Ele levou sua startup à bolsa, perdeu o controle e vendeu tudo. E conta a lição

Eduardo L’Hotellier, fundador da GetNinjas, atraiu investidores como Kaszek, Monashees e Tiger Global. E chegou à B3 em 2021. ‘Quero fazer tudo de novo’, disse em entrevista à Bloomberg Línea

Eduardo L'Hotellier, CEO da GetNinjas
02 de Fevereiro, 2024 | 04:55 AM

Bloomberg Línea — Com uma espada tradicional japonesa (kataná), típica dos antigos samurais, Eduardo L’Hotellier encarnava a imagem do líder de uma startup de sucesso na estreia da GetNinjas (NINJ3) no pregão da B3, no dia 14 de maio de 2021, no meio da pandemia.

Era o auge de um negócio iniciado uma década antes, em 2011, quando fundou aos 26 anos um site para a contratação de serviços. Inicialmente batizado de Cidade dos Bicos, em alusão à gíria para trabalho temporário, ele se propunha a conectar clientes a profissionais, de encanadores a diaristas.

Na última semana, o empreendedor, agora com 39 anos, cortou os laços com a plataforma ao decidir vender integralmente sua participação acionária de 24,59% por estimados R$ 62,5 milhões, depois de perder o controle da companhia para a gestora Reag Investimentos, de João Carlos Mansur.

No IPO (oferta inicial de ações), a GetNinjas chegou à bolsa brasileira com valor de mercado na casa de R$ 1 bilhão, e L’Hotellier personificou o sucesso de um jovem formado em engenharia da computação pelo IME (Instituto Militar de Engenharia), que largou uma carreira então promissora em consultoria - ele já havia trabalhado na McKinsey, na Bain&Co e na Angra Partners - para empreender.

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De lá para cá, o valor de mercado da startup encolheu para cerca de R$ 250 milhões, reflexo de uma onda de correção de valuation que castigou as chamadas empresas de growth (crescimento acelerado) com perfil de inovação tecnológica em um contexto de juros elevados, que chegaram a 13,75% ao ano. E reflexo de um crescimento prometido a investidores que não se concretizou.

A queda de cerca de até 90% do papel, que saiu de R$ 20 na estreia para uma cotação mínima de R$ 2,11 em abril passado, abriu caminho para a ofensiva da Reag, que, ao longo de 2023, ampliou sua posição até acionar a cláusula (poison pill) para lançar uma OPA (oferta pública de aquisição) pelo restante das ações.

“Fizemos o IPO com uma cláusula fraca de poison pill, o que permitiu que um grupo de maneira oportunística adquirisse o controle da companhia pagando um deságio com relação ao caixa líquido”, disse L’Hotellier em entrevista à Bloomberg Línea ao refletir sobre o que o levou a perder o controle.

A disputa entre o empreendedor e a Reag eclodiu em setembro passado, quando L’Hotellier convocou uma assembleia de acionistas para votar sua proposta de redução de capital para devolução de R$ 223,5 milhões do caixa, uma parte maior dos recursos captados no IPO, com o argumento de ajustar o valor patrimonial da empresa em relação ao market cap, a fim de evitar riscos de dissidência em futuras operações de M&A.

A proposta foi derrotada no mês seguinte e deu força à Reag, então já uma acionista relevante, que questionava a estratégia do fundador para o crescimento da companhia.

Eduardo L'Hotellier, fundador da GetNinjas, no dia da estreia no pregão da B3 em 14 de maio de 2021 em meio à pandemia: auge de uma startup que havia sido lançada uma década antes

“Um grupo de acionistas com o qual não me sentia confortável em ser sócio adquiriu o controle da companhia e, mesmo acreditando no negócio e no time, preferi sair”, disse o fundador.

A gestora de Mansur lançou a OPA ao superar o limite de posição acionária de 25% em 11 de outubro, acionando a obrigação de anunciar o edital de oferta para adquirir as demais ações.

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No último dia 24 de janeiro, a oferta foi concretizada um preço fixado em R$ 5 por ação. E L’Hotellier vendeu a sua participação. Naquele momento, o empreendedor já havia sido destituído dois meses antes do cargo de CEO da companhia que havia fundado, em decisão do conselho de administração já sob domínio da Reag e da também gestora ARC Capital, de Sérgio Machado.

Agora sem cargo formal nem capital na GetNinjas, o empreendedor, pai de um filho de dois anos e meio, disse que planeja um período sabático com viagens pela Índia, China e Vale do Silício, na Califórnia.

“Estou em busca da próxima ideia para empreender novamente. O bom de ter começado a empreender cedo, aos 26 anos, é que agora aos 39 ainda tenho muitos anos pela frente para fazer tudo de novo, e com mais experiência, de quem já tem alguns cabelos brancos”, disse.

De Kaszek e Monashees à Tiger Global

Em seu começo, a GetNinjas atraiu a atenção de dois dos fundos de VC (venture capital) pioneiros na América Latina, a Kaszek Ventures e a Monashees, responsáveis pelo investimento de seed money (estágio inicial) de US$ 700 mil (R$ 1,2 milhão, na cotação da época). Ambos mais tarde lideraram a rodada Series A de US$ 3 milhões (R$ 5,9 milhões naquele ano) em 2013.

No mesmo ano, a GetNinjas chegou a ser considerada pela Microsoft a melhor startup brasileira, segundo o prospecto para o IPO.

Em 2015, a GetNinjas atraiu a gigante americana de VC Tiger Global, que liderou uma rodada Series B de cerca de US$ 8 milhões (R$ 25 milhões na época). E, em 2018, a startup obteve um investimento da empresa francesa Saint-Gobain por meio de seu “braço” de corporate venture capital (CVC).

Em 2019, chegou ao breakeven, ou seja, ao equilíbrio entre receitas e despesas. No prospecto para o IPO, em 2021, se apresentava como um player em condições de se tornar um hub one-stop-shop para todo tipo de serviço dos brasileiros, incluindo as promissoras verticais de saúde e tecnologia. Naquele momento, já transacionava R$ 1 bilhão e intermediava a contratação de 4 milhões de serviços ao ano.

Em 2021, houve ainda um aporte de R$ 38,8 milhões da RC Capital. Os recursos ajudaram a GetNinjas a aprimorar sua plataforma, o que aumentou o número de clientes.

L’Hotellier destacou o fato de que a GetNinjas fez parte de uma geração inicial de startups brasileiras que cresceram ao longo da última década com recursos de fundos de venture capital, em uma aposta de modelos de negócios considerados disruptivos naquele momento.

Na mesma onda, entre outubro de 2020 e agosto de 2021, também chegaram à bolsa por meio de IPOs startups com diferentes trajetórias e histórias, como Méliuz (CASH3), Enjoei (ENJU3), Espaçolaser (ESPA3), Mosaico (MOSI3), Mobly (MBLY3), Clear Sale (CSLA3), Bemobi (BMOB3), Westwing (WEST3), entre outras.

“A forma tradicional de construir uma grande empresa é começar pequeno e reinvestir seus lucros durante décadas e gerações. Creio que muitas empresas foram levadas à bolsa pelos filhos ou netos de seus fundadores”, observou L’Hotellier sobre uma das dinâmicas de companhias listadas.

“Uma maneira mais recente é por meio de stage financing, por meio de sucessivas rodadas de investimento em geral com a participação de venture capital, e essa rota acaba diluindo [a participação] de fundadores que chegam ao IPO com muito menos que 50% da empresa”, disse o fundador da GetNinjas.

No IPO, a Tiger Global, a Monashees, a Kaszek e a Saint Gobain aproveitaram para vender ações. A oferta inicial movimentou R$ 554 milhões, dos quais R$ 321 milhões de forma primária - recursos que foram para o caixa da companhia -, e R$ 223 milhões embolsados por acionistas com a venda de ações.

Um ano e meio depois do IPO, a GetNinjas tinha mais de R$ 270 milhões em caixa, e o então CEO da GetNinjas preferiu manter uma postura conservadora diante das incertezas econômicas e aplicar o dinheiro no CDI (indexador de renda fixa). O argumento? Esperar uma melhora do cenário macro para retomar os planos de crescimento da companhia, como revelou à Bloomberg Línea no começo do ano passado.

A Reag, ao se tornar acionista, criticava essa decisão de não usar os recursos captados no IPO para realizar aquisições e acelerar o crescimento da plataforma.

‘Eventos de cauda’

“São várias lições [da experiência de comandar a GetNinjas], talvez um dia escreva todas em um livro. Mais recentemente aprendi a lição de estar mais atento a eventos de cauda [imprevisíveis]”, afirmou.

Para L’Hotellier, o conflito com a Reag não chegou a prejudicar a reputação da GetNinjas e até ajudou a atrair atenção do público para a plataforma, levando à conquista de novos clientes. Os números do quarto trimestre ainda não foram divulgados. No terceiro trimestre, a empresa teve 1,05 milhão de solicitações de clientes, cerca de 70.000 a mais do que no período entre abril e junho (+7%).

“Tenho uma visão construtiva. Quero ver a GetNinjas crescer ainda mais. Tivemos um ótimo terceiro trimestre. Os próximos resultados vão refletir esse efeito positivo do carrego e das iniciativas que tocamos”, disse o executivo em dezembro, antes de anunciar a decisão de aderir à OPA.

A GetNinjas chegou ao lucro pela primeira vez como empresa de capital aberto no segundo trimestre de 2023 e repetiu a dose no período seguinte, quando também gerou caixa de forma inédita, ainda com o fundador no comando.

L’Hotellier, que comandou a companhia por 12 anos, disse esperar que a nova administração da companhia não perca o foco com múltiplas apostas para tentar aumentar o faturamento da plataforma, pois isso, em sua visão, ampliaria a probabilidade de fracasso.

As ações da GetNinjas estão nas mãos de 4.590 pessoas físicas, 134 investidores institucionais e outros 134 pessoas jurídicas, segundo dados da B3.

Com a saída de L’Hotellier, a ARC Capital tornou-se a segunda maior acionista com 23,49% do capital. A Reag é a controladora com 66,36%.

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Sérgio Ripardo

Jornalista brasileiro com mais de 29 anos de experiência, com passagem por sites de alcance nacional como Folha e R7, cobrindo indicadores econômicos, mercado financeiro e companhias abertas.