Por que tantos aviões privados caem no Brasil

Entrar num voo privado nunca vai ser tão seguro quanto num voo de carreira, mas algumas precauções podem deixar a matemática ao lado do passageiro

King Air que levava a cantora Marília Mendonça
15 de Novembro, 2021 | 09:24 AM

São Paulo — No dia 5 de novembro, o avião que levava Marília Mendonça, 26, para um show em Minas Gerais atingiu um cabo da rede elétrica da Cemig, caiu, matando quatro pessoas, além da cantora. Segundo a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), o King Air C90A, com 2 motores turbo-hélices pertencia à empresa PEC Táxi Aéreo e estava em situação regular. O piloto, Geraldo Medeiros, que também morreu, tinha 15 anos de aviação e era considerado experiente.

Em 14 de setembro, o empresário e acionista do grupo Cosan, Celso Silveira de Mello Filho, de 73 anos, morreu em um acidente aéreo, junto com a mulher, seus três filhos e o piloto. A aeronave, um King Air 200, pertencia ao empresário e também estava em situação regular, segundo a Anac. As causas dos dois desastres ainda estão sendo investigadas pelo Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos).

Tragédias como a de Marília Mendonça e do acionista da Cosan suscitam perguntas sobre a segurança dos voos privados no Brasil. Mas, embora o registro de acidentes em voos particulares - muitas vezes chamados de “aviação geral” por especialistas - tenha oscilado para baixo nos últimos dez anos, voar em um avião particular continua tão perigoso como sempre, em comparação com embarcar num voo de carreira, cujos acidentes são bastante mais raros.

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Tecnicamente, aviação geral abrange tudo aquilo que não é uma linha aérea convencional, aviação militar ou esportiva, como ultraleves e asa deltas. Aqui convém fazer uma distinção: aviação geral – esta categoria onde se enquadram os acidentes que mataram Marília Mendonça e o sócio da Cosan – inclui táxis aéreos, aviões privados (que não têm autorização para cobrar pelo transporte de passageiros), as aeronaves agrícolas e modelos experimentais.

Ao contrário do que faz crer o senso comum, piloto e passageiros escapam com vida na maioria das vezes em que um avião se acidenta. Dos 1640 acidentes investigados pelo Cenipa entre janeiro de 2012 e a semana passada, em 385 acidentes houve mortes (764 vítimas, ao todo). Ninguém morreu ao embarcar num voo de carreira no mesmo período no Brasil.

“Nos últimos 9 anos não houve nenhum desastre com linhas comerciais no Brasil e o país registrou uma média de 61 mortes por ano. Isso quer dizer que os voos de linhas aéreas são os únicos seguros e os demais não? Não necessariamente, porque se você observar que em um ano em que ocorre um acidente com uma linha, o número de vítimas equivale quase a uma década de acidentes em táxis aéreos e aviões privados”, disse o consultor Raul Marinho à Bloomberg Línea.

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Marinho é gerente-técnico da Abag (Associação Brasileira de Aviação Geral) e vice-presidente do BGAST (Grupo Brasileiro de Segurança Operacional da Aviação Geral), uma organização que reúne operadores privados, a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) e o Cenipa.

A média de um acidente para linhas convencionais e 20 acidentes com táxis aéreos a cada 1 milhão de decolagens atende aos padrões internacionais de segurança aérea (veja mais gráfico abaixo).

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“A própria ICAO (Organização da Aviação Civil Internacional) tem exigências mais liberais em relação aos requisitos de segurança para a operação da aviação geral. Isto ocorre porque sem essa flexibilidade, a aviação geral não teria como existir”, afirmou.

E comparou: “Por exemplo: uma linha aérea de grande porte jamais operaria em um aeródromo restrito como o de Caratinga, mas um avião da aviação geral pode. Se não fosse assim, dos quase 3 mil aeroportos que existem no Brasil, somente cerca de 200 poderiam receber voos”.

Como gerenciar riscos antes de embarcar

É virtualmente impossível num país com dimensões continentais como o Brasil – que tem 15 mil aeronaves em operação (segunda maior frota do mundo, só atrás do Estados Unidos) – que o transporte de passageiros pelo ar se restrinja a grandes companhias aéreas, que operam apenas 479 aviões.

Para começar, linhas aéreas convencionais só decolam e pousam em cerca de 130 aeroportos do país, enquanto os voos privados podem operar em mais de 3000 aeródromos públicos e privados – grande parte deles espalhados em Estados que são potências do agronegócio, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, e Estados do Norte.

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Dos mais de três mil aeroportos e aeródromos existentes no país, a maioria não opera por instrumentos; isto é, o piloto depende de ter uma boa visibilidade da pista enquanto se prepara para pousar.

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É comum no interior do país que muitas dessas pistas não tenham asfalto, enfrentem problemas com as cercas (a ANAC já registrou caso de colisão de um avião pousando com um motociclista que invadiu a pista) e, não raro, têm obstáculos ao redor, como montanhas e construções humanas.

No caso de Marília Mendonça, a informação preliminar é que o avião chocou-se contra uma rede de transmissão elétrica da Cemig – caso de obstáculo clássico, segundo as regras de segurança aeroportuária.

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Como no resto do mundo, as regras para segurança operacional no Brasil se baseiam em uma premissa simples: quanto menos informação alguém tem sobre um avião, sua manutenção e o histórico do piloto, maior é o nível de exigência da autoridade sobre o dono da aeronave.

Isto é, quando a Gol ou a Azul vendem uma passagem para a ponte-aérea, por exemplo, o nível de segurança é o mais alto exigido porque essas empresas carregam milhões de pessoas por ano e a base de seu negócio é a confiança de cada uma delas que todos os fatores de segurança estão sendo observados com o grau mais elevado de rigor.

O nível de exigência para as grandes companhias não é – nem poderia ser – o mesmo do fazendeiro que tem uma aeronave para visitar suas propriedades em regiões longínquas. Em última análise, o dono do avião comprou a aeronave, deve cuidar da sua manutenção e tem a responsabilidade de ser criterioso com as condições de trabalho do seu piloto. Ou seja, o grau de conhecimento dele antes de subir a bordo é incomparavelmente maior do que a de um passageiro de linha comercial.

Basicamente, no Brasil, há três conjuntos de normativas emitidas pelas autoridades a partir destes dois extremos. O Regulamento Brasileiro da Aviação Civil (RBAC) 121 é estabelece as regras para a aviação comercial tradicional, como o maior número de horas para treinamento de pilotos, uma lista mais restrita para o número de aeroportos certificados pela Anac onde podem operar e protocolos mais rígidos para a segurança da operação e manutenção da aeronave.

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Há diferenças pontuais com relação ao RBAC 135, que regula o setor de táxi aéreo, como número de horas mínimas exigidas dos pilotos. Táxis aéreos são autorizados a operar na maioria dos 2.500 aeródromos privados existentes no Brasil, enquanto o RBAC 91 disciplina a atividade dos aviões privados que não podem transportar passageiros.

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O Bradesco, segundo maior banco privado do país, tomou a iniciativa de aderir voluntariamente a protocolos mais rígidos de segurança, similares ao de empresas que transportam passageiros, depois que um acidente com um jato privado da companhia matou os executivos Marco Antônio Rossi, presidente da Bradesco Seguros, Lúcio Flávio Condurú de Oliveira, presidente da Bradesco Vida e Previdência, além do piloto e copiloto. O acidente ocorreu em novembro de 2015, na divisa de Minas com Goiás.

Teoricamente, os aviões do banco se enquadrariam no RBAC 91, mas a instituição preferiu tornar mais rígidas as rotinas de manutenção, contratação de pilotos e o uso do sistema de gestão de segurança operacional. Segundo Raul Marinho, corporações como Bradesco, Vale e Votorantim adotam padrões similares ao de empresas de transportes de passageiros.

MORTE DE TEORI ZAVASCKI PODERIA NÃO TER OCORRIDO EM TÁXI AÉREO: Um exemplo prático de como a obediência aos regulamentos pode fazer a diferença entre a vida e a morte é o voo do King Air, prefixo PR-SOM, em janeiro de 2017. O sumário feito pelo Cenipa é o seguinte: “Durante aproximação para o aeródromo de Paraty (SDTK), em condições meteorológicas desfavoráveis, a aeronave veio a colidir com o mar”.

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“Um táxi aéreo regido pelo RBAC 135 jamais teria levantado voo de São Paulo para Paraty com aquelas condições de tempo porque o sistema de gestão de segurança operacional não teria permitido. Mas o voo foi feito em um avião privado, que não precisa seguir esse sistema de gestão”, analisou Marinho, da Abag.

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Em outras palavras, se o ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki tivesse usado um táxi aéreo para o deslocamento em vez de pegar uma carona com o dono do Hotel Emiliano, proprietário da aeronave, é possível que o acidente jamais tivesse acontecido.

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“Os sistemas de gestão de segurança operacional são como uma vacina. Você pode pegar Covid depois de ser vacinado? Sim, pode, mas o risco de isso acontecer e você vir a morrer é bem menor. Com esses sistemas é a mesma coisa, desde que se tornaram obrigatórios, o número de acidentes com táxis aéreos vem caindo no país”, comparou Marinho.

O maior risco de todos: táxi aéreo clandestino

Um acidente aéreo começa muito antes do avião levantar voo: falhas na manutenção, má preparação de pilotos, escolhas mal feitas de condições de voo.

“Eu poderia dizer que 95% dos acidentes que temos aqui são provocados por algum tipo de falha humana, só uma minoria vem de algum problema com o projeto da aeronave, por exemplo”, disse à Bloomberg Línea, um consultor aeronáutico baseado no Rio de janeiro. Ex-investigador do antigo DAC (Departamento de Aviação Civil) e do Cenipa, o consultor pediu para não ter o nome citado pela reportagem porque ele atua em casos que ainda estão sob investigação.

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“O maior problema que temos hoje são os táxis aéreos piratas, que transportam passageiros ilegalmente, mas a sua rotina de manutenção e de segurança não é a dos táxis aéreos, mas a da aviação privada”.

Marinho, da Abag, coincide com o diagnóstico do perigo dos táxis aéreos clandestinos. Ele cita como um exemplo recente o da queda do helicóptero que matou o jornalista Ricardo Boechat, em fevereiro de 2019.

O relatório da investigação do Cenipa concluiu que problemas de manutenção do helicóptero foram responsáveis pela queda da aeronave, na rodovia Bandeirantes, entre Campinas e São Paulo. O apresentador da Band voltava à capital depois de uma palestra.

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“A grande diferença do que aconteceu com Boechat é que o dono da aeronave, que fazia o táxi aéreo sem autorização, estava junto, o que costuma ser raro”, conta Marinho.

E prossegue: “Alguém vai contratar um táxi aéreo de São Paulo a Brasília e uma empresa regular, com tudo em dia, diz que o preço é R$ 50 mil. Infelizmente, se um clandestino oferecer o mesmo trecho por R$ 12 mil, algumas pessoas aceitam pagar, mas não levam em conta que o risco é muito maior porque a aviação privada não atende aos mesmo requisitos de segurança”.

A primeira providência antes de embarcar num avião é verificar se aquela aeronave está regular junto à Anac e se tem autorização para transportar passageiros. Uma maneira de fazer isso é usar o aplicativo Voe Seguro, disponibilizado pela Anac. Com ele, o passageiro pode conferir rapidamente a situação da aeronave.

Aplicativos como o Flapper, que vendem assentos em voos, negociam exclusivamente com táxi aéreos regulares – o que também o torna uma maneira mais segura de voar do que tomar um voo em um avião privado, que não cumpre os requisitos mínimos de manutenção, qualificação dos pilotos ou gestão de segurança de voo.

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Graciliano Rocha

Editor da Bloomberg Línea no Brasil. Jornalista formado pela UFMS. Foi correspondente internacional (2012-2015), cobriu Operação Lava Jato e foi um dos vencedores do Prêmio Petrobras de Jornalismo em 2018. É autor do livro "Irmã Dulce, a Santa dos Pobres" (Planeta), que figurou nas principais listas de best-sellers em 2019.