Exclusivo: Argentina atrasa pagamento ao Brasil por produção de notas de pesos

Atrasos ocorrem desde outubro passado e somam um valor equivalente a cerca de R$ 50 milhões, de acordo com pessoas ouvidas pela Bloomberg Línea

Luiz Inacio Lula da Silva com Alberto Fernández na cerimônia de posse do brasileiro como presidente em 1º de janeiro de 2023 (Maira Erlich/Bloomberg)
03 de Março, 2023 | 04:50 AM

Bloomberg Línea — O governo da Argentina tem atrasado desde o fim do ano passado os pagamentos à Casa da Moeda do Brasil (CMB) e a fornecedores pela produção de notas de pesos argentinos que foram fabricadas no Brasil, segundo três pessoas com conhecimento do assunto ouvidas pela Bloomberg Línea. Após questionamento da reportagem, a Casa da Moeda da Argentina disse que tem uma situação financeira delicada e que renegocia dívidas de 2022 e pagamentos previstos para 2023.

De acordo com uma dessas pessoas, que prefere não ser identificada porque as discussões são privadas, a falta de pagamento ocorre desde outubro e soma um valor de cerca de US$ 10 milhões (aproximadamente R$ 52 milhões na cotação atual do dólar à vista).

Dessa quantia, cerca de US$ 5 milhões seriam devidos à Casa da Moeda do Brasil e outros US$ 5 milhões à empresa Blendpaper, que também produz as notas e fornece papel-moeda para a Casa da Moeda da Argentina.

Em resposta à Bloomberg Línea, a Casa da Moeda da Argentina (CMA) não comentou diretamente os atrasos com o Brasil, mas disse que a nova gestão do órgão trabalha em uma “revisão e análise” da situação econômico-financeira. Afirmou também que tem um déficit operacional anual de mais de 11,5 bilhões de pesos (aproximadamente US$ 58 milhões de acordo com a cotação oficial) e uma dívida com fornecedores estrangeiros de mais de US$ 150 milhões, que está sendo auditada.

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Desde o dia 25 de janeiro, a Casa da Moeda da Argentina tem um novo chefe, Ángel Mario Elettore, nomeado pelo ministro da Economia, Sergio Massa.

“Como passo fundamental para essa nova etapa, renegociamos com eles as dívidas de 2022 e os adiantamentos de 2023, parcelando tudo até junho”, afirmou a CMA (leia a reposta na íntegra no final da reportagem).

A Casa da Moeda do Brasil disse que as informações contratuais são sigilosas e que o acordo com a Casa da Moeda da Argentina se enquadra nas previsões legais que impedem a divulgação de dados sobre atividades empresariais. A empresa Blendpaper informou que não irá se pronunciar.

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O Ministério da Fazenda, a quem a Casa da Moeda do Brasil está subordinada, disse que o vínculo entre a CMB e a Casa da Moeda da Argentina é uma relação comercial e, por isso, não quis se posicionar. “O Ministério da Fazenda, como Ministério supervisor, não se envolve nessa relação”, afirmou.

Contrato com a Casa do Moeda prevê pagamento de US$ 35,3 milhões pela produção de 600 milhões de notas de 1.000 pesos (Sarah Pabst/Bloomberg)dfd

Uma das pessoas ouvidas pela Bloomberg Línea disse que os pagamentos eram realizados normalmente desde o início do contrato em 2020 até outubro de 2022, quando passaram a ocorrer atrasos e a quantia devida se acumulou. Outra pessoa ouvida pela reportagem classificou a situação como algo “normal” em qualquer relação comercial.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em outubro e que tomou posse em janeiro, é próximo do líder da Argentina, Alberto Fernández. Em janeiro, Lula visitou o país vizinho em sua primeira viagem internacional como presidente, onde se encontrou com Fernández e manifestou apoio a projetos de interesse da Argentina, como um possível financiamento do BNDES à construção de um trecho de um gasoduto para ligar a região produtora conhecida como Vaca Muerta.

O governo Lula também indicou apoio a um plano para a criação de uma moeda comum entre os dois países que pudesse ser usada para trocas comerciais – o que seria uma tentativa de reduzir a dependência do dólar e evitar a saída de moeda estrangeira da Argentina.

Acordo para a produção de cédulas

Em 2020, a Casa da Moeda Brasileira assinou contrato com a Argentina para a produção de 400 milhões de cédulas de 1.000 pesos. No fim de 2021, o contrato foi acrescido de um novo pedido de 600 milhões de cédulas, também de 1.000 pesos.

A Casa da Moeda do Brasil, por sua vez, contratou a Blendpaper (antiga Fedrigoni Brasil Papéis) para a produção das cédulas. O contrato mais recente da Casa da Moeda do Brasil com a empresa brasileira prevê o pagamento de US$ 35,3 milhões pelo serviço (aproximadamente R$ 184,06 milhões pela cotação atual do dólar), sendo US$ 19 milhões à CMB e US$ 16,28 milhões à Blendpaper.

Segundo o documento, a entrega das cédulas à Argentina seria feita de forma escalonada em lotes enviados entre fevereiro e outubro do ano passado. Uma das fontes afirmou que há expectativa de que o contrato seja renovado mais uma vez, mas a falta de pagamento sobre o parte do serviço tem sido um entrave nas negociações.

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Demonstrações financeiras públicas da Casa da Moeda do Brasil mostram um aumento dos valores das contas a receber por parte da Argentina ao longo de 2022 até o terceiro trimestre (último dado disponível).

Os documentos indicam que o valor a receber da Casa da Moeda da Argentina teve um acréscimo de R$ 4,2 milhões no primeiro trimestre de 2022, encerrado em março. No segundo trimestre, o valor acrescido foi de R$ 18,9 milhões. E no terceiro trimestre, a quantia subiu em R$ 36,3 milhões.

As demonstrações financeiras não informam quanto desse valor de R$ 36,3 milhões estava em atraso. Até setembro, a estatal indicava ter R$ 11,5 milhões em perdas estimadas de liquidação duvidosa de “clientes do exterior” (sem informar de qual cliente), isto é, o saldo de contas inadimplentes há mais de 180 dias que a empresa considera como uma perda provável.

A Casa da Moeda do Brasil não respondeu aos pedidos de esclarecimento da Bloomberg Línea sobre esses valores.

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As demonstrações financeiras do quarto trimestre de 2022 ainda não foram publicadas pela empresa que, no Brasil, é responsável pela produção de moedas, dinheiro em espécie, passaporte, selos, medalhas, entre outros serviços.

Falta de dólares e hiperinflação

A Argentina enfrenta uma crise inflacionária, com uma alta de preços que atingiu 98,8% em 12 meses em janeiro. Além disso, um problema crônico de escassez de moeda estrangeira faz com que o governo do país tome medidas para desestimular a saída de dólares.

Quando o primeiro contrato da Casa da Moeda com a Argentina foi assinado em 2020, a cotação oficial do dólar era de 74,57 pesos. No último dia 27 de fevereiro, o valor estava em 196,61 pesos, sendo que a cotação paralela (dólar blue) chegava a 373 pesos por dólar americano.

A Casa da Moeda do Brasil, fundada em 1694, foi uma das empresas estatais incluídas no Programa Nacional de Desestatização (PND) durante o governo do presidente Jair Bolsonaro. No fim de 2021, no entanto, o governo decidiu retirar a empresa da lista após uma revisão.

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A empresa registrou um lucro líquido de R$ 30,2 milhões em 2021 em parte em razão das receitas com o negócio com a Argentina. Antes disso, a estatal teve prejuízos anuais consecutivos desde 2016.

O que diz a Casa da Moeda da Argentina

“A partir da nova gestão da Casa de Moneda Argentina [CMA], começaram as revisões e análises para conhecer a situação econômico-financeira da instituição. A realidade herdada do ex-presidente [da Casa da Moeda] Rodolfo Gabrielli é preocupante.

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Assumimos com um déficit operacional anual superior a 11,5 bilhões de pesos e com uma dívida, que está sendo auditada, com fornecedores estrangeiros de mais de US$ 150 milhões.

Por isso, como passo fundamental para essa nova etapa, renegociamos com eles as dívidas de 2022 e os adiantamentos de 2023, parcelando tudo até junho, inclusive.

Da mesma forma, 13 diretorias foram reduzidas e inúmeras despesas que levaram a esta situação ruinosa na CMA foram eliminadas.

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Gestão, ordem e transparência são os pilares com os quais o ministro da Economia, Sergio Massa, nos confiou para trabalhar nesta mudança de governo e o fazemos desde o primeiro dia.”

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Filipe Serrano

É editor da Bloomberg Línea Brasil e jornalista especializado na cobertura de macroeconomia, negócios, internacional e tecnologia. Foi editor de economia no jornal O Estado de S. Paulo, e editor na Exame e na revista INFO, da Editora Abril. Tem pós-graduação em Relações Internacionais pela FGV-SP, e graduação em Jornalismo pela PUC-SP.