Como a clonagem de voz por IA ameaça a dublagem e a renda de profissionais do setor

Falta de regulamentação da ameaça deslocar um setor que gera US$ 66 milhões anualmente somente no México, onde 60% das versões em espanhol são feitas

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Bloomberg Línea — “Fiz um trabalho para um cliente e, de repente, pude ouvir minha voz [em outro lugar]. Ninguém me contou, nunca dei minha aprovação para isso”.

Foi assim que o ator e diretor de dublagem Antonio Raluy contou à Bloomberg Línea sobre sua experiência após ser vítima de clonagem de voz, um dos desafios que a profissão de dublador está enfrentando com a inteligência artificial (IA).

No México, país que historicamente tem sido a meca da dublagem em espanhol na América Latina, a ascensão da IA representa uma ameaça para atores, atrizes, roteiristas, técnicos e tradutores devido à falta de legislação para proteger as vozes, regular os pagamentos e impedir a substituição de intérpretes.

A Associação Nacional de Atores do México (ANDA) adverte que a renda de “mais de 10.000 famílias” está em risco.

“Não somos contra a inteligência artificial, somos contra a substituição de seres humanos e a perda de empregos”, disse Alejandro Cuétara, secretário de relações exteriores da ANDA.

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A agência estima que existam 1.800 atores e atrizes de dublagem no México. Muitos já estão começando a ser substituídos por vozes sintéticas.

“Perdi muitos trabalhos de secretária eletrônica e cursos da empresa, muitos são feitos com inteligência artificial”, lamentou a experiente atriz Lili Barba, voz em espanhol de Carlitos na animação Rugrats: Os Anjinhos e presidente da Associação Mexicana de Talentos da Voz Comercial (AMELOC).

O setor gera US$ 66 milhões anualmente e até 60% da dublagem para o espanhol é feita no país, de acordo com estimativas da empresa de dublagem Caaliope, citadas pelo jornal mexicano Milenio. Entretanto, a legislação não prevê a IA nos setores criativos.

Os deputados Paulo García e Santiago González apresentaram iniciativas de reforma para modificar artigos que delimitavam a IA nas leis federais do trabalho, de direitos autorais, de proteção de dados pessoais e de cinematografia.

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Embora não tenham sido discutidas, elas buscam impedir o uso não autorizado de imagem e voz, impedir que criações geradas por inteligência artificial sejam protegidas como obras intelectuais, promover a dublagem nacional e o reconhecimento de voz como dados biométricos.

“Lá você está protegido e blindado para que absolutamente ninguém possa usar sua voz indevidamente ou cloná-la”, disse Mario Arvizu, ator, diretor e locutor comercial que participou do mais recente filme Superman.

Em um evento sem precedentes, o sindicato de atores e outros setores criativos realizaram uma manifestação no domingo, 13 de julho, para exigir a regulamentação da IA no Monumento a la Revolución, no centro da Cidade do México. A exigência inclui o que Barba chamou de 4Cs: consentimento, controle, crédito e compensação pelo uso da voz.

Avanço jurídico

Uma recente decisão da Suprema Corte mexicana negou o registro de um avatar gerado usando essa tecnologia no Instituto Nacional de Direitos Autorais.

A decisão observou que tal obra não é passível de proteção nos termos da lei porque não é um produto de criação humana.

A presidente do México, Claudia Sheinbaum, abordou a questão em sua conferência matinal em 14 de julho. “Temos que proteger o trabalho deles, mas também sua voz”, disse ela, acrescentando que o departamento jurídico de seu governo analisaria os esquemas.

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Automação sem emoção

Para Eduardo Garza, um ator veterano que dublou personagens como Krilin em Dragon Ball Z e Elmo, de Vila Sésamo, o setor “está em um estágio nunca visto antes”, devido à necessidade de as plataformas de streaming dublarem seu conteúdo. No entanto, isso não se traduz necessariamente em mais empregos para o setor.

Em 2024, o Prime Video lançou alguns dramas coreanos ou k-dramas dublados com IA, mas diante da reação negativa dos usuários, eles foram retirados dias depois.

“As máquinas não têm talento, os humanos sim”, disse Rossy Aguirre, conhecido por dublar personagens como Sailor Mercury e Bellota de As Meninas Superpoderosas.

No entanto, em março deste ano, a Amazon revelou que iniciaria um programa piloto com dublagem assistida por IA em espanhol e inglês da América Latina para 12 filmes e séries licenciados, como El Cid: The Legend, Long Lost e Mi Mamá Lora.

“Acreditamos em aprimorar a experiência do cliente com inovações de IA que sejam práticas e úteis”, disse Raf Soltanovich, vice-presidente de tecnologia da Prime Video e da Amazon MGM Studios, em um comunicado.

Garza, que dirigiu a dublagem de produções originais do Prime Video, como a série animada Invincible, explicou que a plataforma não dubla diretamente todo o conteúdo. Alguns dependem das empresas proprietárias e de seus orçamentos.

“Quando a série é uma produção original da Amazon, eles se preocupam com a qualidade”, disse Garza. Outros não estão interessados em investir em dublagem: “Eles são os que estão começando a fazer isso de repente”, acrescentou.

O mercado global de serviços de dublagem automatizada crescerá de US$ 132,50 milhões em 2024 para US$ 218,03 milhões em 2033, de acordo com projeções da Astute Analytica.

Garza estima que cerca de 1.200 empregos diretos serão perdidos com a IA e que o setor terá dois lados: o barato, de baixa qualidade, produzido pela IA, e o caro, com as empresas de IA reproduzindo algo até então inatingível para o software: emoções.

“É isso que nós, atores de dublagem, somos: trabalhamos com emoções e as capturamos”, disse Garza.