Com excesso de energia, setor eólico e solar no Brasil enfrenta crise sem precedente

Empresas do segmento têm sido prejudicadas pela falta de linhas de transmissão para atender a geração cada vez maior; atrasos em licenças e juros altos também afetam a sustentabilidade financeira

Usina eólica
Por Cristiane Lucchesi - Giovanna Belotti Azevedo - Peter Millard
25 de Junho, 2025 | 03:24 PM

Bloomberg — Em poucos meses, o Brasil sediará a maior cúpula do clima do mundo. Mas, enquanto o país se prepara para receber milhares de participantes e autoridades para debater planos de combate ao aquecimento global, sua própria indústria de energia eólica e solar está na maior crise desde que nasceu, há cerca de 20 anos.

E as baixas estão se acumulando.

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A 2W Ecobank, produtora de energia eólica, entrou com pedido de recuperação judicial em abril.

A Rio Alto Energia Renováveis, que constrói e opera projetos de energia solar, entrou na Justiça para pedir proteção temporária contra credores enquanto tenta reestruturar sua dívida.

A Aeris, maior produtora de pás para parques eólicos do Brasil, reestruturou sua dívida após mais de 3.700 cortes de empregos.

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As empresas brasileiras de energia eólica e solar enfrentam desafios que refletem a situação dos projetos de energia limpa em todo o mundo: atrasos em licenças, escassez de linhas de transmissão, problemas na cadeia de suprimentos e altos custos de empréstimos.

Os reveses são tão graves que colocam em risco a meta mundial de energia verde — triplicar a capacidade de energia renovável até 2030.

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Corte na produção de energia solar e eólica imposto pelo operador no Brasil | Como percentual da produção

Diferentemente dos EUA, onde as políticas anti-energias renováveis ​​do presidente Donald Trump prejudicam o setor, o governo brasileiro continua sendo um firme defensor da energia verde.

Grande produtor de energia hidrelétrica, o país possui, por ampla margem, a matriz energética mais limpa entre todos os países do G20.

Também conquistou o terceiro lugar global em nova capacidade de energia eólica e solar no ano passado.

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Mas a indústria de energia renovável ​​do Brasil tem sido, em parte, vítima de seu próprio sucesso.

O aumento da produção com novas fontes eólicas e solares criou um excesso de energia durante o dia e não há linhas de transmissão suficientes para absorver toda a eletricidade, o que força o operador da rede a limitar a produção desses projetos.

E as emissões relacionadas à energia do país ainda precisam cair drasticamente para atingir zero em termos líquido até 2050, de acordo com a BloombergNEF.

“Estamos vivendo o pior momento” para o setor energético brasileiro, disse Elbia Gannoum, presidente da Abeeólica, associação nacional que representa a indústria eólica.

“É a primeira vez que vejo uma crise dessa magnitude e duração. Isso não é algo que se resolverá amanhã”, disse ela em entrevista à Bloomberg News.

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A Rio Alto Energia não quis comentar, enquanto a 2W Ecobank não respondeu aos pedidos de comentários.

A Aeris afirmou que a empresa renegociou 90% de sua dívida e ainda negocia a reestruturação dos empréstimos restantes, “abrindo caminho para uma melhora sustentada em sua situação financeira”.

O problema é tão generalizado que a Abeeólica e a Absolar, associação da indústria de energia solar brasileira, foram solicitadas a conversar com bancos e investidores para ajudar a estender os vencimentos da dívida.

Isso permitiria que empresas que enfrentam reduções de receita de até 60% possam sobreviver à crise de curto prazo.

“Os empréstimos e os títulos de dívida serão pagos, mas as pessoas precisam entender que o setor está passando por uma situação excepcional”, disse Rodrigo Sauaia, presidente da Absolar, em entrevista à Bloomberg News.

“É do interesse dos investidores e os bancos atravessar essa ‘tempestade’ junto com o setor.”

O BTG Pactual e o Santander Brasil estão entre os credores de algumas das empresas brasileiras de energia eólica e solar em dificuldades, juntamente com credores estatais como o BNDES e o Banco do Nordeste.

Investidores privados, incluindo a JGP Gestão de Crédito, também foram afetados. O BNDES e a JGP não quiseram comentar, enquanto o BTG e o Santander não responderam aos pedidos de comentários.

“Recebemos algumas demandas específicas para negociar devido a cortes de produção e conseguimos avançar, sem problemas, estresse ou falta de pagamento”, disse Luiz Abel, diretor de negócios do Banco do Nordeste (BNB), em entrevista.

Embora “as perdas estejam se acumulando para as empresas”, a carteira de empréstimos do BNB é saudável e conta com garantias sólidas, disse. Ele confirmou conversas com associações do setor, mas disse que prefere analisar caso a caso.

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As altas taxas de juros têm sido um desafio extra.

O Banco Central aumentou a taxa básica para 15% ao ano na semana passada, o nível mais alto desde 2006. No entanto alguns dos empréstimos para o setor de energia solar e eólica são subsidiados.

Para os fornecedores de peças para energia eólica, a queda na produção e o fechamento de fábricas levaram ao corte de 11.000 empregos entre 2024 e 2025, de acordo com uma pesquisa da Abeeólica.

“A crise é de profundidade muito grande no setor de energia eólica porque 80% da sua cadeia de fornecedores é nacionalizada”, disse Gannoum.

Desenvolvedores de projetos de energia eólica e solar enfrentam restrições de transmissão em todo o mundo, incluindo os EUA e a Europa.

No Brasil, o problema é particularmente grave, já que a maior parte da energia é produzida no Nordeste e consumida no Sudeste.

O operador de rede elétrica do país começou a cortar a produção de energia eólica e solar em 2020 devido à queda na demanda durante a pandemia.

Mas, depois de que flutuações na energia eólica e solar tiveram papel em um apagão que afetou grande parte do país em 2023, o operador cortou ainda mais a produção.

Em fevereiro, as restrições se tornaram ainda mais rigorosas após o colapso de uma linha de transmissão, disseram a Fitch Ratings e a Absolar.

Até 2029, com a entrada de novas usinas com contrato de uso do sistema de transmissão, a tendência é a de aumento na ocorrência de corte de produção por razões energéticas, ou seja, quando a geração excede a demanda em determinados momentos, especialmente nos horários diurnos, disse o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) em um relatório no início deste mês.

De acordo com uma lei de 2004, os produtores de energia eólica e solar eram integralmente ressarcidos pelos consumidores, por meio das contas de energia, pelas perdas decorrentes dos limites de produção.

Mas uma regulamentação da Aneel em 2023 fez com que, na prática, essas empresas agora recuperem, no máximo, apenas 3% de suas perdas, enquanto as usinas termelétricas continuam a receber o valor integral, de acordo com a Absolar.

A Absolar e a Abeeólica processaram a Aneel com pedido de ressarcimento de perdas que já acumulam R$ 4,8 bilhões em decorrência dos cortes de energia. A Aneel não respondeu a um pedido de comentários da Bloomberg News.

O Ministério de Minas e Energia, que criou uma comissão com representantes da indústria para tratar da situação, também não se pronunciou.

A Renova Energia, operadora de energia eólica e solar que acabou de sair da recuperação judicial, está em negociações com o governo para reduzir as perdas decorrentes dos cortes de produção impostos pelo ONS, segundo o site Canal Energia.

A empresa obteve progressos significativos no ano passado, “mesmo diante dos desafios atuais do setor elétrico brasileiro”, e realizará investimentos para expandir sua capacidade instalada, segundo comunicado.

“Enquanto não tivermos um grande número de linhas de transmissão para transportar essa energia, continuaremos a ver muito corte na produção”, disse Thainá Cavalini, diretora associada de infraestrutura e financiamento de projetos da Fitch.

Principais fontes de energia na matriz elétrica do Brasil | Em percentual da capcidade instalada total de 248.373 megawatts

Gannoum discorda. Para ela, o principal problema são as pequenas geradoras de energia solar que usam subsídios do governo para produzir energia não apenas para consumo próprio mas principalmente para lucro - e que geram muita eletricidade durante o dia.

Esse tipo de geração não é afetado pelas restrições de produção, que se aplicam apenas a grandes produtoras, e já representa 15% da capacidade total instalada, disse.

Embora o governo planeje comprar baterias para ajudar o armazenamento de energia, esses leilões foram adiados para o segundo semestre, disse Cavalini. Muitas empresas não têm condições de investir em baterias porque os impostos sobre elas podem chegar a 85%, de acordo com a Absolar.

A Fitch tem perspectiva negativa para o rating de três empresas brasileiras de renováveis devido aos cortes de energia: Serra do Mel Holding, Itarema Geração de Energia e Complexo Morrinhos Energias Renováveis, uma empresa com classificação de risco AAA controlada pela chinesa CGN Brasil Energia.

A CGN Brasil não quis comentar, enquanto a Serra do Mel e a Itarema Geração não responderam a pedidos de comentário da Bloomberg News.

O Nordeste brasileiro deve construir data centers e buscar projetos de hidrogênio verde para absorver o excedente de energia, disse Eduardo Sattamini, chefe das operações da Engie no Brasil, durante uma reunião com jornalistas em maio.

O país atraiu billhões em investimentos para projetos de linhas de transmissão para conectar energias renováveis ​​aos seus maiores mercados consumidores, mas esses projetos podem levar quase uma década para começar a operar.

Algumas empresas brasileiras de energia renovável tentam atrair parceiros ou vender seus negócios.

A Equatorial, uma das principais distribuidoras de energia do país, contratou o Banco Safra para tentar vender a geradora e comercializadora de energia eólica e solar Echoenergia Participações, que comprou por R$ 7 bilhões em 2022, disseram pessoas familiarizadas com o assunto à Bloomberg News em outubro passado.

A Equatorial Energia não respondeu aos pedidos de comentários.

Outras empresas simplesmente encerraram suas operações.

A GE Vernova, com sede em Massachusetts, nos EUA, anunciou em fevereiro que fecharia a fábrica de pás eólicas da LM Wind Power na cidade de Suape, em Pernambuco, eliminando 1.000 empregos, devido à queda na demanda no mercado latino-americano.

A brasileira WEG parou de produzir turbinas eólicas no ano passado, informou a empresa à imprensa. A WEG não respondeu aos pedidos de comentários.

Por enquanto, a perspectiva de uma recuperação no setor de energia limpa no Brasil permanece distante, disse Sauaia, da Absolar.

“O paciente está na UTI”, disse ele. Antes que qualquer tipo de recuperação possa acontecer, o setor “precisa primeiro parar de respirar por meio de aparelhos”.

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