Opinión - Bloomberg

O livre mercado não garante a liberdade

Nos EUA, discriminação racial gerava lucros antes de ser banida em 1964, e isso é relevante para a política atual de direitos civis

Mesmo em locais com leis antidiscriminação, o atendimento a negros não era garantido
Tempo de leitura: 3 minutos

Bloomberg Opinion — O livre mercado garante liberdade? É comum pensarmos que sim; que se uma empresa discriminar pessoas de determinada raça ou orientação sexual, ela será punida sob a forma de despesas mais elevadas e menos clientes e que seus concorrentes lucrarão ao atender à demanda da clientela.

LEIA +
Paciente negro tem mais descrição negativa de médico, aponta estudo

Infelizmente, a história dos negros americanos demonstra que o mercado nem sempre oferece a liberdade que promete – uma conclusão que tem implicações sobre a abordagem à discriminação hoje em dia.

Imagine viajar para uma grande cidade e descobrir que nenhum hotel permitirá que você se hospede, ou imagine precisar levar seu próprio papel higiênico em uma viagem de carro porque nenhum posto de gasolina permitirá o uso do banheiro.

Esse tipo de discriminação era a norma para os negros americanos antes da Lei de Direitos Civis de 1964 que proibiu a discriminação racial nas instalações públicas. A historiadora Mia Bay constatou que mais de 90% dos hotéis nos Estados Unidos recusaram o serviço aos negros nos anos 50. No início, os protestos dos negros focavam em como as empresas e os serviços públicos lhes negavam o acesso igualitário.

PUBLICIDADE

Nos últimos anos, os historiadores usaram métodos inovadores para entender melhor essa parte negligenciada do passado dos EUA. Um recurso valioso são os guias de viagem “Green Book” publicados de 1936 a 1966 por Victor Green e que listavam hotéis, empresas, restaurantes e outras empresas que atendiam clientes negros. Estes e outros guias foram usados por milhões de negros americanos que sabiam que estar no lugar errado poderia ter consequências terríveis.

Em novas pesquisas utilizando os Green Books, os economistas Lisa Cook, Maggie Jones, David Rosé e eu descobrimos que mesmo no nordeste do país, onde algumas leis antidiscriminação estavam em vigor nos anos 50, o atendimento a clientes negros não era garantido. Os milhares de estabelecimentos listados representavam um percentual relativamente pequeno de todas as empresas. Isso priorizava ainda mais saber onde eles ficavam.

LEIA +
Quase 50% dos profissionais negros querem deixar seus empregos no Reino Unido

Essa discriminação era uma afronta aos princípios do livre mercado dos EUA. Durante décadas, economistas conservadores sustentaram que a intervenção do governo não era necessária: o mercado faria com que os desprezíveis falissem – assim como puniria um empregador que rejeitasse trabalhadores negros, permitindo que os concorrentes pagassem menos pela mão-de-obra negra.

PUBLICIDADE

No entanto, sua lógica ignorava o que acontece quando os consumidores valorizam a discriminação. Esta era a preocupação das empresas durante os anos de protestos: se alguém decidisse atender clientes negros, seus clientes predominantemente brancos migrariam para a concorrência. No estado da Carolina do Norte, por exemplo, os empresários receavam que, se atendessem todas as raças igualmente, “perderiam um percentual suficiente de seu patrocínio” e entrariam no vermelho.

Em outras palavras, o mercado penalizava a justiça. Como resultado disso, muitas empresas (algumas, a contragosto) apoiaram as portarias de não discriminação, inclusive a Lei de Direitos Civis de 1964: esses mandatos forçaram as empresas e seus concorrentes a tratar todos os clientes igualmente, eliminando a capacidade de qualquer pessoa de lucrar com a discriminação racial. Isso ajuda a explicar por que a não discriminação é um artigo da cláusula sobre comércio dentro da Constituição. Também é relevante hoje em dia para decidir como proteger os direitos de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e da comunidade queer, que frequentemente enfrentam discriminação, mas não gozam das mesmas proteções federais.

A capacidade de acesso às empresas é uma parte fundamental da cidadania econômica. Quando o livre mercado não proporciona liberdade, é hora de o governo intervir. Se os legisladores aprenderem sobre a história, poderão aprender a colocar o mercado e a liberdade em seus lugares.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

PUBLICIDADE

Trevon Logan é professor de economia na Ohio State University e pesquisador colaborador do Departamento Nacional de Pesquisa Econômica dos Estados Unidos.

Veja mais em Bloomberg.com

Leia também

Investiu em fundo ESG? Regras mais rígidas podem causar surpresa a investidores