Seria uma tragédia se as empresas ignorassem tudo o que aprenderam nos últimos dois anos com pressa para preencher mesas vazias
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Bloomberg Opinion — A luta de classes assume diferentes formas em diferentes épocas. Na Idade Média, os camponeses se revoltaram contra as dívidas feudais (essencialmente a obrigação de cultivar o solo do senhor da terra sem pagamento). No século XVIII, os tecelões quebraram os teares mecânicos. Nos séculos XIX e XX, os trabalhadores entraram em greve por melhores salários e condições de trabalho. Hoje, à medida que a pandemia diminui, outro ponto crítico está surgindo: se os profissionais do conhecimento devem ser conduzidos de volta ao escritório ou autorizados a continuar com suas novas liberdades.

Em todo o mundo, os chefes estão enviando memorandos nos quais fazem apelos retumbantes para que os funcionários voltem às mesas – enquanto muitos trabalhadores esmorecem ao se imaginarem de volta ao deslocamento diário e se empenham em encontrar convincentes argumentos contrários, aprimorando as estratégias de resistência. Eles devem ignorar os memorandos? Ou bater o pé até o limite possível – março não pode ser adiado para abril e abril para maio? Ou se aposentar mais cedo? Ou inventar uma nova deficiência – medo de ser carregado em vagões de gado e forçado a respirar o hálito portador de doenças de outras pessoas?

Essa imagem de nós contra eles talvez seja um pouco grosseira. Algumas empresas adotaram a abordagem do trabalho a partir de qualquer lugar. “Por que eu, como empregador, deveria me importar, contanto que você consiga fazer o trabalho e seja altamente produtivo”, perguntou o CEO da International Business Machines, Arvind Krishna. E alguns trabalhadores, principalmente os mais jovens, preferem trabalhar no escritório, seja porque têm pouco espaço em casa ou porque querem traçar uma linha clara entre casa e trabalho. Contudo, essa batalha nos diz algo importante. A empresa de recrutamento Korn Ferry aponta para dados que sugerem que “a lacuna entre as visões da alta gerência e dos funcionários quanto ao local de trabalho continua a crescer”: por exemplo, 53% das empresas dos Estados Unidos consideram que seu funcionamento se baseia “totalmente no escritório” ou “principalmente no escritório” enquanto 78% dos trabalhadores do conhecimento querem “flexibilidade de localização” e 72% estão descontentes com o nível atual de flexibilidade de sua empresa.

A dura realidade é que existe uma assimetria fundamental de interesses entre patrões e trabalhadores do conhecimento. Jamie Dimon, do JPMorgan, teve coragem o suficiente para dizer em voz alta o que outros CEOs estavam pensando: “As pessoas não gostam de se locomover diariamente para ir trabalhar, mas e daí?” Em outras palavras, nós pagamos você, nós possuímos você.

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As preocupações dos chefes começam com a ocupação física dos escritórios: tendo gasto bilhões, senão trilhões de dólares comprando ou alugando imóveis coletivamente, eles querem um retorno para seu investimento. Deixar uma mesa vazia equivale a queimar dinheiro. Mas eles também incluem coisas confusas como cultura e criatividade. Como os novos recrutas serão treinados e aculturados nas formas distintas da empresa se os veteranos estiverem trabalhando em casa? E como as empresas continuarão inovando se os trabalhadores não se encontrarem por acaso no cafezinho? “Trabalhar em casa significa que o acaso é suplantado pelo agendamento, cara a cara pelo Zoom”, diz Andy Haldane, ex-economista-chefe do Banco da Inglaterra.

Por sua vez, os trabalhadores querem defender sua qualidade de vida. O período de trabalho em casa forçado durante a pandemia não apenas permitiu que eles se reconectassem com suas famílias, animais de estimação e vizinhos. Também os ensinou que podem ser tão produtivos, se não mais, se estiverem livres do tempo do trajeto e das pequenas distrações do escritório. Os dados corroboram esse sentimento. Uma pesquisa do Goldman Sachs Group em julho de 2021 descobriu que a produção de trabalhadores dos EUA por hora aumentou 3,1% em 2020, mais que o dobro da taxa de crescimento do ciclo de negócios anterior. Um estudo da Harvard Business School sobre o prazo para a primeira e a última comunicação diária de mais de 3 milhões de pessoas de mais de 21.000 empresas durante os lockdowns da covid em 16 cidades nos EUA, Europa e Oriente Médio mostrou que o dia de trabalho médio dura 8,2% a mais - um adicional de 48,5 minutos. Os bancos de Wall Street registraram lucros e receitas recordes durante a pandemia, apesar da percepção de que o setor bancário é o negócio presencial por excelência.

O confronto entre patrões e trabalhadores será um teste interessante das forças relativas dos dois grupos. As décadas pré-pandemia foram gloriosas para os chefes, pois as forças gêmeas da globalização e da tecnologia lhes deram acesso a milhões de cérebros mais baratos no mundo emergente. No Vale do Silício, os empregadores falaram em “contratação sem distração” – que é a conveniência de encontrar trabalhadores sem vida familiar para distraí-los. Na Coreia do Sul, o governo introduziu uma legislação para resolver o problema da “morte por excesso de trabalho”. Mas o equilíbrio de poder está voltando para a mão dos trabalhadores. A escassez de mão de obra parece que veio para ficar, principalmente na economia do conhecimento. E o mundo corporativo está dividido entre empresas como o Goldman Sachs e o JPMorgan, que tendem a querer seus trabalhadores de volta em tempo integral sem questionamento, e insurgentes ou, no caso da IBM, gigantes em recuperação, que veem a flexibilidade como ferramenta de contratação de talentos.

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Existe alguma maneira de evitar um cabo-de-guerra destrutivo através de concessões e da conciliação? A solução mais elogiada para o problema é o local de trabalho híbrido: os funcionários passam dois ou três dias por semana trabalhando em casa e dois ou três dias trabalhando no escritório. Embora essa ideia seja popular, não é tão inteligente quanto parece.

Por um lado, isso realmente não resolve o problema: os funcionários simplesmente brigam para ver quem fica com os três dias e quem fica com os dois. Por outro, criará um pesadelo logístico. Como garantir que os trabalhadores não vão tirar todos os mesmos dias de folga (geralmente segundas e sextas-feiras)? Como lidar com a divisão entre os trabalhadores que podem estar trabalhando remotamente e discando para teleconferências enquanto outros estão no escritório? E como lidar com o possível surgimento de duas forças de trabalho paralelas, ou de duas vias – pessoas que aparecem todos os dias e aquelas que preferem trabalhar em casa? Estudos que mostram que pessoas negras e mulheres altamente educadas com filhos pequenos são relativamente mais interessadas em trabalhar de casa indicam que o problema das duas vias pode ser ainda mais preocupante. Se os escritórios conferem grandes vantagens em termos de cultura e criatividade, porque só ir lá dois dias por semana; e se eles não conferem essas vantagens, por que ir para lá?

Uma solução melhor é se engajar em uma reformulação mais fundamental do trabalho de escritório. A pandemia encorajou os pensadores da gestão a fazer algumas perguntas sobre o trabalho de colarinho branco. Para que servem os escritórios? Eles realmente incentivam aqueles famosos “momentos de troca informal”? E mesmo se o fizerem, alguns encontros aleatórios valem a pena? Os escritórios são as melhores maneiras de fornecer bens corporativos óbvios, como criatividade e continuidade cultural? Ou existem maneiras melhores disponíveis? (Dois novos livros que analisam essas questões trazem muito o que pensar sobre o tema: “Redesigning Work”, de Lynda Gratton, professora da London Business School, e “The Nowhere Office”, de Julia Hobsbawm, uma empreendedora de networking.)

A pandemia também desencadeou uma onda de criatividade nas empresas mais perspicazes. A Dropbox está evitando deliberadamente o modelo híbrido. Os funcionários se reunirão pelo menos uma vez por trimestre para trabalhar em equipe e reforçar os laços, mas farão o trabalho individual em casa. Sob este plano, a empresa de software não terá escritórios tradicionais, mas terá “estúdios” configurados para reuniões. A Alphabet está reconfigurando seus escritórios na suposição de que os funcionários irão trabalhar para colaborar em vez de trabalhar em paralelo uns com os outros. Haverá espaços de “trabalho em equipe” com mesas compartilhadas e quadros brancos. Esses espaços serão flexíveis para que possam ser reconfigurados de acordo com o tamanho do grupo. Também haverá “rodas” ou “fogueiras” onde os participantes físicos se sentarão em círculos intercalados com telas verticais impossíveis de ignorar, que permitem que trabalhadores remotos participem das conversas no mesmo nível que as pessoas no escritório. A gigante do software Salesforce.com assinou um contrato de reserva de vários anos para um sítio de 75 acres situado na região das sequóias de Scotts Valley, 70 milhas ao sul de São Francisco. A ideia é aproveitar o espaço de retiro para apresentar aos novos colaboradores a cultura da empresa e realizar reuniões de equipe.

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Aqui estão alguns princípios que devem nortear o pensamento da gestão sobre a reinvenção do escritório para o mundo pós-covid.

Não imponha soluções únicas: os gerentes precisam se concentrar no que é apropriado para tarefas específicas, e não em metas para levar as pessoas de volta ao escritório. O escritório pode ser o local ideal para sessões de brainstorming ou avaliações de desempenho. Mas é tolice se deslocar para o escritório para fazer algo que você pode fazer igualmente bem em casa, como processar informações ou ler roteiros.

Não presuma que os escritórios são a chave para a criatividade: os escritórios podem servir tanto de distração quanto de interação criativa – o colega barulhento no telefone o dia todo ou o superamigável constantemente aparecendo para ver como você está. A revolução do plano aberto – a tentativa de encorajar a circulação de ideias derrubando paredes de cubículos e criando espaços abertos – produziu resultados mistos. Um estudo de 2019 de uma empresa da Fortune 500, que havia abandonado cubículos para um arranjo de plano aberto, descobriu que as interações presenciais caíram 70%, enquanto as interações digitais aumentaram para compensar. Os trabalhadores se isolam do burburinho do mundo sem fronteiras usando fones de ouvido e se comunicando por e-mail com pessoas sentadas na mesma sala. Os escritórios são particularmente hostis quando se trata de gerar o tipo de concentração profunda – o que o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi chama de “fluxo” – que produz o trabalho mais criativo.

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Explore outras formas de transmitir a cultura corporativa: a alta gerência tende a pensar que só porque aprenderam seus empregos trabalhando 15 horas por dia e ocasionalmente se deparando com lendas corporativas no corredor, essa é a única maneira de preservar a cultura corporativa. Mas há outras maneiras de transmitir o DNA da empresa que não dependem de horas extras no escritório justificadas por encontros ocasionais no corredor: organizar campos de treinamento no escritório ou em outro lugar, organizar encontros sociais regulares, executar programas de orientação online e offline. A espontaneidade é importante demais para ser deixada nas mãos do acaso.

A pandemia demonstrou a rapidez com que o mundo corporativo pode se configurar à luz de um choque existencial. Seria uma tragédia se as empresas ignorassem tudo o que aprenderam nos últimos dois anos com pressa para preencher mesas vazias e voltar ao mundo (longe do ideal) de antes do ataque do vírus.

Adrian Wooldridge é o colunista de negócios globais da Bloomberg Opinion. Ele foi anteriormente um escritor do Economist. Seu último livro é “A aristocracia do talento: como a meritocracia fez o mundo moderno”

– Este texto foi traduzido por Marcelle Castro, Localization Specialist da Bloomberg Línea.

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