnariolli, sócio e head de real estate da Mauádfd

Nesse cenário, muitos compradores de imóveis podem desistir da compra e pedir a devolução do dinheiro pago antes da entrega das chaves, repetindo um fenômeno visto pela última vez na recessão do país em 2015 e 2016. Foi nesse contexto e diante de uma reivindicação de segurança jurídica e financeira por parte de incorporadoras que o Congresso aprovou em 2018 a Lei dos Distratos, para colocar regras para a devolução do dinheiro em caso de desistência da compra por parte dos consumidores.

A Lei do Distrato prevê que um comprador que desistir da aquisição de um imóvel receba até 75% do valor pago, ante um percentual que costumava ser fixado em 90% para a restituição.

Avanços com a lei

Mas, apesar da necessidade de um entendimento nos tribunais sobre a aplicação da lei, o cenário atual já representa um avanço na comparação com a última crise do setor imobiliário.

Essa é a avaliação de Fabio Carvalho, sócio da gestora Alianza, especializada em investimentos no setor imobiliário. Ele diz que Lei do Distrato deve amenizar o volume de desistências. “O distrato passa a ter uma penalidade importante. [Desistir da compra] deixou de ser opção gratuita e virou uma solução mais extrema. Só recorre ao distrato quem está com problemas financeiros”, afirmou.

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“Proporcionalmente, dadas as mudanças com a lei, veremos menos distratos que antigamente, como em 2016. Mas é provável que vejamos um crescimento por causa da situação econômica ruim atual, em que a inflação corrói o dinheiro disponível e as taxas de financiamento sobem”, disse.

O gestor da Alianza também enxerga um cenário desafiador para incorporadoras, impactadas negativamente pelo aumento nos custos de construção e pelo crédito mais caro, que leva uma redução das vendas de imóveis. “Mas não acredito que vamos ver uma ‘chuva’ de distratos como antigamente.”

O que dizem as incorporadoras

Até o começo deste ano (dados mais recentes disponíveis), a situação do mercado estava sob controle. A relação entre distratos e vendas no segmento de médio e alto padrão ficou em 11% no primeiro trimestre deste ano, segundo dados da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). É uma melhora em relação aos 16% no mesmo período de 2021. Na crise de 2016, chegou a 62%.

“A segurança jurídica trazida pela Lei [do Distrato] permitiu avanços em linhas de crédito que beneficiam os compradores, permitindo que mais pessoas se tornem elegíveis ao financiamento”, disse a Abrainc em nota enviada à Bloomberg Línea. É uma referência ao fato de que, em caso de atrasos, o aumento da segurança jurídica para quem vende e empresta permite taxas de juros menores.

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Na MRV (MRVE3), maior incorporadora do país voltada para média e baixa renda, a prévia operacional do segundo trimestre apontou que a taxa de distrato caiu pela metade na comparação anual, de 8% para 4,2%. A empresa não abriu os dados de volume financeiro dos distratos e, procurada pela Bloomberg Línea, não quis comentar o assunto. O resultado financeiro será divulgado no dia 10 de agosto.

Outra gigante do setor no segmento de baixa renda, a Tenda (TEND3), reportou no segundo trimestre aumento de 13,7 pontos percentuais (p.p.) na base anual e de 3,7 p.p. na base trimestral na taxa de distratos sobre as vendas brutas, que atingiu 24%. Em volume financeiro, houve salto dos distratos de R$ 100,7 milhões um ano atrás para R$ 176,6 milhões neste ano, sempre de abril a junho.

Fabricio Mitre, CEO da incorporadora Mitre Realty (MTRE3), voltada para o público de média e alta renda em São Paulo, disse que houve evolução da indústria ao longo dos últimos anos em governança e controle de riscos. Grandes incorporadoras adotam, por exemplo, o modelo de patrimônio de afetação, isto é, a segregação patrimonial de bens do incorporador para uma atividade específica.

O executivo destacou ainda que muitas incorporadoras começaram a pedir o pagamento de mais parcelas durante o período de obras, reduzindo o valor do financiamento a partir do momento da entrega do imóvel. Na Mitre, por exemplo, o cliente paga um volume equivalente a uma faixa entre 50% e 60% do valor do imóvel durante a construção, enquanto a fatia restante é financiada. Em 2021, a incorporadora lançou imóveis residenciais equivalentes a R$ 1,8 bilhão em VGV (valor geral de vendas).

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“Mas distrato nunca é zero porque ao longo dos três anos de construção a vida da pessoa pode passar por uma série de eventos: pode mudar de trabalho, de cidade, casar, se separar, aumentar ou diminuir a renda etc.”, afirmou Mitre à Bloomberg Línea. Segundo ele, na incorporadora a taxa entre distratos e vendas está em torno de 6%, abaixo da média do mercado.

O CEO da Mitre pondera que, se por um lado o aumento dos preços dificulta o financiamento de imóveis, por outro, mostra ao comprador que a inflação deixará os novos empreendimentos ainda mais caros, o que pode servir como desincentivo, quando possível, para um distrato no cenário atual.

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Mariana d'Ávila

Editora assistente na Bloomberg Línea. Jornalista brasileira formada pela Faculdade Cásper Líbero, especializada em investimentos e finanças pessoais e com passagem pela redação do InfoMoney.

Marcelo Sakate

Marcelo Sakate é editor-chefe da Bloomberg Línea no Brasil. Anteriormente, foi editor da EXAME e do CNN Brasil Business, repórter sênior da Veja e chefe de reportagem de economia da Folha de S. Paulo.