Big techs estão tomando o poder. E os EUA de Trump aceleram isso, diz pesquisadora

Empresas de tecnologia enfraquecem instituições democráticas e assumem funções de governos, a exemplo do que fez Musk na Casa Branca, diz Marietje Schaake, ex-membro do Parlamento Europeu e hoje em Stanford, em entrevista à Bloomberg Línea

Elon Musk e Donald Trump
Por Daniel Buarque
20 de Julho, 2025 | 07:30 AM

Bloomberg Línea — A concepção de golpe de Estado no mundo contemporâneo mudou.

A ciência política tem se desdobrado nos últimos anos para analisar como as democracias morrem e tem apontado que não é mais necessário colocar tanques na rua para tomar o poder. Para a ex-membro do Parlamento Europeu Marietje Schaake, entretanto, o verdadeiro risco ao Estado democrático de direito não vem apenas de políticos autoritários mas, sim, de empresas de tecnologia.

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“Essas empresas não estão mais apenas fornecendo serviços; elas estão assumindo papéis tradicionalmente exercidos pelos Estados-nação”, disse Schaake em entrevista à Bloomberg Línea.

Para ela, as big techs estão minando as instituições democráticas enquanto se comportam cada vez mais como Estados que não assumem responsabilidades.

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E o principal exemplo recente disso é a força geopolítica de Elon Musk, que fez parte do alto escalão do governo americano de Donald Trump, período em que participou de decisões-chave da política do país e exerceu influência até mesmo sobre as decisões relativas às relações dos EUA com o resto do mundo.

Essa análise é apresentada de forma detalhada no livro The Tech Coup: How to Save Democracy from Silicon Valley, lançado no final de 2024.

A obra explora como o poder crescente das empresas de tecnologia impacta a democracia, analisa desde o uso de plataformas digitais em protestos até a proliferação de spyware e a influência de empresas em eleições.

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Schaake, que é holandesa, examina o que apontou como falta de regulação eficaz e as tentativas de autorregulação, destacou os riscos para a soberania democrática e os direitos dos cidadãos em áreas como privacidade e segurança.

O livro também aborda a geopolítica da tecnologia, a crescente dependência de infraestruturas digitais críticas e a necessidade de colaboração internacional para fortalecer os princípios democráticos na era digital. E propõe a criação de uma infraestrutura digital pública e uma revisão das políticas tecnológicas.

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A pesquisadora de política internacional no Centro de Política Cibernética da Universidade Stanford Marietje Schaake

Atual pesquisadora de política internacional no Centro de Política Cibernética da Universidade Stanford, um berço de líderes tech e referência dessa indústria, Schaake avaliou na entrevista a seguir como as big techs estão remodelando a política global a partir da aliança - agora desfeita - entre Donald Trump e Elon Musk, que acelera o que ela chama de processo de destruição da democracia.

Seu livro, The Tech Coup, foi publicado no fim de 2024. Dado o rápido ritmo dos acontecimentos, especialmente com o retorno de Donald Trump ao poder nos EUA e seu alinhamento com figuras como Elon Musk, como sua análise evoluiu desde então?

É impressionante a rapidez com que a situação se intensificou. Embora a maior consolidação de poder pelos líderes de tecnologia parecesse inevitável, a maneira precisa como se desenrola é profundamente preocupante. Estamos testemunhando uma sinergia sem precedentes entre o poder político e estatal e a influência dos líderes de tecnologia.

O apoio aberto desses líderes a uma figura controversa como Trump representa uma aposta significativa.

O termo “golpe”, que alguns inicialmente acharam forte, agora parece cada vez mais inadequado para descrever a trajetória atual nos Estados Unidos. Não é apenas uma mudança na agenda política; é um potencial desmantelamento de instituições, um desrespeito ao Estado de direito e um afastamento dos princípios fundamentais que os EUA historicamente defenderam, independentemente da liderança política.

Estes são tempos dramáticos e ameaçadores, que sublinham a necessidade urgente de supervisão democrática sobre esses oligarcas da tecnologia.

Infelizmente, a própria nação com imenso poder tecnológico e político parece abdicar de sua responsabilidade, inclinando-se para a desregulamentação em um momento em que o oposto é crucial.

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A professora Katharina Pistor, da Universidade Columbia, fala de um “novo consenso de Washington” em que as empresas estão profundamente enraizadas no governo. Como a influência das big techs nesse sentido difere da de outras indústrias poderosas historicamente?

A diferença fundamental reside no impacto do poder das big techs. Essas empresas não estão mais apenas fornecendo serviços; estão assumindo papéis tradicionalmente exercidos pelos Estados-nação. Elas constroem, escaneiam, protegem e operam infraestruturas críticas. Elas se tornaram atores geopolíticos por direito próprio, como vimos com as decisões da Maxar em relação à Ucrânia ou o controle de Elon Musk sobre a Starlink.

Além disso, o volume e a sensibilidade dos dados aos quais essas empresas têm acesso são incomparáveis. O exemplo da Palantir terceirizando a análise de dados governamentais ou Elon Musk obtendo acesso privilegiado a informações governamentais confidenciais por meio de seu DOGE destaca isso.

Esse nível de acesso a dados e potencial uso indevido para fins como treinamento de modelos de IA diferencia as big techs de setores de lobby tradicionais como energia ou farmacêuticas.

A que tipo de diferença se refere?

Embora essas indústrias sem dúvida tenham exercido influência significativa, seu produto e impacto são diferentes. A tecnologia não é mais apenas um produto; é uma camada abrangente que impacta todas as facetas de nossas vidas – segurança nacional, saúde pública, debate democrático, eleições e muito mais.

Diferentemente das empresas de energia, que normalmente exigem aprovação governamental para grandes operações, as empresas de tecnologia podem inovar e implantar novas tecnologias, como a IA generativa, sem qualquer licenciamento prévio ou avaliação de interesse público.

Essa “inovação sem pre-autorização”, embora outrora celebrada, levou a uma situação em que a sociedade está sujeita a experimentos ao vivo com riscos potencialmente profundos e não avaliados.

O forte contraste entre a mudança da UE em direção à regulamentação da IA e a postura desregulamentadora dos EUA sob uma administração Trump sublinha essa divergência de abordagem e suas implicações globais.

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Você destaca os efeitos cascata globais do caso das empresas de tecnologia e da política nos EUA. Com o potencial de uma administração Trump que pressiona pela desregulamentação globalmente e se alinha com as big techs, como a regulamentação pode ser implementada de forma eficaz?

O impacto da tecnologia e da política dos EUA é inegavelmente global. O que acontece nos EUA envia grandes ondas, não apenas marolas, pelo mundo. O foco de figuras como Elon Musk e JD Vance na Europa, empregando retórica agressiva em relação aos líderes europeus, é indicativo disso.

Seu interesse na Europa provavelmente decorre de alguns fatores-chave. Em primeiro lugar, a forte base da Europa no Estado de direito, na democracia e nos direitos e liberdades fundamentais contrasta fortemente com a potencial trajetória nos EUA.

Em segundo lugar, a UE representa o único grande mercado democrático que regula ativamente a tecnologia e busca a soberania digital, o que ameaça diretamente os modelos de negócios dessas gigantes, que antes eram amplamente não regulamentados. Além disso, uma Europa democraticamente poderosa, não alinhada com a direção atual dos EUA, representa um desafio à sua influência global.

Vemos alinhamentos semelhantes com vozes nacionalistas, de extrema direita e antiestablishment em lugares como o Brasil, exemplificado pelo apoio a Bolsonaro. O confronto descarado de Elon Musk com o ministro Alexandre de Moraes no Brasil, alavancando toda a sua plataforma e algoritmos, demonstra a disposição desses atores de desafiar diretamente as instituições democráticas.

Esse comportamento transcende as batalhas políticas tradicionais e indica uma mudança nas próprias regras do jogo, com players poderosos e não eleitos que entram em campo. O relativo silêncio nos EUA em relação a esses desenvolvimentos é particularmente preocupante.

Em The Tech Coup, você discute a importância de os Estados recuperarem a soberania. Que ações concretas os indivíduos podem tomar para contribuir com isso, tanto em suas vidas pessoais quanto para impulsionar uma mudança social mais ampla?

Para os indivíduos, recuperar a soberania começa com a autodeterminação em suas vidas digitais. Isso significa cultivar um relacionamento mais consciente e menos viciante com as mídias sociais, fazer escolhas de consumo informadas (por exemplo, usar aplicativos de mensagens focados na privacidade) e estar atento a como seus dados estão sendo usados. No entanto, dada a imensa assimetria de poder entre usuários individuais e a Big Tech, as ações individuais por si só são insuficientes.

A ação coletiva e o engajamento político são cruciais. Precisamos pressionar nossos políticos a priorizar a governança democrática da tecnologia. O potencial de boicotes a certas plataformas ou mesmo proibições de tecnologia dos EUA na Europa, impulsionado por preocupações com segurança e a instrumentalização de dependências, poderia ser um desenvolvimento interessante a observar.

Em última análise, isso requer liderança política para se afastar da governança privada e de modelos orientados para o lucro em direção a uma estrutura democrática e baseada no Estado de direito. O declínio paralelo da democracia e a ascensão do poder tecnológico descontrolado não são coincidência, destacando a necessidade urgente de uma reavaliação fundamental de nossa relação com a tecnologia.

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Sua perspectiva sobre a capacidade de proteger a democracia desse “golpe tecnológico” mudou? Você está mais otimista ou pessimista?

Tenho uma mistura complexa de sentimentos. Por um lado, o “golpe tecnológico” está se desenrolando mais rápido e de forma mais significativa do que eu inicialmente temia. A potencial mudança na política dos EUA, afastando-se das normas democráticas e da cooperação internacional, é profundamente preocupante.

Por outro lado, agora há uma compreensão generalizada do problema. O ceticismo inicial desapareceu em grande parte. Mesmo que haja um culto a certas figuras, um amplo espectro de pessoas – estudantes, líderes empresariais, figuras políticas, jornalistas e atores da sociedade civil em todo o mundo – reconhece os perigos do poder descontrolado exercido por líderes de tecnologia não responsabilizados. Essa maior conscientização me dá um fio de esperança.

Embora a coalizão daqueles que podem estar satisfeitos com a situação atual tenha ganhado poder em alguns setores, aqueles que estão profundamente preocupados estão mais alarmados e sentem uma maior sensação de urgência. Isso está gerando impulso para o desacoplamento de tecnologias que poderiam ser instrumentalizadas contra valores democráticos e segurança.

A questão fundamental permanece: quem realmente se beneficia dessa erosão do controle democrático? Acredito que a resposta é quase ninguém. Portanto, mantenho a esperança de que, por meio da colaboração além das fronteiras, ainda possamos mudar essa trajetória, recuperar nossas democracias e estabelecer uma relação mais responsável e transparente com a tecnologia.

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Daniel Buarque

Daniel Buarque

É doutor em relações internacionais pelo King’s College London. Tem mais de 20 anos de experiência em veículos como Folha de S.Paulo e G1 e é autor de oito livros, incluindo 'Brazil’s international status and recognition as an emerging power', 'Brazil, um país do presente', 'O Brazil é um país sério?' e 'O Brasil voltou?'