Bloomberg Línea — Marcar um encontro com o restaurateur Juscelino Pereira em uma das cinco casas comandadas por ele pode exigir alguma paciência.
Sempre que entra em um dos seus Piselli, é normal que ele pare em quase todas as mesas no caminho para cumprimentar clientes, conversar um pouco com a nata da política e dos negócios do país e cultivar relações que vem construindo na cena gastronômica de São Paulo há mais de três décadas.
Essa habilidade social, de relacionamentos, não se dá por acaso: foi um dos pontos que ajudaram Pereira a consolidar a marca e sua visão empresarial, que em muitos sentidos antecedem a própria comida, segundo ele próprio admite.
“Eu sempre fiz bem essa política, de ganhar a confiança e o respeito das pessoas”, disse Pereira à Bloomberg Línea durante um jantar no Piselli Sud, filial no Shopping Iguatemi que completa dez anos em 2025.
A entrevista com Juscelino Pereira abre a nova série da Bloomberg Línea “Mesa de Negócios”, que contará nas próximas semanas histórias em que a gastronomia e o empreendedorismo se entrelaçaram de forma destacada.
Leia mais: O melhor restaurante do mundo? É o Maido, em Lima; o Lasai, no Rio, ficou em 28º
Foi assim que ele construiu uma marca hoje com cinco operações entre São Paulo, Campinas e Brasília. No total, ele atende a cerca de 20.000 clientes por mês, em um trabalho sustentado por disciplina de gestão, compras diretas e a citada política de relacionamentos com clientes como um pilar pouco comum nos manuais de negócios do setor.
Mais do que os pratos, Pereira defende que o segredo do Piselli é o que costuma chamar de “atmosfera”. Para ele, o conceito envolve energia, ambiente, hospitalidade e o próprio papel dele de interagir com clientes.
“O restaurante não é só comida. É esse conjunto todo. O meu prazer é sorrir para o cliente, contar uma história, fazer as pessoas felizes”, disse.
Segundo ele, isso ajudou a consolidar o almoço no Piselli como um ponto de encontro de executivos e políticos. “Aqui o almoço é só negócio”, disse. A fidelidade abrange um público que vai de empresários e autoridades a personalidades.
Leia mais: El Bulli vs Noma: como prêmios e rivalidades mobilizam a alta gastronomia global
Visão para o negócio
Apesar do olhar cuidadoso para a política de relacionamentos, Pereira não perde o foco do restaurante como um negócio.
Segundo ele, isso é fundamental para garantir o serviço a um público que chega a 4.000 pessoas por mês somente na casa original, nos Jardins, com alguma oscilação e risco às contas nos meses de janeiro, fevereiro e julho.
Pereira tem os dados todos de cabeça na entrevista. O ticket médio na casa é de R$ 250, o que considera competitivo para São Paulo, embora em noites de trufa branca o gasto por pessoa possa ultrapassar R$ 2.000. “Hoje há muito restaurante com ticket médio de R$ 400. Para São Paulo, R$ 250 não é tanto”, disse.
A margem de referência do setor, segundo ele, é um Ebitda de aproximadamente 15% - ele não abre o do grupo. E cerca de 60% do seu faturamento vem da cozinha, com 25% de vinhos e 15% do bar.
Para sustentar margem em um negócio sensível a custos, recorreu a compras diretas de insumos e parcerias com produtores. “Se eu comprar tudo de distribuidor, não fecha a conta”, afirmou.
Isso garante a sustentabilidade do grupo que emprega cerca de 200 pessoas, entre salão e cozinha, e adota um modelo em que líderes de área participam do resultado mensal como forma de incentivo.
Leia também: Guia Michelin: restaurantes premiados chegam a cobrar R$ 1.250 por menu degustação
O crescimento exigiu transformar habilidade pessoal em processo. Pereira replicou treinos de hospitalidade, montou equipe com líderes formados “em casa” e desenhou incentivos atrelados a resultados.
“Tem pessoas que estão comigo há 20 anos”, disse.
Na atual estrutura, cada unidade tem um gerente próprio, coordenado por um gerente operacional. Acima, a gerente geral Joyce Oliveira é preparada para sucedê-lo no comando.
“Hoje o CEO sou eu, mas logo vai ser ela”, disse. Essa transição sinaliza preocupação com legado e continuidade, e com uma vida mais tranquila depois de décadas no setor.
“Restaurante dá tanto trabalho para construir a marca que, se não tiver legado, é um desperdício”, disse.

Inspiração familiar
Segundo Pereira, a origem desse método de gestão e política remete à sua família no interior paulista.
Questionado sobre como enxerga o negócio da gastronomia, ele começa a contar a história do seu avô agricultor e do pai comerciante em Joanópolis, interior de São Paulo, e como aprendeu cedo a ligar números, crédito e reputação.
“Eu cresci ouvindo o meu avô falar de negócios”, disse. “Ele prezava o nome, atuava como mediador da comunidade e transmitia que credibilidade abre portas”, contou.
Adolescente, Juscelino observava por que padarias prosperavam ou quebravam. “Eu fazia pesquisa de mercado sem saber que existia essa palavra”, contou.
Ainda na infância, tentou cultivar ervilhas, sem sucesso. O fracasso virou inspiração e, anos depois, seria a base do nome do restaurante que fundou: Piselli, que significa “ervilhas” em italiano.
Leia também: De D.O.M. a Lasai: os 5 melhores restaurantes do Brasil, segundo o Guia Michelin
A formação profissional veio na prática, desde os 17 anos, quando se mudou para a capital paulista e começou uma escalada por restaurantes cada vez mais exigentes até chegar às casas mais prestigiadas de São Paulo, o Fasano e o Gero, de Fabrizio e Rogério ‘Gero’ Fasano.
Ali, aprendeu sobre vinhos, atendimento e relacionamento com clientes. Para integrar equipes de ponta, aceitou até se rebaixar de função, trocando o cargo de maître pelo de auxiliar de sommelier. “Minha visão era de crescimento, investi para crescer”, disse.
Segundo ele, foi só em 2004, aos 30 anos, que se inspirou no conselho do avô de que todo homem deveria ter seu próprio negócio até os 35 e decidiu empreender.
Mesmo sem ter formação formal em administração, estruturou um business plan de uma página e atraiu investidores entre clientes e amigos.
A avaliação da futura casa ficou em R$ 800 mil e a venda de quatro cotas de 10% a R$ 80 mil viabilizou a reforma e o fluxo de caixa inicial.
A aposta foi sustentada pela rede que havia cultivado por anos, com agenda de clientes, anotações de preferências e ligações pré-abertura. O efeito foi imediato. “O que segurou o Piselli no começo foi o meu serviço. Porque a minha comida derrapou um pouco na estreia”, disse.
O restaurante abriu as portas em julho de 2004, nos Jardins. E começou a dar lucro rapidamente, o que permitiu proporcionar retorno aos investidores que acreditaram no projeto. Desde então, o endereço se tornou referência em gastronomia italiana na capital paulista.
Cardápio e identidade italiana
O desenvolvimento do cardápio foi guiado por intuição e experiência pessoal, disse Pereira.
“No nosso caso, a pesquisa é muito ‘olhômetro’, sentimento, conversas”, disse.
A ligação com a Itália vai além do cardápio. Pereira viaja pelo menos uma vez ao ano ao país para visitar pequenos produtores de vinhos, especiarias e trufas.
Em setembro, acompanha a colheita de trufas para trazer a iguaria fresca aos cardápios do Piselli. “O consumidor quer vir aqui e se sentir como se estivesse na Itália”, disse.
Ao mesmo tempo, defende a necessidade de adaptação. “O cliente brasileiro é democrático. Quer experimentar, mas também quer carne com massa. O segredo é negociar sem ‘detonar’ a cozinha italiana.”

O restaurateur também ajudou a criar festivais de gastronomia italiana no Brasil, atraindo chefs estrangeiros e promovendo regiões do país europeu. Também é coautor do livro Itália para Comer e Beber Bem, um guia de restaurantes italianos para brasileiros.
Antes da inauguração do primeiro Piselli, recorreu a essa experiência e aos cadernos de viagem com anotações de pratos italianos degustados em diferentes regiões.
Recriou receitas tradicionais, como o carbonara, insistindo em usar pecorino e pancetta em vez de adaptações comuns em São Paulo na época.
Leia mais: Como jantares corporativos fizeram um restaurante premiado de NY deixar de ser vegano
Também inovou com criações próprias, como a polenta folhada, surgida a partir de um sonho. “Nunca comi isso na Itália, nunca vi. E aí começamos a testar até chegar à receita.”
O desafio constante foi equilibrar fidelidade à tradição italiana e adaptação ao gosto brasileiro.
“O cliente sempre quer fazer o que ele quer”, disse. Para atender a pedidos de carne com massa, por exemplo, propôs combinações que respeitassem a lógica culinária, evitando misturas que arruinassem o prato.
A estratégia, segundo ele, é treinar a equipe para negociar com rapidez. “Se você não tiver uma sugestão rápida, o cliente mistura tudo.”
Expansão
Com unidades nos Jardins, no Iguatemi, no centro histórico de São Paulo, em Brasília e em Campinas, Pereira divide a agenda em visitas periódicas.
Vai a Brasília uma vez por mês, onde acompanha operações durante o dia e participa de confrarias de vinho à noite.
A Campinas, viaja semanalmente, mantendo proximidade com a equipe. “A gestão hoje é muito online, mas a presença ainda é fundamental”, disse.
Esse equilíbrio entre digital e presencial se reflete também no relacionamento com clientes.
Leia mais: Como o chef Thiago Maeda criou um polo gastronômico em um bairro no centro de SP
Em Brasília, por exemplo, criou confrarias para fidelizar frequentadores locais. “É agradável. Durante o dia vejo resultados do grupo, mas à noite temos os encontros, as confrarias. É leve.”
Além das casas principais, também é sócio dos restaurantes Timo Mio e El Carbón, na Vila Olímpia, em São Paulo, e criou o Mercato Piselli, plataforma digital com mais de 500 produtos ligados à enogastronomia. Essas iniciativas ampliam a diversificação do grupo e reforçam sua dimensão empresarial.
A experiência acumulada o levou a identificar falhas recorrentes em novos negócios.
Ele critica projetos excessivamente nichados. “Não dá para abrir um restaurante só de risoto, por exemplo. Não estamos em Paris”, disse.
Outro alvo são o que chama de modismos gastronômicos que, segundo ele, comprometem a experiência. Também aponta a ausência do dono como um fator de fracasso. “O segredo é a presença.”
A próxima fase tenta transformar reputação em plataforma sem perder o que define sua trajetória: a política da mesa, em que reputação, experiência e conta paga se encontram.
“Para fazer sucesso neste segmento é preciso ter empreendedorismo na veia, ter paixão, pesquisar e ser curioso. Trabalhar com prazer é o segredo para ser bem-sucedido e atrair pessoas do bem”, disse.
Leia também
Fasano aposta até em hortifruti em novo projeto que expande negócios da marca
RS Solutions compra Colibri, software usado por 15 mil restaurantes, dizem fontes
Takeat, de gestão de restaurantes, capta R$ 2 mi e quer triplicar a base de clientes