Tradição de mudança: como Fábio Donato reinventa receitas na centenária Castelões

Fundada nos anos 1920, a cantina do Brás, em São Paulo, ajudou a moldar o que se convencionou chamar de pizza paulistana, mas continua a pesquisar para criar massas e recheios melhores e mais leves, diz o empresário em entrevista à Bloomberg Línea

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Bloomberg Línea — No salão de azulejos amarelos e toalhas quadriculadas no Brás, na região central de São Paulo, não é raro que clientes que frequentam a cantina centenária há muitos anos celebrem a nostalgia lembrando antigos sabores: “O gosto é igual ao de 30 anos atrás”, dizem com frequência.

Fábio Donato, representante da terceira geração da família à frente da Castelões Cantina e Pizzaria, sorri e pensa para si mesmo: “O sabor hoje não tem nada a ver com o do passado. Aqui tudo se transforma sempre”, disse em entrevista à Bloomberg Línea.

O gosto que desperta memórias é, segundo ele, resultado de uma busca incessante por ingredientes e métodos novos e melhores.

A entrevista com Donato faz parte da série “Mesa de Negócios” da Bloomberg Línea, que conta histórias em que a gastronomia e o empreendedorismo se entrelaçam de forma destacada no mundo dos negócios no Brasil.

Fundada nos anos 1920, a Castelões ajudou a moldar o que se convencionou chamar de pizza paulistana, um estilo nascido da falta de ingredientes italianos e das soluções locais que criaram uma nova identidade gastronômica - que muitos defendem ser superior em qualidade mesmo à original na Itália.

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A casa nasceu de confraternizações de amigos ligados ao futebol do bairro e cresceu em torno de um forno que ainda funciona por trás do salão principal da casa.

Desde então, atravessou gerações como ponto de encontro da cidade. E, segundo Donato, chegou aos 101 anos justamente porque nunca se contentou em repetir fórmulas.

“Não basta manter uma tradição. Você não pode fugir do que é, mas também não dá para parar no tempo e fazer a mesma coisa sempre. Mesmo que a maioria das pessoas sequer perceba, elas sempre estão comendo algo melhor”, explicou.

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Segundo ele, a tradição de buscar mudanças não vem das novas gerações e está presente desde que seu avô inaugurou a casa.

Donato começou a trabalhar na pizzaria da família aos 15 anos, em 1988, e assumiu formalmente o negócio em 2014. Desde então, transformou a cozinha da Castelões em “laboratório”, a tal ponto que fala de pizza como quem trata de bioquímica.

Testa farinhas, cria fermentações, analisa a composição da água e mede seu pH, ajusta o tipo de sal, troca sais minerais e altera hidratações da massa, sempre em busca de leveza e equilíbrio.

Pizzas leves e funcionais

A cada nova fornada, tenta aproximar-se do que seria uma pizza ideal, que seja fiel à origem e, ao mesmo tempo, atualizada com o tempo.

“A minha intenção é deixar a pizza muito próxima do que eu sempre tive, mas sempre com um ligeiro benefício, que torne ela sempre mais interessante.”

Durante a visita da Bloomberg Línea, profissionais da Castelões testavam massas e coberturas, incluindo uma mais leve e refrescante apenas com tomates maduros picados e manjericão.

Esse trabalho também tem como objetivo preparar uma pizza “funcional”, dado que Donato passou a trabalhar a ideia de adicionar fibras e sais minerais que reduzam o impacto glicêmico e tornem a digestão mais leve.

O objetivo é que isso também ajude os negócios da casa: uma pizza mais leve significa um cliente que volta, e que come mais. “Se o cliente se sente bem e come mais, é melhor para o negócio. A leveza é parte da tradição. Meu avô e meu pai sempre diziam que o importante é fazer melhor.”

Gestão complexa

Apesar da aura histórica, o negócio é gerido com o rigor de uma pequena empresa de alta complexidade.

A Castelões vende cerca de 1.500 pizzas por mês, com ticket médio de R$ 200, o que mantém a casa estável, mas distante de qualquer ideia de grande escala.

Donato evita falar em faturamento e lucro, mas admite que a rentabilidade depende de um controle diário de custos e de uma operação enxuta. “Hoje tudo ficou mais caro: farinha, queijo, energia, gás. Se não tiver disciplina, o resultado some”, disse.

O modelo familiar e artesanal também limita o crescimento. Ele diz que já foi chamado para discutir a ideia de criar filiais e franquias, mas que prefere preservar a regularidade do produto a expandir volume ou abrir novas unidades. “Não é um negócio para enriquecer, é para continuar existindo”, afirmou.

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A margem, segundo ele, vem da eficiência: menos desperdício, compra direta de insumos e processos otimizados. “Eu tenho que saber onde cada real vai. Se a gente começa a crescer demais, perde controle.”

Com 18 sabores de pizza fixos no cardápio (dos clássicos castelões (com calabresa feita na casa), margherita e napolitana à tradicional pizza de alici), o foco é inovar em cima de regularidade e reputação, não em modismo.

“Nosso cliente não vem atrás de novidade, vem atrás de constância”, resumiu. É essa constância que sustenta, há mais de um século, o equilíbrio econômico de uma casa que sobrevive pela precisão do seu forno e pela sobriedade da sua gestão.

Além dos custos operacionais, atualmente o principal entrave é a escassez de mão de obra, segundo o empresário. “Eu não consigo atender mais gente porque não tenho quem atenda. Falta pessoal em todas as áreas”, disse.

Uma evidência disso é que não é raro que o próprio Donato atenda a ligações de clientes que tentam reservar mesas ou fazer pedidos para pizza pelo delivery.

Desde a pandemia, conta, ele passou a atuar em todas as frentes da casa, desde a limpeza, passando pelo serviço, pelo preparo de ingredientes e pizzas e pela gestão do negócio.

Ainda que reconheça dificuldades, vê com otimismo a lenta transformação do Brás.

As antigas fábricas do bairro fecharam aos poucos e criaram um ambiente que parece abandonado à noite, o que dificulta a atração de clientes.

Mas Donato diz que há renovação à vista com novos condomínios residenciais, o que começa a trazer novos moradores. E, com eles, novos frequentadores. Essa revitalização dá esperança de uma renovação do público da casa.

Donato se define como um idealista e reconhece que o futuro é incerto. Sem herdeiros diretos para assumir a próxima geração, diz que prefere não pensar em sucessão. Ainda assim, fala em novos projetos e formatos mais acessíveis, com foco em qualidade e propósito.

“Na minha idade, eu já tenho mais passado do que futuro. Mas quero fazer um negócio que faça bem para os outros”, disse. “Enquanto eu estiver vivo, não vou abrir mão da marca. Mas posso conversar sobre sociedade.”

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