Brasil foi exemplo global na luta contra abusos de big techs, diz pesquisadora

Suspensão do X por Alexandre de Moraes no fim de 2024 mostrou os limites de publicações na plataforma em respeito às leis do país e reafirmou o dever das instituições democráticas, disse Marietje Schaake, de Stanford, à Bloomberg Línea

A pesquisadora de política internacional no Centro de Política Cibernética da Universidade Stanford Marietje Schaake
Por Daniel Buarque
04 de Maio, 2025 | 08:58 AM

Bloomberg Línea — O embate recente entre o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e Elon Musk sobre os limites de publicações na rede social X, que levou ao bloqueio do antigo Twitter no final do ano passado, serviu como um exemplo de como os Estados nacionais podem retomar sua soberania diante das big techs.

“O mundo inteiro estava observando o que estava acontecendo no Brasil”, segundo a ex-membro do Parlamento Europeu Marietje Schaake.

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“O caso mostrou que as instituições democráticas, quando determinadas, ainda podem exercer poder, mesmo sobre um bilionário da tecnologia”, disse a especialista em regulação de tecnologia e IA em entrevista à Bloomberg Línea.

Autora do livro The Tech Coup: How to Save Democracy from Silicon Valley, Schaake, natural da Holanda, soou o alarme de que as big techs têm assumido o poder e funções do Estado em várias partes do mundo.

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Segundo ela, a resposta do Brasil na disputa com Musk não foi apenas um caso jurídico doméstico mas um ponto de virada importante e global, em que o mundo observou as ações do sistema de justiça brasileiro com grande interesse porque representou um teste significativo do Estado de direito.

“O caso revelou duas coisas cruciais: em primeiro lugar, expôs o flagrante desrespeito de Elon Musk pelas estruturas legais e sua arrogância ao desafiá-las.”

“Em segundo lugar, demonstrou que, quando as autoridades democráticas estão dispostas a afirmar seu poder, elas podem ser muito eficazes. Apesar do desafio de Musk, o ministro acabou prevalecendo”, disse.

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Para ela, o episódio serve como um lembrete de que as autoridades democráticas talvez tenham sido muito hesitantes em afirmar seu poder sobre as corporações de tecnologia.

“Essa timidez pode decorrer de uma crença equivocada de que uma abordagem de não-intervenção à regulamentação fomentaria a democratização. Isso foi um mal-entendido fundamental”, disse.

Schaake explicou que o comportamento das big techs mudou drasticamente na última década.

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Elas cresceram exponencialmente, tornaram-se mais assertivas e aparentemente menos baseadas em princípios, priorizando o domínio do mercado em detrimento da conduta responsável, disse.

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“O caso brasileiro ofereceu uma forte contranarrativa, sublinhando que a defesa de princípios, soberania e democracia requer intervenção ativa e que os governos democráticos possuem a capacidade de agir.”

Pesquisadora de política internacional no Centro de Política Cibernética da Universidade Stanford, Schaake aponta que o caso brasileiro se torna ainda mais relevante diante das transformações da política americana sob Donald Trump.

O presidente americano levou Musk para dentro do governo, com o DOGE (o seu departamento de busca de eficiência de governo, que no fim teve impacto menor que o prometido), o que consolidou e acelerou essa força política global das big techs.

“O contraste é gritante. Enquanto o Judiciário do Brasil afirmou sua autoridade, os EUA estão na direção oposta — convidando líderes de tecnologia para o núcleo do governo, dando a eles acesso a dados, poder de decisão e legitimidade sem responsabilização”, disse a pesquisadora.

“Os EUA estão se afastando da democracia, do estado de direito e em direção a uma autocracia tecnológica politizada. É profundamente preocupante.”

“No Brasil, houve uma defesa clara e baseada em princípios da legitimidade institucional. Nos EUA, vemos uma celebração da desregulamentação e uma transferência de funções governamentais essenciais para empresas privadas — sem nenhuma salvaguarda.”

Dois pesos, duas medidas

Em seu livro, Schaake enfatiza que a tecnologia não é neutra e traça uma analogia com argumentos com a regulamentação das empresas automotivas.

Segundo ela, os governos cobram regulamentação das fabricantes de automóveis, sem acreditar que elas vão ser responsáveis de forma voluntária, diferentemente do que acontece com as big techs.

Essa falta de regulamentação é especialmente relevante em torno da disputa política e ideológica sobre a liberdade de expressão, apresentada como sendo fundamental ao se defender que as empresas de tecnologia não devem ser regulamentadas.

Para a pesquisadora, entretanto, o caso do Brasil serve mais uma vez como base para entender os limites da liberdade e a necessidade de regulamentação das empresas de tecnologia em nome da defesa da democracia.

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“É crucial desafiar as alegações simplistas de que qualquer regulamentação inerentemente equivale à censura. Regular a conduta possibilitada pela tecnologia não é o mesmo que suprimir o direito fundamental à expressão”, disse.

“O Judiciário brasileiro não estava fechando a liberdade de expressão — estava afirmando sua autoridade constitucional. Há uma grande diferença entre manter a ordem pública e suprimir a expressão."

Segundo ela, “o que é perigoso é a ideia de que os proprietários de plataformas podem definir a liberdade de expressão de maneiras que atendam a seus próprios interesses políticos ou econômicos.”

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A abordagem da UE, ela apontou como exemplo, envolve o estabelecimento de responsabilidades claras para as empresas de tecnologia em relação a conteúdo ilegal e atividades prejudiciais, sem intervenção direta do governo na própria fala.

Trata-se de garantir que as empresas tomem medidas razoáveis para lidar com questões que afetam a saúde pública, a segurança e a não discriminação.

“É um exercício legítimo do poder legislativo democrático e um contrapeso necessário ao foco muitas vezes singular das empresas no retorno aos acionistas e no domínio do mercado”, afirmou.

“Os governos democráticos têm a responsabilidade de equilibrar vários direitos fundamentais, incluindo a liberdade de expressão, a não discriminação e a segurança pública”, disse.

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Daniel Buarque

Daniel Buarque

É doutor em relações internacionais pelo King’s College London. Tem mais de 20 anos de experiência em veículos como Folha de S.Paulo e G1 e é autor de oito livros, incluindo 'Brazil’s international status and recognition as an emerging power', 'Brazil, um país do presente', 'O Brazil é um país sério?' e 'O Brasil voltou?'