Bloomberg — O prefeito de uma cidadezinha movimentada na fronteira da República Dominicana com o Haiti, Santiago Riverón, gosta de chapéus de cowboy brancos e jeans azuis. Em seu escritório há uma espingarda Winchester pendurada na parede.
A arma fica exatamente em cima da bandeira da República Dominicana e representa, segundo ele, o mesma que o muro que está sendo construído a poucos quilômetros dali: “nossa soberania”. Uma vez concluída, a obra, com impressionantes 4 metros de altura de concreto e aço, se estenderá por cerca de 164 quilômetros (102 milhas) e cobrirá todas as partes da fronteira, exceto as mais intransitáveis. Existe apenas um muro fronteiriço mais extenso no continente: o que separa os Estados Unidos do México.
O prefeito de 50 anos, corpulento e grisalho, descreve sua cidade, Dajabón, como o centro do debate migratório que se abateu sobre comunidades em todo o mundo, na Polônia, Hungria, Chile e Estados Unidos, na esteira da pandemia de covid-19 que levou milhões de seres humanos à pobreza nos países emergentes. Riverón está ciente de que sua pequena cidade não existiria sem o comércio transfronteiriço com a população haitiana e ainda assim, em um vocabulário que lembra Donald Trump e Viktor Orban, ele afirma que a situação está atualmente fora de controle.
As pessoas que fogem do Haiti, o país mais pobre de todo o continente americano, afligido pelos mais altos níveis de insegurança alimentar do mundo, um governo praticamente falido e um terreno árido devido à mudança climática, estão, a seu ver, sobrecarregando os hospitais da região, enchendo as ruas de lixo e baixando os salários dos dominicanos.
“Simplesmente há haitianos demais aqui”, disse ele recentemente. “Não quero usar o termo ‘invasão’, mas há partes desta cidade que se tornaram totalmente superlotadas”.
Dolorosa necessidade
Na capital, Santo Domingo, funcionários do governo descrevem diplomaticamente a barreira como uma dolorosa necessidade de isolar uma das economias mais bem-sucedidas da região de um dos problemas mais difíceis do hemisfério. O Haiti vem sendo abalado pela violência generalizada das gangues, sequestros e uma instabilidade política que só piorou desde o assassinato do presidente Jovenel Moise em 2021.
O muro é também, de certa forma, uma reprimenda para uma comunidade internacional que gastou bilhões no Haiti, mas que não conseguiu ou não quis aliviar a crescente crise humanitária.
A violência do Haiti tornou-se “uma guerra civil de baixa intensidade” que ameaça toda a região, disse o presidente da República Dominicana, Luis Abinader, em discurso à Organização dos Estados Americanos (OEA) este mês. “Estamos enfrentando a possibilidade real de que bandos criminosos que operam no Haiti tentarão atacar nossa integridade territorial, atacar a segurança dos cidadãos de nosso país”.
O muro é altamente controverso em ambos os lados da Ilha de São Domingos, onde a animosidade e a desconfiança estão arraigadas. Parte do ressentimento está ancorado em ressentimentos nacionalistas ligados à invasão do Haiti em 1822 e aos 22 anos de ocupação de seu vizinho; ao longo da fronteira, ainda persistem lembranças do massacre de 1937 que matou cerca de 9 mil a 20 mil haitianos sob as ordens do ditador dominicano Rafael Trujillo. Outra parte está enraizada no racismo e na xenofobia dirigida contra a primeira república negra do hemisfério ocidental. O próprio Riverón traz em seu discurso uma linguagem do tipo “eles têm seu modo de vida e nós temos o nosso”, o que indica uma inclinação nativista.
‘Consequências inimagináveis’
Nas últimas semanas, a capital dominicana teve marchas exigindo a expulsão de haitianos, a quem os manifestantes culpam por cometer crimes e roubar empregos, e os jornais estão cheios de editoriais expressando sentimentos muito semelhantes aos vigilantes da imigração americana que apoiaram os esforços do ex-presidente Donald Trump para selar a fronteira dos EUA com o México.
“Estamos à beira de uma explosão migratória que terá consequências catastróficas e inimagináveis para o continente americano e, mais diretamente, para a República Dominicana”, escreveu o Listín Diario, um dos principais jornais, em 24 de agosto.
Não está claro quantos haitianos existem na República Dominicana. Um censo de 2017 constatou a presença de cerca de meio milhão de haitianos, embora as autoridades digam que o número real poderia ser o dobro disso. E os trabalhadores haitianos, tanto com documentos oficiais como sem documentos, são a espinha dorsal dos setores da agricultura e da construção civil da República Dominicana. Além disso, dezenas de milhares de haitianos fazem viagens diárias em busca de trabalho e suprimentos.
Os principais conselheiros de Abinader não negam que existem correntes racistas de longa data na sociedade dominicana que pressionam por uma posição de linha dura. Isso pode dificultar a separação do nativismo e da necessidade legítima de uma fronteira ordenada.
“Há um profundo racismo nesta sociedade que tem sido cultivado desde a era Trujillo, e há um profundo sentimento anti-haitianos que perpetua nosso próprio sistema educacional”, disse Pável Isa Contreras, o ministro da economia do país. “É contra os haitianos, porque são considerados negros e pobres”.
Apesar de compartilharem a Ilha de São Domingos, os dois países muitas vezes parecem mundos separados.
A República Dominicana de língua espanhola teve crescimento econômico de 12% no ano passado e deve ter uma expansão de 5% este ano, uma das taxas mais rápidas da região. O turismo está batendo recordes, com um aumento de entradas de turistas provenientes dos EUA. As exportações e o investimento estrangeiro direto estão próximos dos recordes.
Mas do outro lado da fronteira, o Haiti está em queda livre. O país de língua crioula, que conquistou sua independência da França em 1804, tem renda per capita no valor de 20% daquela da República Dominicana. O país está atolado na instabilidade política e nas garras de gangues assassinas poderosas. A eletricidade e a gasolina são muitas vezes esescassas. Quase metade dos 11 milhões de pessoas do Haiti passam fome regularmente, de acordo com o Programa Mundial de Alimentação.
Em meio ao derramamento de sangue e à pobreza, dezenas de milhares de haitianos estão deslocados internamente e o número de pessoas que fogem do país para a República Dominicana e outros lugares aumentou. As deportações no primeiro semestre de 2022 já ultrapassaram o total do ano passado.
É neste contexto que a República Dominicana recentemente outorgou um contrato de US$ 32 milhões ao Consórcio Cofah para construir os primeiras 53 quilômetros do muro.
‘Não é só um muro’
Contreras, o ministro da economia, defende que o muro é mais do que um muro para manter os haitianos longe.
“Isto não é só uma cerca, não é só um muro. É parte de um pacote de desenvolvimento mais amplo no qual a cerca simplesmente proporciona segurança”, disse ele em entrevista. “Nossa fronteira é muito porosa e insegura, e temos que lidar com isso”.
Segundo ele, o muro reduzirá a imigração ilegal, o tráfico de drogas, o tráfico de armas, o roubo e o contrabando de gado que assola ambos os países. A obra também canalizará a entrada de imigrantes, bens e serviços através de postos de controle legais. Além disso, o governo está reservando dinheiro para um porto, um centro turístico e projetos comerciais ao longo da fronteira que, segundo Contreras, gerarão empregos para ambos os países.
Embora existam dezenas de cercas de fronteira ao redor do mundo, elas são raras na América Latina, uma região que dependeu da imposição de barreiras naturais como rios, montanhas ou desertos para manter seus vizinhos sob controle. Foram propostas cercas para partes da fronteira entre Equador e Peru, e entre Guatemala e Belize, mas estas nunca se materializaram completamente. As diversas seções da cerca entre EUA e México totalizam mais de 1.126 quilômetros, a mais longa do hemisfério.
“Todo muro do mundo fracassou, do Muro de Berlim ao muro do presidente Donald Trump”, disse Joseph Cherubin, diretor da Mosctha , uma organização sem fins lucrativos que ajuda os trabalhadores haitianos na República Dominicana. O muro dominicano “é um desperdício de dinheiro destinado a satisfazer um grupo de nacionalistas”.
Ele argumenta que somente o desenvolvimento econômico abrangente no Haiti conterá a maré de migrantes.
Dayanna, uma haitiana de 25 anos que pediu para ser identificada apenas pelo seu primeiro nome, disse que o muro não a deixará de fora. Não importa a altura ou a solidez do muro, disse ela em entrevista em Dajabón. Quase todos os dias ela caminha 40 minutos de sua casa na aldeia de Juana Méndez (Ouanaminthe) para a República Dominicana em busca de trabalho, às vezes como assistente em uma loja de roupas, para comprar comida para sua filha de 7 anos. Ela frequentemente dá aos guardas de fronteira alguns dólares para que a deixem passar.
“Enquanto as pessoas tiverem fome, elas continuarão vindo”.
--Com a colaboração de Scott Squires.
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