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Bloomberg Opinion — Cenas apocalípticas abrem o livro “The Ministry for the Future” (”O Ministério para o Futuro), o mais recente romance do escritor de ficção científica Kim Stanley Robinson. A Índia é atingida por uma onda de calor calamitosa – tão sufocante, com umidade tão alta, que os corpos têm dificuldade para suar e, portanto, para sobreviver. Milhares morrem nas águas aquecidas pelo sol de um lago onde se refugiaram. No final, 20 milhões perecem.

Lidando com a revolta e a fúria que se seguem, a Índia quebra um acordo internacional que rege a engenharia climática e injeta grandes quantidades de partículas de enxofre na atmosfera em uma tentativa desesperada de resfriar o subcontinente. “Todo mundo sabe, mas ninguém age”, diz um funcionário. “Então, resolvemos tomar o assunto em nossas próprias mãos.”

A história de Robinson é fictícia. Mas se passa apenas alguns anos no futuro, e o desastre climático que ele descreve, juntamente com a tecnologia e o enigma diplomático, não são inventados. São todos muito reais. A compreensão insuficiente e a governança subdesenvolvida de tais opções significam que o mundo não está mais bem preparado na realidade do que na ficção, quando se trata de intervenções radicais, em particular quando se trata da questão polêmica da geoengenharia solar.

Mas isso significa, como um grupo de cientistas argumentou em um artigo publicado no mês passado, que devemos efetivamente banir a técnica nascente agora?

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A geoengenharia solar abrange uma série de propostas para resfriar a Terra, refletindo um pouco de luz solar de volta ao espaço, inclusive com injeção de aerossol estratosférico, como no romance de Robinson. É de ação rápida, em termos climáticos, mas não aborda a causa subjacente do problema do aquecimento global e é de alto risco se der errado. É uma opção que ninguém deseja ver em prática.

Ainda assim, a ideia de um acordo que efetivamente suspenda o apoio à pesquisa e desenvolvimento, conforme defendido por essa coalizão de acadêmicos, deve nos fazer pensar. Dada a gravidade de nossa situação climática e a probabilidade do mundo ultrapassar seu limite de aquecimento global ou atingir pontos de inflexão, essa opção simplesmente ainda não pode ser descartada – pelo menos não antes de entendê-la melhor. Por enquanto, é aterrorizante e terrível como a quimioterapia: não queremos, mas será que podemos nos negar a possibilidade? Não substitui a dramática redução de carbono, mas hoje já temos conhecimento suficiente para recusá-la?

Precisamos ver o mundo como ele é, não como deveria ser. Como Jesse Reynolds, diretor de política sênior da Comissão Global sobre Gestão de Riscos do Excesso Climático, no Fórum de Paz de Paris, me disse, a geoengenharia solar é uma compensação risco-risco, e deve ser entendida nesse contexto: não há um caminho sem risco daqui para a frente.

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Os argumentos contra a geoengenharia solar são até certo ponto familiares. O mais comum postula que esse tipo de tecnologia é, na melhor das hipóteses, uma ilusão e, na pior, uma distração, quando o mundo deveria se concentrar em reduções dramáticas das emissões de carbono para limitar o aumento da temperatura global a 1,5 grau Celsius, a meta estabelecida no Acordo de Paris. Certamente esse objetivo climático é claro, e governos como o da Austrália, que escondem sua inação quanto à questão do carbono por trás de futuros milagres tecnológicos, devem ser exortados.

O segundo argumento, relacionado, é que discutir e pesquisar a gestão da radiação solar traz o risco de normalizá-la, criando uma perigoso caminho tecnológico com potencial de aprisionar a humanidade nele. Não está claro que isso aconteceria com uma tecnologia que não está em mãos privadas, e isso implica - não sem preocupações - que o conhecimento por si só é tóxico. Dispensar o que não entendemos é uma aposta ainda maior do que apostar em pesquisas limitadas e controladas. O que acontece se, como no romance, for algo implantado unilateralmente? Sem mencionar que, como Daniel Bodansky e Susan Biniaz apontam em um artigo de 2020, a pesquisa sobre intervenção climática pode realmente ajudar a trazer para o nível concreto e palpável o “pensamento mágico” dos governos sobre a tecnologia.

Depois, há a ideia, levantada pelos cientistas que defendem a proibição, de que a tecnologia é impossível de administrar de maneira inclusiva e justa. Isso, eles argumentam, exigiria “controle político efetivo e exequível pelo Sul Global”. O desafio da governança é enorme, mas isso o torna impossível? Até mesmo a pesquisa? Ou o padrão aqui é simplesmente impossivelmente alto?

Para ser clara, o gerenciamento da radiação solar na maioria de suas formas – exceto, talvez, pintar telhados de branco – vem acompanhado de um certo perigo. A aplicação desigual pode resfriar uma região, mas alterar os padrões vitais de chuva em outras. Compreender o planeta já em mudança pode se tornar mais difícil. Uma parada repentina por motivos de erro humano, financiamento, até política ou guerra seria devastadora, uma ideia conhecida como “Termination Shock” (ou choque de descontinuação, na tradução literal). Se chegarmos tão longe, a questão de quem o implantaria, onde e em que grau seria ainda mais preocupante. Porque os custos de engenharia são relativamente modestos e a tecnologia poderosa, o exagero não deixa de ser uma possibilidade.

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Mas o debate ainda não é se devemos puxar essa alavanca. De fato, o mundo pode aplicar uma moratória na implantação da geoengenharia solar. Mas a pesquisa, gerenciada com responsabilidade, é vital e não impossível de se imaginar.

Primeiro, apoie a pesquisa com fundos públicos. Oriente e regule. Crie um código de conduta acordado que possa ser baseado nos Princípios de Oxford existentes, que inclui licenciamento local, requisitos de transparência e um processo de partes interessadas que implementa a consulta pública. A divulgação total e o compartilhamento de informações, em particular, serão cruciais.

Então, comece a lidar com a lacuna de governança. A intervenção climática não é sem regras – já existe uma infinidade de tratados, cobrindo poluição do ar, diversidade biológica, resíduos marinhos. O dever de não causar dano é um princípio amplamente reconhecido do direito internacional consuetudinário. No entanto, as lacunas preocupantes ainda são abundantes.

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Quem acabaria por autorizar a tecnologia ou supervisioná-la, caso ela fosse usada? Como seriam regulados quaisquer litígios transfronteiriços? Quem decide quais efeitos colaterais são permitidos ou não? Como todas as partes, mesmo aquelas que devem ser vulneráveis, podem ser incluídas? Os cientistas estão certos em levantar essas questões, mas uma proibição não resolve a questão. Como Janos Pasztor, diretor executivo da Carnegie Climate Governance Initiative, me disse, ainda não é viável encerrar a conversa ou permitir que um pequeno grupo o faça. De fato, uma proibição requer uma discussão verdadeiramente inclusiva.

A governança seria imperfeita – grande parte da nossa governança é – mas as Nações Unidas fornecem estruturas que podem e devem ser adaptadas para considerar decisões climáticas mais complexas, dando voz mais alta aos mais vulneráveis. Isso já está muito atrasado. Gerenciamos a macroeconomia global sem um órgão abrangente; isso também pode ser feito se os interesses estiverem alinhados.

As nações do mundo ainda podem decidir banir permanentemente a geoengenharia solar. No romance de Robinson, os pessimistas ficarão felizes em ouvir que uma série de outras técnicas entram em jogo. Mas é muito cedo para vetar o que mal entendemos – e ainda podemos precisar.

Clara Ferreira Marques é colunista da Bloomberg Opinion e cobre commodities e questões ambientais, sociais e de governança. Anteriormente, ela foi editora associada da Reuters Breakingviews e editora e correspondente da Reuters em Singapura, Índia, Reino Unido, Itália e Rússia.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

– Este texto foi traduzido por Marcelle Castro, localization specialist da Bloomberg Línea.

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