‘Vale da morte’ testa fundos multimercados no Brasil após resgates de R$ 134 bi

Cenário com juros de dois dígitos tem levado fundos a operar com uma fração do seu pessoal inicial e estimulado processo de consolidação

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Bloomberg — A febre dos fundos multimercados vinha tomando conta do Brasil. Com os juros nas mínimas históricas e os investidores em busca de retornos mais atrativos, executivos deixaram os bancos em massa e montaram suas próprias gestoras perto da praia no Rio de Janeiro, ou na Faria Lima, o movimentado centro financeiro de São Paulo.

No seu auge durante a pandemia, a demanda por investimentos alternativos cresceu tanto que os fundos mais conhecidos abriam para captação e fechavam alguns segundos depois. O número de gestoras quase dobrou, atingindo um recorde de quase 1.000 casas.

O boom não durou muito. Quando o Banco Central começou a subir agressivamente as taxas de juros para combater a inflação, os brasileiros voltaram ao que sabem fazer melhor: investir o seu dinheiro em títulos do governo que pagam juros de dois dígitos.

As apostas mais arriscadas em ações, títulos de dívida corporativa e em fundos multimercados rapidamente perderam seu apelo.

Os investidores retiraram R$ 87 bilhões dos multimercados em 2022, interrompendo seis anos consecutivos de fluxo positivo para a indústria, e retiraram outros R$ 47 bilhões até agora neste ano. O impacto foi sentido em toda parte.

Algumas das estrelas da indústria abriram mão do seu próprio bônus para pagar integralmente suas equipes; outros sacaram de suas próprias economias pessoais para manter as luzes acesas; várias casas fecharam, incluindo algumas formadas por veteranos do Credit Suisse e do Deutsche Bank.

A maioria, porém, ainda está sobrevivendo. Isso criou, como disse um executivo do setor, um grupo de “mortos-vivos” vagando no “vale da morte”: fundos que operam com uma fração do seu pessoal inicial e tentam criar novas estratégias de investimento.

Não captam dinheiro novo e, em muitos casos, gerem somente seus próprios ativos, da família e de amigos.

É mais um revés para os mercados brasileiros, cujo desenvolvimento tem sido frustrado há muito tempo pelo fascínio irresistível dos títulos do governo de alto rendimento. Quando as taxas caíram para um dígito e depois para mínimas históricas, surgiu uma leva de novos fundos.

O número de empresas de gestão de recursos de terceiros quase duplicou a partir de 2016, quando o Banco Central começou a cortar as taxas.

Agora, dois terços das casas têm menos de R$ 1 bilhão sob gestão. Embora esse número inclua alguns fundos que foram lançados recentemente apesar da crise, ele também revela o fracasso da mudança estrutural que muitos viram para a indústria.

“Essa ressaca ainda não acabou”, disse Guilherme Ferreira, sócio da Jive Investments, que tem R$ 17 bilhões em ativos. “O negócio de gestão de fundos precisa de escala.”

Novo plano de voo

Não faltam nomes conhecidos mudando planos diante da nova realidade. Reinaldo Le Grazie, ex-diretor de política monetária do Banco Central, juntou-se à Panamby em 2019 para lançar um novo fundo multimercado. Ele procurava levantar até R$ 5 bilhões, atraiu gestores seniores e montou uma equipe de 30 pessoas.

Quatro anos depois, a Panamby administra cerca de R$ 340 milhões — R$ 40 milhões no multimercado — e reduziu seu número de funcionários pela metade após criar um fundo de crédito e fazer parceria com uma empresa local para fornecer serviços de carteira administrada para pessoas físicas.

“A indústria de gestão de fundos no Brasil estava em expansão quando eu era diretor do Banco Central e cortava as taxas de juros”, disse Le Grazie, acrescentando que eventualmente “percebemos que os bons tempos ficaram definitivamente para trás”.

As consequências podem ser vistas em todos os lugares. A Grimper Capital, de Sylvio Castro, criada depois de ele ter deixado o cargo de diretor de investimentos da unidade de private banking do Credit Suisse no Brasil, cresceu rapidamente.

Funcionou por cerca de dois anos antes de encerrar as atividades em meio ao mau-humor do mercado e a uma competição mais acirrada por clientes e talentos. Castro e equipe receberam convite e foram para o Julius Baer.

A Macro Capital — também criada por veteranos do Credit Suisse — e a Âmago Gestão de Investimentos são outros exemplos de empresas lançadas desde 2016 que já fecharam.

Muitos outros, como a BlueLine Asset Management, iniciaram um processo de consolidação. A BlueLine absorveu a Greenbay Investimentos, enquanto a AZ Quest adquiriu a rival MZK Investimentos. A Jive se fundiu com a Mauá Capital, especializada em fundos imobiliários, e busca outras oportunidades de aquisição, que, segundo Ferreira, “crescem a cada dia”.

Até os fundos mais conhecidos estão sofrendo. A Verde Asset Management, de Luis Stuhlberger, cujo fundo principal sobe mais de 23.000% desde a sua criação em 1997, viu os ativos sob gestão caírem para metade em cerca de dois anos, para R$ 27 bilhões.

A Constellation, de Florian Bartunek, que conta com uma participação do bilionário brasileiro Jorge Paulo Lemann e de Stephen Mandel, do Lone Pine, administra cerca de R$ 7,5 bilhões, metade dos R$ 15 bilhões que chegou a gerir. A gestora está se mudando para um escritório com aluguel mais barato.

O Banco Central começou novamente a flexibilizar a política monetária, mas, com a Selic a 12,75% ao ano, apenas um pouco abaixo do nível de 2016, o benchmark que os fundos buscam superar permanece elevado. Nos últimos 12 meses, 71% dos integrantes de uma cesta de multimercados locais monitorados pela Bloomberg perderam para a taxa de referência do CDI.

“No Brasil, os gestores de ativos menores enfrentam mais desafios, especialmente em um ciclo ruim de mercado”, disse Bartunek, diretor de investimentos e cofundador da Constellation. “Mas o ciclo está começando a melhorar e a maioria, aqueles que conseguem apresentar bons retornos, sobreviverá.”

Dados da Anbima, a associação das entidades do mercado de capitais, mostram que as saídas estão desacelerando, com os multimercados registrando até mesmo uma entrada líquida mensal no mês passado.

Mas a melhora “não deve acontecer de forma equilibrada, e as gestoras mais reconhecidas e consolidadas devem levantar dinheiro antes de outros players menos estruturados”, disse Gustavo Pires, sócio da XP. Ele espera que o cenário continue desafiador para as casas menores nos próximos 12 meses.

“O processo de consolidação na indústria de fundos está apenas começando”, disse ele.

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