Bloomberg Línea — O remake da novela Vale Tudo chega ao seu capítulo final nesta sexta-feira (17), consolidando uma aposta da TV Globo que mistura entretenimento e crítica social, e se tornou uma vitrine comercial estimada em mais de R$ 200 milhões e um campo de testes da empresa para modelos de negócio multiplataforma.
Com sete meses da novela no ar, a emissora confirmou que a trama quebrou recordes históricos de faturamento e ações de conteúdo, com 87 ativações de marca negociadas para 23 empresas.
As marcas incluem Itaú, Vivo, BYD, Coca-Cola, Ambev, Uber, Dove, Omo, Comfort, Amazon, Paramount, Johnson Baby, Electrolux, Ram, Boticário, L’Oréal, Hapvida, Chilli Beans, Cimed, Abbott, Copagaz, Tintas Coral e iFood.
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Para o capítulo final, a Globo comercializou todos os intervalos comerciais disponíveis, reunindo 26 marcas nacionais nos breaks, número que ultrapassa 10 anunciantes regionais tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, informou a empresa à Bloomberg Linea.
Três marcas criaram ações integradas ao desfecho: Dove aparece no ritual de despedida de Odete Roitman; Zé Delivery transforma a tensão em celebração com o elenco; e OMO traz o assassino(a) se pronunciando pela primeira vez após o final, segundo a Globo.
Vale Tudo arrecadou ao menos R$ 200 milhões em publicidade, segundo estimativas do mercado divulgadas pela Folha de S. Paulo em julho, e se tornou a novela de maior faturamento para a emissora em sua história. A Globo não confirmou a cifra.
A novela recuperou o patamar de 27 a 29 pontos de Ibope na Grande São Paulo - maior mercado publicitário do país - contrastando com antecessora Mania de Você, que amargou baixa audiência apesar de sucesso de crítica e indicação a prêmio internacional (Emmy Internacional 2025).
A diferença materializou o dilema: obras autorais aclamadas não convertem necessariamente em audiência ampla que justifica investimento publicitário elevado.
O crescimento dos serviços de streaming no Brasil e mundo tem provocado uma fragmentação da audiência há anos, o que torna mais complexa a medição do público e impõe limites à transposição de linguagens entre plataformas. Além disso, a competição com produções globais de baixo custo e com criadores individuais na internet é um desafio adicional.
A produção funcionou como último grande teste do modelo tradicional antes de a emissora lançar em 2026 novelas com enquadramento vertical para redes sociais, protagonizadas por elenco nativo digital como a atriz e influenciadora Jade Picon, com 30 milhões de seguidores.
Personagens como canhões publicitários de inovação
A construção dramatúrgica funcionou como vitrine para segmento de consumo premium e produtos de inovação.
A família Roitman materializou consumo aspiracional - Odete em iate, Marco Aurélio em helicóptero para Paraty, Tiago praticando hipismo -, enquanto Galaxy Z Flip da Samsung nas mãos dos personagens contrastavam com comerciais do iPhone 17 Pro, da Apple, nos intervalos, disputando mercado de alta renda.
A personagem Solange Duprat (Alice Wegmann) tornou-se embaixadora involuntária de health gadgets: seu diabetes justificou demonstrações orgânicas do sensor FreeStyle Libre, da Abbott, transformando monitoramento contínuo de glicose em produto de desejo associado a profissionais urbanos da indústria criativa.
Jarbas (Leandro Firmino) pilotou carros elétricos BYD - crescimento de 62% nas vendas durante ações, repetindo fenômeno “carro da Carminha”.
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Nos intervalos, BYD Dolphin Mini (R$ 118.990) e Peugeot 208 Hybrid GT (R$ 126.990) posicionaram mobilidade sustentável na faixa dos R$ 130.000.
O iFood transformou restaurante fictício Paladar em estabelecimento real no aplicativo entre 11 e 17 de outubro - consumidores do Rio puderam pedir sanduíches da personagem Raquel (Taís Araújo) enquanto 99Food travava disputa nos intervalos. Itaú nos intervalos da novela versus Nubank materializou batalha entre bancos tradicionais e fintechs no Jornal Nacional.
A personagem Heleninha (Paolla Oliveira) protagonizou manifesto contra internação psiquiátrica compulsória: encontrou recuperação do alcoolismo através dos Alcoólicos Anônimos, valorizando rede de apoio comunitário horizontal em detrimento da institucionalização e medicalização da dependência.
Enquanto isso, a trama do remake de 2025 substituiu a crítica à corrupção estrutural presente na versão original de Vale Tudo (de 1988) por discussões sobre diversidade racial, relacionamentos homoafetivos, vícios digitais e dependências químicas sob perspectiva antimanicomial.
A mudança gerou críticas de “wokenismo vazio” e manifestações no Reclame Aqui classificando a produção como esvaziamento do potencial crítico original.
A versão original de 1988, que foi transmitida durante o período de redemocratização, hiperinflação e corrupção sistêmica, trazia por trás a pergunta: “vale a pena ser honesto no Brasil?”, o que materializava dilema ético de nação em transição.
Limites da linguagem digital
No remake, a direção adotou técnicas de influenciadores como Felca e Pablo Marçal - cortes rápidos, transições abruptas, ritmo acelerado - buscando capturar atenção fragmentada. A estratégia gerou críticas por erros de continuidade e confusões textuais: a linguagem de vídeos de 60 segundos mostrou-se inadequada para narrativas de 40 minutos diários.
Intervalos funcionaram como vitrine do Globoplay, estimulando migração para consumo mobile em horários convenientes. O impacto real permanece parcialmente invisível - métricas tradicionais do Ibope não capturam repique no streaming nem hábitos de gerações jovens que assistem capítulos completos ou cenas isoladas em horários que fogem ao padrão das 21h.
O “Pod Parceiro”, comandado por César (Cauã Reymond) e Olavo (Ricardo Teodoro) com participações de Bebeto e Popó, satirizou ecossistema de podcasters que monetizam através de apostas esportivas.
O arco coincidiu com movimento real: Felca, que viralizou ao denunciar exploração infantil nas redes, ganhou quadro no Fantástico para 2026 - seis episódios sobre saúde mental, simbolizando legitimação televisiva de fenômenos digitais.
O grupo da família Marinho lançou sementes da TV 3.0 (DTV+), regulamentada em agosto com início em junho de 2026, permitindo T-commerce - compra de produtos usando controle remoto. Planeja criar holding e operar modelo out of home após aquisição da Eletromidia, diversificando receitas em cenário de fragmentação.
Em 2026, a emissora enfrenta múltiplos desafios: jornalismo em ano eleitoral com troca de âncoras do Jornal Nacional, Copa do Mundo e setor sacudido por overdose de produções caseiras e profissionais dividindo tempo de tela.
A massificação de novelas turcas, coreanas e japonesas em plataformas de streaming fragmenta audiências, forçando competição simultânea com conteúdo global de baixo custo e criadores individuais que produzem narrativas verticais consumidas em minutos.
Vale Tudo de 2025 materializou todas essas tensões em único produto: entre televisão linear e consumo fragmentado, entre crítica social e entretenimento comercial, entre representatividade e dramaticidade.
O legado reside na consolidação de modelo que opera simultaneamente como crítica, produto e propaganda de si mesma - preparando terreno para transformações estruturais que a emissora precisará navegar.
A Globo tinha participação de 34% na audiência de televisão, que atinge 37% no horário nobre, segundo relatório da Fitch Ratings divulgado em dezembro. A agência de classificação de risco estima receitas na faixa de R$ 15,5 bilhões a R$ 17 bilhões em 2025, com dívida total de R$ 5,7 bilhões.
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