Sem ajuste fiscal, BC terá espaço limitado para cortar Selic, diz economista do Inter

Em entrevista à Bloomberg Línea, Rafaela Vitória avalia que o governo deveria mostrar esforços para fazer ajustes também nas despesas para melhorar as contas públicas

Rafaela Vitória, economista-chefe do banco Inter
24 de Agosto, 2023 | 05:05 AM

Bloomberg Línea — A falta de clareza sobre como o governo será capaz de reduzir o déficit fiscal limita o espaço para os cortes de juros do Banco Central, na visão de Rafaela Vitória, economista-chefe do banco Inter (INTR).

Em entrevista à Bloomberg Línea, Vitória diz que seria necessário elevar as receitas em pelo menos R$ 140 bilhões para cobrir o buraco nas contas públicas. Mas as medidas que aumentam a arrecadação têm sofrido resistência do Congresso e ainda há o risco de as receitas com impostos caírem por causa da atividade econômica em desaceleração e da queda dos preços de commodities.

“Se o país tivesse uma credibilidade maior no [lado] fiscal, poderia ver uma expectativa de corte de Selic maior, e os juros reais poderiam cair até para 4%”, afirmou a economista, que prevê um déficit fiscal de 0,8% do PIB em 2024, acima das projeções do governo.

“O cenário de desinflação está consolidado. Mas vemos a curva de juros parando em 9% e subindo um pouquinho. Isso é reflexo da visão de que o governo não vai conseguir entregar esse ajuste fiscal e a inflação vai ficar rodando em 4% e 5%, acima da meta do Banco Central”, disse ela (leia a entrevista completa mais abaixo).

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Quando apresentou o projeto do arcabouço fiscal, o governo indicou a meta de um déficit de 0,5% do PIB em 2023 e de zerar o rombo já no ano que vem, com um intervalo de tolerância de 0,25 ponto para cima ou para baixo.

No entanto a maior parte dos economistas do mercado financeiro não acredita que Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, serão capazes de atingir esse resultado diante do aumento de despesas. O Boletim Focus, do Banco Central, com estimativas de economistas de mercado, aponta uma projeção de déficit primário de 1% do PIB para este ano e de 0,75% PIB para 2024.

Rafaela Vitória lembrou que os aumentos de despesas de 2023 são permanentes e terão reflexos também no ano que vem. Entre eles está principalmente a elevação dos gastos com o Bolsa Família, após mudanças realizadas ainda no governo de Jair Bolsonaro e mantidas por Lula, e reajustes de salários do funcionalismo, além do aumento do salário mínimo.

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A economista notou que, em uma primeira apresentação no início do ano, o ministro Fernando Haddad e a ministra Simone Tebet (Planejamento) mostraram uma projeção de corte de despesas de R$ 50 bilhões para este ano, algo que não foi mais falado desde então.

“Parou-se de falar nesse tipo de corte. Acho que faz falta, principalmente, para ajudar no debate de justificar mais receita. Mostraria um esforço do governo. O discurso de zerar o déficit só com base na receita enfraquece a própria negociação do lado do governo. Tira um pouco da legitimidade”, afirmou Vitória.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada para fins de clareza e tamanho:

Bloomberg Línea: Assim como parte do mercado, o Inter estima um déficit fiscal de 0,8% do PIB em 2024, acima das projeções do governo Lula. O que leva à expectativa de um rombo maior?

Rafaela Vitória: Boa parte dessa expectativa vem de um déficit que o país vai ter neste ano. O governo vai terminar o ano com um déficit por volta de uns R$ 100 bilhões, ou 0,9% do PIB.

Estamos vendo uma deterioração das contas públicas, tanto pelo crescimento das despesas, que é um crescimento permanente, como pela queda das receitas. Boa parte do déficit projetado para 2024 vem desse crescimento de despesas efetivado neste ano. Aumento de salário mínimo, aumento do Bolsa Família. São despesas recorrentes.

O governo tem uma projeção de zerar esse déficit baseada em uma expectativa de recompor receita. Mas temos muitas dúvidas da capacidade de arrecadar mais no próximo ano.

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Por quê?

Primeiro porque são medidas que precisam ser aprovadas no Congresso. E a gente já tem visto - como já era esperado -, de que existe uma resistência no Congresso em se aprovar mais impostos.

Mesmo a tributação sobre investimentos estrangeiros e os impostos sobre fundos exclusivos -- que na verdade é para dar uma isonomia em relação à tributação que existe no Brasil de maneira geral sobre ganho de capital --, é difícil de ser aprovada. Outras devem encontrar resistência semelhante, como o fim do JCP para empresas, sem nenhuma compensação pelo Imposto de Renda da Pessoa Jurídica.

O governo vai ter uma dificuldade em aprovar essas medidas na magnitude de que ele precisa para zerar o déficit.

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Qual seria o nível necessário desse ajuste para zerar o déficit?

Para o ano que vem, a gente estima que seria necessário pelo menos R$ 140 bilhões em receita para zerar o déficit. Agora, existe um complicador. O Brasil pode perder receita no ano que vem, como a gente já tem visto neste ano.

Com a queda da inflação, com a cotação de commodities em queda, a gente pode ter uma receita menor de imposto de renda das empresas ligadas ao setor de commodities, tanto neste ano quanto no próximo.

Sem considerar esses riscos, a gente estima que o governo precisaria de uma receita adicional de R$ 140 bilhões, mas o viés é que o valor pode ser um pouco maior.

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Leva em conta algum tipo de corte de despesa?

Esse é o grande ponto que não está sendo debatido. O governo poderia reduzir um pouco das despesas, ou crescer menos, e poderia zerar esse déficit no próximo ano.

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O que poderia ser feito, por exemplo?

Poderia ser feita uma reformulação do Bolsa Família. O Bolsa Família tem um orçamento estimado de R$ 170 bilhões. O governo está com um dispêndio mensal próximo de R$ 14 bilhões.

A gente sabe que tem muita irregularidade que não foi consertada. O governo anuncia que fez ajustes. Mas quando a gente vê os resultados mensais, a gente não vê nenhum resultado desses ajustes.

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O governo também poderia moderar o reajuste do salário mínimo no próximo ano. Uma proposta de 3% de reajuste real acima do INPC vai pesar na Previdência e outras despesas relacionadas, como BPC, o abono salarial. Todas elas estão atreladas ao salário mínimo.

E isso não tem sido falado.

Não. Naquela primeira apresentação do Haddad junto da Tebet, quando ele mostrou pela primeira vez que ele queria de déficit de 0,5% este ano e 0% no próximo ano, ele listou algumas medidas e, entre elas, tinha um corte de gastos de R$ 50 bilhões para este ano. Nunca mais se falou nesse corte de gastos de R$ 50 bilhões. Ele sumiu.

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Faz falta, inclusive, para ajudar no debate de justificar mais receita. Mostraria um esforço do governo, mas para zerar o déficit de fato precisaria recompor alguma coisa [em arrecadação].

O discurso de zerar o déficit só com base na receita enfraquece a própria negociação do lado do governo. Tira um pouco da legitimidade.

A confiança do mercado no governo voltou a ficar abalada?

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O governo vai sempre prometer um pouco mais e entregar um pouco menos. Quando ele promete zerar o déficit, a gente já faz a leitura de que vai ser -0,7%. Se ele falar que é -0,5%, vou fazer a leitura de que é -1%, se a gente não vir na prática algum controle de gasto sendo feito.

O mais importante dessa sinalização vai ser na proposta de lei orçamentária. Na LOA 2024. Se a LOA 2024 vier com um crescimento de gasto acima de 2,5%, que é acima do arcabouço, acho que o mercado pode penalizar mais o governo pelo fato de ele não se esforçar em cumprir a própria proposta.

O que essa situação implica para a política monetária e para a atividade econômica?

Para a política monetária, limita o espaço de corte de juros. Se a gente não tiver um orçamento que realmente mostre a busca pelo ajuste fiscal, mesmo que o governo não entregue o déficit zerado, mas ele mostre o caminho de que a gente vai chegar nesse déficit zero em 2026, o Banco Central vai ter um espaço mais limitado para o corte para a Selic nas próximas reuniões ao longo de 2024.

Para a atividade, a gente pode até ter um crescimento maior. Se a gente tiver uma alta de salário mínimo em janeiro, isso pode até dar um fôlego para o consumo. Mas não é um bom crescimento. Esse é aquele crescimento que é um voo de galinha.

Aumenta-se o consumo pontualmente, causa um repique na inflação, e não tem um crescimento sustentável principalmente por parte do investimento. O que pode acelerar o investimento no Brasil é a queda dos juros. E isso pode ficar restrito se o governo não entregar de fato o ajuste fiscal como vem prometendo.

A gente já viu esse filme antes. Qual é a sua avaliação sobre esse conjunto de medidas de ajustes proposta até agora?

É um quadro complexo. Mas a gente não está falando de um déficit crescente. É um ajuste que é possível fazer. Quando se fala em R$ 100 bilhões, R$ 150 bilhões, não é um ajuste impossível. Um controle de crescimento de despesas, dentro das despesas obrigatórias, dá para fazer.

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Filipe Serrano

É editor da Bloomberg Línea Brasil e jornalista especializado na cobertura de macroeconomia, negócios, internacional e tecnologia. Foi editor de economia no jornal O Estado de S. Paulo, e editor na Exame e na revista INFO, da Editora Abril. Tem pós-graduação em Relações Internacionais pela FGV-SP, e graduação em Jornalismo pela PUC-SP.