Bloomberg — Em um evento no Museu de Design e Artes, de Paris, na noite de 8 de outubro, o Guia Michelin revelou sua primeira seleção global de “chaves” – o equivalente às suas tradicionais estrelas, mas voltado para hotéis.
Porém, algumas horas antes, em outro evento realizado na luxuosa mansão Pozzo di Borgo, do século XVIII, em Paris, a Michelin divulgou algo mais controverso: um olhar franco sobre a forma como obtém receita com suas avaliações, tanto no setor de hotéis quanto no de restaurantes.
Foi a primeira vez que a empresa francesa falou abertamente sobre o que muitos já sabiam há anos: que órgãos governamentais de turismo pagam para que os avaliadores do Guia Michelin visitem seus estados e cidades.
Há tempos, o setor de viagens questiona se a empresa consegue preservar sua imparcialidade ao conceder estrelas a restaurantes locais, enquanto aceita pagamentos de entidades responsáveis pela promoção desses destinos.
A prática de avaliar hotéis – algo dispendioso e que, atualmente, é quase impossível para a maioria das publicações fazer de maneira independente e aprofundada – forçou a Michelin a admitir suas práticas.
Isso, no entanto, não implica que ela comprometa seus padrões. A empresa confirmou que paga o preço total, com base nas tarifas públicas, por cada hotel que avalia, além dos voos necessários para a viagem. O mesmo ocorre com os restaurantes, visitados anonimamente. De forma semelhante, a Bloomberg News também paga por todos os hotéis que avalia.
Para expandir globalmente suas classificações de hotéis, no entanto, o Guia Michelin precisou criar diferentes fontes de receita. Em outubro de 2018, adquiriu a plataforma de reservas de hotéis Tablet, oferecendo aos fiéis do guia uma maneira de planejar e reservar suas viagens.
A empresa recebe uma parcela de cada reserva feita por meio do site, em uma taxa padrão de mercado de cerca de 15%. Todos os hotéis que recebem chaves são listados na plataforma, mas apenas uma parte é reservável.
Os executivos deixaram claro que os hotéis não precisam ser reserváveis pelo site da Michelin para receberem as chaves.
Além de conceder a designação máxima de três chaves para 143 hotéis ao redor do mundo, a Michelin também revelou pela primeira vez os vencedores dos prêmios de “melhores da categoria” em quatro áreas.
Entre eles, o Burman Hotel, em Tallinn, Estônia, ganhou como “Melhor Abertura do Ano”, e o Atlantis The Royal, em Dubai, foi eleito o melhor hotel em “Arquitetura e Design”.
Essas escolhas revelam pelo menos duas coisas: que os inspetores viajaram longe, explorando destinos além do escopo tradicional dos guias gastronômicos, para identificar lugares extraordinários para hospedagem, e que patrocinadores externos custearam parte da conta.
A categoria “Abertura do Ano”, por exemplo, teve o apoio do United Overseas Bank (UOB) e incluiu vencedores em destinos como Seychelles e Córsega.
Já na categoria que homenageia hotéis como “Portais Locais” – estabelecimentos que conectam os hóspedes à comunidade local – os inspetores aventuraram-se ainda mais, destacando o La Fiermontina Ocean em uma remota cidade costeira no Marrocos e o Tierra Patagonia, no Parque Nacional Torres del Paine, no Chile.
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Expansão da Michelin
Então, por que a transparência agora? A decisão de tornar a estratégia comercial mais clara coincide com um marco importante: a recente lucratividade da empresa.
A Michelin passou a última década expandindo seu guia internacionalmente e diversificando suas operações.
Investiu em uma robusta plataforma digital de conteúdo, firmou parcerias privadas – incluindo eventos patrocinados por gigantes como a LVMH – e recentemente insinuou planos ambiciosos de entrar no setor vinícola.
Essa revitalização deu novo fôlego a um empreendimento que parecia envelhecido para a gigante do setor de pneus.
Se isso soa como uma reformulação de marca bem-sucedida, considere o seguinte: a autoridade da Michelin nada significa sem a confiança dos consumidores em suas avaliações. E é exatamente essa confiança que a empresa arriscou no esforço de voltar à lucratividade.
Se órgãos de turismo estão pagando até US$ 1,5 milhão apenas para que seus restaurantes sejam avaliados quanto à possibilidade de receber estrelas, as críticas resultantes são genuinamente merecedoras de seu prestígio tradicional?
E, se o valor de uma estrela for diminuído, qual será o impacto no novo segmento de avaliações de hotéis da Michelin – ou em qualquer nova empreitada que ela venha a lançar?
Essa é a pergunta que nos leva de volta ao anúncio incomum: a Michelin espera que, ao ser transparente sobre como obtém receita, possa reforçar sua integridade antes que seja tarde demais.
“Queríamos apresentar a visão completa agora porque estamos expandindo globalmente na avaliação de hotéis e cobrindo o setor de hospitalidade mundialmente,” afirmou Gwendal Poullennec, diretor internacional do Guia Michelin. “A ideia é explicar toda a nossa estratégia.”
“O gênio saiu da lâmpada,” diz Erich Joachimsthaler, fundador e CEO do Vivaldi Group, uma consultoria de branding especializada em hotéis e hospitalidade.
“Dado o caráter subjetivo das avaliações, essa transparência pode, na verdade, desgastar a confiança e dar mais munição aos céticos,” analisa Joachimsthaler sobre a revelação oficial da Michelin.
Porém, ele ressalta que a empresa estava de mãos atadas, lutando em uma batalha impossível pela confiança dos consumidores, e que, caso quisesse preservar sua autoridade, não tinha outra opção senão admitir suas práticas agora.
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No evento realizado nas suntuosas salas neoclássicas da mansão parisiense, os representantes da Michelin foram abertos, mas até certo ponto.
Recusaram-se a fornecer detalhes sobre a rentabilidade do guia ou o número de inspetores em atuação ao redor do mundo. Contudo, pela primeira vez, discutiram abertamente sua dependência de contratos financeiros com órgãos de turismo.
“A realidade é que precisamos desses parceiros porque o que fazemos é caro,” disse Julianna Twiggs, diretora de desenvolvimento internacional da Michelin, apontando para os custos que a empresa assume ao enviar times de inspetores para voar ao redor do mundo, hospedarem-se em hotéis caros e comer várias vezes em restaurantes topo de linha.
O primeiro desses parceiros, segundo os representantes da Michelin, foi a Tailândia. A Autoridade de Turismo da Tailândia estava em uma campanha para mudar a reputação do país, antes conhecido como um destino de festas baratas, para uma referência gastronômica.
Atualmente, os clientes incluem a Arábia Saudita, para a qual um guia gastronômico será publicado ainda este mês.
Porém, os comentários de Twiggs também reforçaram os padrões da empresa. A Michelin não vai a todos os lugares que oferecem dinheiro, tampouco um contrato garante a publicação de um guia.
Quando um órgão de turismo financia a missão, o investimento serve, em parte, para enviar inspetores da Michelin ao local e avaliar a maturidade da cena gastronômica como parte de uma “auditoria culinária”.
Esse trabalho, diz Twiggs, não garante sequer uma única estrela. Em muitos casos, os inspetores podem oferecer sugestões aos parceiros sobre como melhorar, com a esperança de uma qualificação futura. O guia gastronômico de Dubai, por exemplo, levou sete anos para ser finalizado.
“Pode ser um remédio amargo de engolir, mas não é negociável,” disse Twiggs. “Precisamos de parceiros que entendam e acreditem no valor que oferecemos, mas que estejam dispostos a aceitar nossa independência.”
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Foco na Europa
Ainda assim, a lista da Michelin continua fortemente inclinada para a Europa.
Apesar de suas chaves terem sido dadas a 2.457 hotéis em mais de 100 países, incluindo joias frequentemente negligenciadas, como o Ceylon Tea Trails, no Sri Lanka, ou o Nayara Springs, na Costa Rica, 55% dos vencedores de três chaves estão na Europa.
Isso se compara aos 26% dos hotéis na lista World’s 50 Best, que com frequência enfrenta críticas por sua falta de diversidade geográfica.
Talvez pensando nisso, a Michelin trouxe o depoimento de uma inspetora experiente, que falou por telefone durante o evento. Falando de Londres, onde trabalha há 25 anos no guia, ela garantiu que à sua equipe é dada total independência do lado comercial da empresa.
“Essa independência é a base da nossa credibilidade, garantindo que cada recomendação tenha autoridade e cada estrela seja merecida,” afirmou a inspetora, que preferiu não revelar seu nome (os inspetores da Michelin tradicionalmente mantêm anonimato). “
Sabemos que os consumidores usam nossas recomendações para gastar seu dinheiro.”
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Os hotéis vencedores
Quanto aos hotéis que, segundo a Michelin, valem seu investimento, aqui estão os vencedores recém-anunciados em quatro categorias globais:
Prêmios de Arquitetura e Design
Vencedor: Atlantis The Royal, Dubai
Menções honrosas: Rosewood São Paulo (Brasil), Shabara Resort (Umluj, Arábia Saudita), Benesse House (Naoshima, Japão) e Villa Nai 3.3 (Dugi Otok, Croácia)
Prêmios de Bem-Estar
Vencedor: Bürgenstock Resort (Lago Lucerna, Suíça)
Menções honrosas: Canyon Ranch Tucson (Arizona, EUA), Joali Being (Raa Atoll, Maldivas), Lily of The Valley (La Croix-Valmer, França) e The Retreat at Blue Lagoon (Grindavik, Islândia)
Prêmios de Portais Locais
Vencedor: La Fiermontina Ocean (Larache, Marrocos)
Menções honrosas: Zannier Sonop (Deserto da Namíbia, Namíbia), Tierra Patagonia Hotel & Spa (Parque Nacional Torres del Paine, Chile), Longitude 131 (Yulara, Austrália) e Post Ranch Inn (Big Sur, EUA)
Prêmio de Abertura do Ano
Vencedor: The Burman Hotel (Tallinn, Estônia)
Menções honrosas: Aman Nai Lert Bangkok (Tailândia), Collegio alla Querce, Auberge Resorts Collection (Florença, Itália), Le Mouflon D’Or (Córsega, França) e Cheval Blanc Seychelles (Takamaka, Seychelles).
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