Morte de Abe: assassinato no Japão é realidade no Brasil, dizem especialistas

Riscos de violência política e ataques a candidatos precisam ser levados a sério por autoridades, dizem professores e analistas ouvidos pela Bloomberg Línea

Policiais isolam local onde ex-primeiro-ministro do Japão Shinzo Abe foi morto nesta sexta-feira (8)
08 de Julho, 2022 | 04:42 PM

Bloomberg Línea — O assassinato do ex-primeiro-ministro do Japão Shinzo Abe acentuou os temores de quem acredita que a polarização política no Brasil pode levar a episódios de violência política. O ex-premiê, candidato a deputado depois de ter ficado afastado da política por problemas de saúde, foi morto nesta sexta-feira (8) com dois tiros durante um evento de campanha na cidade de Nara.

Segundo a emissora de TV japonesa NHK, o atirador se disse “frustrado” com Abe. Shinzo Abe foi o primeiro-ministro que ficou mais tempo no cargo desde 1945. Foi um político conservador, mas não conseguiu fazer aprovar sua agenda de reforma constitucional para que o Japão voltasse a ter um exército. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o país tem uma “força de autodefesa” que só pode atuar dentro das fronteiras. Abe tentou mudar a regra, mas não conseguiu apoio do Congresso.

“Embora ele fosse um conservador, existem alguns radicais que acham que o Japão, sob Abe, foi muito subserviente aos interesses dos Estados Unidos, o que eles consideram uma humilhação”, disse Alexandre Uehara, professor de Relações Internacionais da ESPM e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Ásia do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP (Nupri/USP).

Uehara diz não estar preocupado com a influência do evento no Brasil “porque aqui a violência já é uma realidade, independente do que aconteceu no Japão”. “O que me preocupa é que isso parece parte de um contexto internacional de ações violentas em diversos lugares motivadas por questões políticas. O ambiente internacional chama atenção e isso pode até ter estimulado o cidadão japonês”, afirma.

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Episódios de ataques têm sido registrados no Brasil nos últimos anos. Na quinta-feira (7), um evento de campanha do ex-presidente Lula (PT) no Rio de Janeiro foi atacado com um explosivo improvisado. Nas últimas semanas, a campanha do petista foi alvo de um cerco a seus carros em Campinas (SP) e um drone despejou esterco em apoiadores do ex-presidente em evento em Minas Gerais.

Em 2018, um ônibus que carregava apoiadores do petista que o acompanhava pelo Sul do país foi alvo de tiros. Um acampamento de manifestantes em Curitiba que pediam a soltura de Lula em 2018 também foi alvejado por tiros.

Naquele ano, a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL) foi executada junto com seu motorista, Anderson Gomes. E o agora presidente Jair Bolsonaro (hoje no PL, então no PSL) sofreu uma facada durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG) em 2018, às vésperas do primeiro turno.

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No fim do mês passado, a Polícia Federal avaliou que a campanha do ex-presidente Lula, que está à frente nas pesquisas de intenção de voto, está sob o risco máximo de sofrer um atentado. A corporação destacou 27 policiais para trabalhar na segurança do candidato, segundo reportagem do site Metrópoles.

Brasil: 79 candidatos assassinados

Entre 2000 e 2016, 79 candidatos foram assassinados no Brasil inteiro, segundo estudo da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

“O assassinato no Japão não vai aumentar o risco de violência no Brasil porque o risco é fato, está posto. O que vai acontecer é que as respectivas campanhas devem reforçar suas medidas de segurança e ter mais cautela”, afirma Christopher Garman, diretor para Américas da Eurasia, uma das principais casas de análise de risco político do mundo.

“O que chama atenção é que o Japão, ao contrário de alguns de seus vizinhos e do Brasil, não vive um momento de divisão do país nem de polarização política”, diz ele.

Controle de armas

No assassinato de Shinzo Abe, chamou a atenção de especialistas o fato de o crime ter sido cometido com uma arma de fogo, ainda que caseira. “É raro um crime dessa natureza acontecer lá e mais raro ainda ter sido com uma arma de fogo”, diz Uehara, da ESPM.

O Japão é um país que tem um controle rigoroso da circulação de armas. Para uma pessoa civil conseguir o registro de uma arma no país asiático, é preciso fazer um curso, passar por uma prova teórica, uma prova prática (e ter 95% de acerto no tiro ao alvo), uma avaliação psicológica e uma checagem de antecedentes criminais e financeiros, segundo informações compiladas pelo Guns Policy, banco de dados sobre segurança pública mundial mantido pela Universidade de Sidney, na Austrália.

No Brasil, quem quiser ter uma arma pode se registrar como caçador, atirador esportivo ou caçador (CAC) ou requerer um registro à Polícia Federal. Para isso, precisa levar uma série de documentos e passar por um exame psicotécnico e de antecedentes criminais. No caso de civis, precisa demonstrar a “efetiva necessidade” de ter uma arma. Desde 2019, no entanto, por causa de um decreto do governo federal, a prova da “efetiva necessidade” fica presumida e a PF só pode negar o registro se detectar algum problema.

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Em 2020, o Japão tinha 192 mil registros de armas de fogo nas mãos de civis, contando as legais e as ilegais. Já no Brasil, em novembro de 2021, havia 1,6 milhão de armas de fogo em poder de civis.

E as mortes causadas por armas de fogo vêm diminuindo no Japão. Foram 9 mortes por armas de fogo em 2018, ante 23 em 2017 e 25 em 2016, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) compilados pelo Gun Policy.

No Brasil, em 2018, foram 41,1 mil mortes causadas por armas de fogo, segundo o Atlas da Violência, feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

“É algo radical uma pessoa ser morta por arma de fogo no Japão”, afirma o economista Igor Lucena, membro da casa de análises políticas Chatham House e especialista em política japonesa.

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“Para os políticos, fazer campanha está se tornando um risco. O assassinato de um candidato não é só um homicídio, é a eliminação de um projeto de país e de uma visão de futuro. Isso tem que ser visto como um atentado à própria democracia”, afirma Lucena. “Se aconteceu lá, onde isso era inimaginável, a chance de acontecer aqui é ainda maior.”

Para ele, a lição que vai ficar é que os políticos vão precisar “começar a levar a sério” a possibilidade de sofrer um atentado. “Os serviços de inteligência e as forças de segurança brasileiros precisam tratar isso como realidade. Um candidato não pode sofrer um atentado, porque isso é a interrupção de uma possibilidade de futuro do país”, diz.

Paralelos

O cientista político Christian Lynch, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e presidente do Instituto Brasileiro de História do Direito (IBHD), acredita que o atentado contra Shinzo Abe resulta em alguns riscos, como normalizar que o país está em uma época violenta de atentados; dar “argumento” para a extrema-direita dizer que a esquerda quer matar Bolsonaro; dar “argumento” para a esquerda dizer que a extrema-direita quer matar Lula.

Lynch afirma serem raros os exemplos de atentados em nível nacional na história política brasileira, mas ele cita precedentes do início da República. Segundo ele, a polarização atual “tem semelhança com a primeira década da Primeira República, com clima de perseguição à imprensa e caça às bruxas”. “O ápice”, diz ele, foi no governo Floriano Peixoto (1891-1894).

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Floriano ficou conhecido como “marechal de ferro” por causa violência com que reprimiu a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, no Rio Grande do Sul. Seus seguidores, que apoiavam as intenções de Floriano de implantar um governo forte e autoritário, eram conhecidos como florianistas.

Ele perdeu a eleição de 1894 para Prudente de Moraes, o primeiro presidente civil da República brasileira, mas, contrariado, continuou incitando seus seguidores a apoiar sua volta ao poder.

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“Em 1897, essa gente tinha caído do poder e não aceitava. Usaram a Guerra de Canudos para criar o ambiente para um golpe. Um belo dia, incitado pelo ambiente, um florianista maluco - Marcelino Bispo - tentou matar Prudente de Morais, mas acabou matando o ministro da Guerra, o marechal Carlos Machado de Bittencourt”, conta Lynch.

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Pedro Canário

Repórter de Política da Bloomberg Línea no Brasil. Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero em 2009, tem ampla experiência com temas ligados a Direito e Justiça. Foi repórter, editor, correspondente em Brasília e chefe de redação do site Consultor Jurídico (ConJur) e repórter de Supremo Tribunal Federal do site O Antagonista.