Startup peruana Favo suspende operações no Brasil e demite 170 funcionários

Empresa que chegou ao Brasil em 2020 manterá operações apenas no mercado de origem citando o ‘cenário de crescente dificuldade’

Onda de demissões em startups atinge diferentes mercados da América Latina em ambiente de aumento nas taxas de juros e redução da liquidez de capital
02 de Junho, 2022 | 08:14 PM

Bloomberg Línea — A startup peruana de social commerce Favo decidiu suspender as operações por tempo indeterminado no Brasil e demitir 170 funcionários. A empresa continuará funcionando no Peru.

“Muito embora tenhamos tentado encontrar caminhos dos mais diversos para nossa operação no Brasil, lamentavelmente nos deparamos com um cenário em crescente dificuldade”, disse a empresa em comunicado à imprensa.

A Favo é mais uma startup que reforça a onda de demissões como consequência de um cenário de altas taxas de juros para controlar a inflação em meio à recuperação econômica global. Ao mesmo tempo, a falta de novos investimentos e os desafios de fluxo de caixa pesaram sobre as empresas após a euforia gerada pelas rodadas de investimentos recordes no ano passado para a América Latina.

Fundada em 2019, a Favo chegou ao Brasil um ano depois. Segundo a empresa, 40 funcionários serão mantidos no país para reestruturar a operação e pensar em novos formatos no Brasil.

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A plataforma disse que comunicou empreendedores e ecossistema logístico de que “as lojas da Favo continuam abertas até o dia 30 deste mês” e que “entregará todos os pedidos realizados até esta data no prazo normal”.

A startup disse ainda que negocia a realocação de empreendedores e motoristas em outras empresas de social commerce nos moldes da Favo.

“Lamentamos ter que pausar a operação brasileira, mas acreditamos que vamos restabelecer o nosso negócio no país em breve, assim que as condições macroeconômicas permitirem. Torcemos para que esse momento se dê o mais breve possível”, disse a empresa por meio de nota.

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Demissões na Colômbia

Em meio à onda de demissões em grandes mercados como Brasil, México e Argentina, a Bloomberg Línea conversou com oito líderes e fundadores de algumas das maiores startups de tecnologia colombianas, além de dois fundos de venture capital na América Latina, que disseram que a tempestade deve chegar à Colômbia em breve, caso ainda não tenha desembarcado.

Nesse contexto, empresários de startups que atuam como fintech, foodtech ou edtech na Colômbia passaram de falar em “expandir para outros mercados da região”, “lançar novos produtos” e “conquistar novas rodadas epara termos como “queima do dólar”, “bolhas”, “inexperiente” ou “mundo fictício”.

A onda de demissões em vários países da América Latina “é inevitável se o mercado de ações continuar em queda livre e a incerteza geopolítica continuar”, disse Daniela Izquierdo, cofundadora da empresa de cloud kitchens Foodology, à Bloomberg Línea, ressaltando que a empresa não fez cortes nem pretende fazer.

A empresária afirma que “não há como se blindar. A realidade é que se o acesso a fundos de venture capital for reduzido, todas as startups precisarão cuidar de seus recursos e aumentar a pista [runaway], que é quantos meses de vida têm com o capital atual. Uma alavanca para aumentar esses meses é reduzir pessoal. Cada negócio tem que entender se aplica ou não essa alavanca”.

“Era óbvio que estávamos em uma bolha. Muitos empreendedores inexperientes com ideias ruins conseguiram levantar dezenas de milhões de dólares para criar negócios facilmente replicáveis. Agora que o mercado está voltando a um estado mais realista, muitas dessas startups não sobreviverão”, acrescentou Alexander Torrenegra, CEO da Torre, em entrevista à Bloomberg Línea.

O empreendedor serial considera que, “para empreendedores e negócios com bases sólidas, esta é uma oportunidade de se consolidarem como líderes. Para os investidores, esta é uma oportunidade de investir em boas avaliações. Para os funcionários que estão sendo demitidos, esta é uma oportunidade de sair do mundo fictício em que foram pintados.”

Embora nenhum dos empreendedores consultados tenha dito que tem um plano de demissões ativo, eles dão como certo que a onda de cortes também atingirá a Colômbia a qualquer momento, como reconheceu um dos principais executivos do setor de foodtech, que pediu que seu nome não fosse divulgado.

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Outros executivos consideram que o que está acontecendo na Colômbia é uma espécie de efeito de atraso e concordam que os cortes nos unicórnios latino-americanos VTEX (193 pessoas demitidas), Bitso (de 80 a 100 pessoas demitidas), Olist (pelo menos 60 funcionários), 2TM (que cortou 90 pessoas), QuintoAndar (160 funcionários demitidos), Loft (159), Facily (cerca de 139) e Creditas (11) também podem ocorrer na Colômbia, embora não se saiba em que proporção ou exatamente quando.

Rede de apoio

Nesse quadro de incertezas, Daniel Bilbao, CEO da Truora e renomado empresário colombiano, abriu nas últimas semanas uma plataforma virtual chamada Pivot para receber inscrições de funcionários de startups que foram demitidos nas últimas semanas e de empresas que desejam realocar colaboradores que não podem mais ter. O objetivo é unir funcionários com empresas que exigem esses perfis.

Bilbao disse à Bloomberg Línea que já existem 20 startups na Colômbia que se registraram no Pivot. Sobre os nomes dessas empresas, o empresário diz que são mantidas em reserva. Mas ele disse que pelo menos 70 pessoas com perfis como atendimento ao cliente, design, vendas, engenharia, análise de dados, desenvolvimento de negócios, operações, compras e finanças estão buscando novos rumos.

Ele disse que não tem planos de corte na Truora, mas reconheceu que se o plano fosse afetado no contexto atual, eles teriam que fazê-los, embora os primeiros a saber seriam os funcionários.

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“Isso não é algo isolado dos EUA, toda a América Latina está sendo afetada [pela onda de demissões]. A imprensa não está sentindo, mas já existem casos específicos executados e a suposição de que de alguma forma na América Latina é diferente é ingênua”, disse Bilbao em entrevista à Bloomberg Línea.

Freddy Vega é o fundador da edtech Platzi. Ele diz não ter feito demissões, mas tem consciência de que essa onda “vai chegar para todos”.

O líder da Platzi associa esse fenômeno à falta de investimento e à otimização de custos das empresas para sobreviver, após um aumento acelerado da captação de recursos nos últimos dois anos, algo que agora começa a vacilar.

Isso fez com que “os investidores exigissem que as empresas aumentassem o runway. Mas, mesmo assim, há mais ofertas de emprego e empresas contratando do que demitindo”, acrescentou.

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Por sua vez, o fundador da empresa de marketing de influência Fluvip, Sebastián Jasminoy, também está ciente da ameaça, mas diz que “não tem tanto a ver com a indústria de tecnologia, mas com o tipo de empresas que não têm modelos de negócios rentáveis”.

Ele também associa os cortes às empresas com margens muito pequenas que devem ter uma escala muito grande. “Às vezes também há modelos rentáveis que precisam de capital de giro até chegarem a um ponto”, disse o empresário.

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Queimando caixa

Do lado das fintechs, o cofundador da Tpaga, Andrés Gutiérrez, afirmou que o que está acontecendo é uma mensagem de alerta para que as empresas tenham cada vez mais cuidado com a queima de caixa e dólares, e que seu crescimento deve ser sustentável, com base na economia unitária positiva.

“Ninguém está alheio à realidade do mundo e acho que os fundos terão mais cuidado ao selecionar empresas que tenham uma boa taxa controlada. Os mais afetados serão os maiores e os que tiverem que arrecadar dinheiro este ano. E lá vai descer para o menor. Tivemos muita sorte de ter levantado [capital] há alguns meses, o que nos dá uma pista de pelo menos dois anos. A maneira de se proteger é focar na geração de receita e não exagerar nas contratações”, disse ele.

Mas o que dizem os fundos de venture capital? A Village Capital afirma que “o propósito de uma startup apoiada por capital de risco não é levantar dinheiro por levantar dinheiro, mas desenvolver e vender um produto que atenda a uma necessidade específica e depois crescer para ser financeiramente sustentável por vender esse produto em escala para clientes dispostos a comprá-lo”.

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“Os fundos na América Latina, assim como em outras regiões, desempenham um papel muito importante para incentivar os empreendedores que solicitam rodadas de capital a se concentrarem em receita e adequação ao mercado de produtos. Então, o dinheiro do capital de risco é um meio para um fim, não um fim em si mesmo”, acrescentou Daniel Cossío, Diretor Regional da Village Capital na América Latina, em entrevista.

Da mesma forma, Diego Noriega, sócio-gerente da Newtopia VC, indicou que “todos os fundos estão tomando decisões sobre como ajustar suas teses de investimento à nova realidade. Então, levando isso em conta, os fundos que mais tiveram que se ajustar são aqueles que investem em crescimento, ou seja, em estados mais avançados, normalmente na série B ou C.”

Para Noriega, no caso da Newtopia VC, ao investir em estágios como seed ou pré-seed, a empresa não fez grandes ajustes ou mudanças nas decisões. “Serve apenas para reforçar que as startups devem crescer com modelos sustentáveis, talvez mais robusto do ponto de vista de geração de lucros e pensar mais em negócios reais do que apenas projeções como vinha acontecendo antes da crise. Essa é uma correção do mercado e claramente os fundos de investimento e startups estão se adaptando à nova realidade”, comentou.

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Menos capital na mesa

O fundador da plataforma virtual de consulta médica 1doc3, Javier Cardona, diz à Bloomberg Línea que a situação atual vai definir as empresas que realmente têm negócios viáveis, que podem crescer independentemente do capital que levantarem e, portanto, serão privilegiadas.

“Na pior das hipóteses, em que não há mais Venture Capital, você verá algumas empresas que vão viver, somos uma empresa com breakeven. Proteger-se contra esse cenário é complexo, trata-se de ter uma economia unitária positiva e isso permite crescer, talvez não tão rapidamente devido à ausência de Venture Capital, que com certeza é o que começaremos a ver. Será mais difícil levantar rodadas gigantescas porque as avaliações estão comprimindo radicalmente”, disse.

Bilbao, da Truora, explica que, devido às políticas monetárias aplicadas durante a crise do coronavírus, havia “preços inflacionados nos mercados” e as startups tinham mais capital disponível, mas após a reativação econômica o panorama mudou radicalmente. “Para chegar ao valor passado, você tem ser duas vezes maior.”

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Você tinha um plano de execução e pensava: ‘vou crescer 3X nos próximos 12 a 18 meses e com isso vou dobrar minha avaliação.’ Agora terá que crescer 3X no mesmo período para atingir o mesmo patamar da rodada passada. E também sabemos que os mercados estão apertados porque as pessoas estão preocupadas com a queda do mercado de capitais, o dinheiro está mais caro por causa dos juros.”

Banho de realidade

Os fundadores se deparam com o desafio de ter um negócio mais eficiente e em crescimento com menos dinheiro disponível, o que significa gastar menos com marketing (com menor custo de aquisição) e gerar eficiência de caixa, o que para muitos se traduz em demissões de pessoal.

Bilbao também analisou que a situação pode se tornar mais complexa na América Latina, uma vez que existe a probabilidade de que alguns fundos que não estão sediados na região possam se deslocar para portos mais seguros quando as coisas começarem a se complicar.

Mas, por outro lado, há o contra-argumento de que a América Latina está tão subinvestida que sair da região é uma má ideia e por isso foram criados mais fundos locais, com operações em países como Brasil, México ou Argentina.

Segundo Daniel Bilbao, esses movimentos também respondem à dinâmica natural do Venture Capital, em que “alguns tiram do estádio e outros morrem pelo caminho. Na América Latina temos uma visão de fracasso um pouco torta”.

O empresário concluiu que existe “uma bolha que estourou” e que os mais fortes sobreviverão em um mercado mais eficiente. “Além disso, ouso dizer que nos próximos dez anos você considera todas as empresas latino-americanas por avaliação e pelo menos oito das dez primeiras serão empresas de tecnologia, algumas que já nasceram ou viraram.”

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Daniel Salazar

Profissional de comunicação e jornalista com ênfase em economia e finanças. Participou do programa de jornalismo econômico da agência Efe, da Universidad Externado, do Banco Santander e da Universia. Ex-editor de negócios da Revista Dinero e da Mesa América da Efe.

Isabela  Fleischmann

Jornalista brasileira especializada na cobertura de tecnologia, inovação e startups