Como o cânhamo quer transformar a cannabis em nova fronteira do agro brasileiro

Mudanças na abordagem e na linguagem visam romper com resistência sobre a droga ilícita e apresentar o potencial da planta para a medicina e a indústria, com oportunidades não só para produtores como para a indústria relacionada

Potencial de negócios dentro da legalidade pode estimular o aumento de cultivo da planta no Brasil (Foto: Victor Moriyama/Bloomberg)
Por Daniel Buarque
29 de Maio, 2025 | 12:48 PM

Bloomberg Línea — Durante um evento sobre o uso medicinal da cannabis no Brasil, realizado em São Paulo em maio, a principal atração atendia por outro nome: cânhamo.

A planta foi apresentada e discutida como uma possível nova fronteira para o agronegócio no Brasil. Além de dispor de importância industrial e medicinal, ela seria capaz de desfazer, pelo menos em parte, o estigma que existe em torno da espécie que ainda é associada à maconha como uma droga ilegal.

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“O cânhamo foi a estrela do evento neste ano”, disse Daniel Jordão, diretor da Sechat, uma plataforma de informação, educação e negócios voltada ao mercado de cannabis e organizador do Congresso Brasileiro da Cannabis Medicinal, em entrevista à Bloomberg Línea.

“Se antes o foco estava na cannabis medicinal, agora há um interesse crescente do agro em entender como esse cultivo pode se transformar em um novo vetor de negócios. Acredito que o Brasil tem tudo para se tornar uma potência global no cultivo e na industrialização do cânhamo”, disse.

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Em meio a debates regulatórios que se arrastam entre Executivo, Legislativo e Judiciário, a planta passou a ser rediscutida de forma mais ampla no mercado.

Ela não seria apenas uma droga ou uma fonte importante de medicamento mas um insumo para uma gama de aplicações industriais que vão de bioplásticos a materiais de construção e fibras têxteis.

Empresários e outros “atores” envolvidos na indústria defendem a visão de que a regulação do seu cultivo no país poderia destravar uma cadeia produtiva com impacto potencial que remeteria ao de commodities agrícolas.

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É nesse ponto que o cânhamo aparece como uma forma de “furar a bolha” da discussão mais tradicional sobre a cannabis. Isso por uma questão de nomenclatura técnica que busca romper preconceitos, pois não há, do ponto de vista botânico, uma distinção formal entre cannabis e cânhamo, explicou Beatriz Marti Emygio, pesquisadora da Embrapa que também participou do evento.

“A diferenciação entre cannabis medicinal e cânhamo industrial é, em grande parte, discursiva. Serve para facilitar o debate e contornar o estigma associado à maconha, mas na prática trata-se da mesma planta, com potenciais diversos dependendo do uso”, explicou a pesquisadora, que coordena estudos técnicos sobre a planta, em entrevista à Bloomberg Línea.

As duas vêm da mesma espécie, e o que diferencia os usos medicinais e industriais são os quimiotipos e os teores de canabinóides como THC e CBD, as duas substâncias mais associadas à cannabis.

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A divisão prática adotada internacionalmente considera “cânhamo” o material com menos de 0,3% de THC (que é psicoativo), mas essa linha, segundo a pesquisadora, é tênue e até questionável.

Com a mudança na forma de nomear o tema e discutir seu uso na indústria e na medicina, os organizadores do evento deixavam clara a tentativa de fugir da polêmica a focar na questão da saúde e da economia.

Muito além do uso recreativo

Isso fez com que o uso recreativo da cannabis ficasse de fora da pauta do evento, enquanto os organizadores reconhecem que o estigma e a polarização dificultam o avanço do debate.

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“Nosso foco é um evento profissional, voltado para negócios e regulação dentro do que é permitido por lei. Queremos mostrar os dados, os fatos e os benefícios econômicos e sociais de um setor que já está regulamentado em mais de 60 países. Precisamos atingir os setores que ainda veem esse tema com preconceito”, disse Jordão.

Segundo Emygio, o potencial já captura atenção do setor agrícola. “Existe a percepção de que o agronegócio tem um certo preconceito com a cannabis, mas isso não acontece na prática. Nós temos recebido na Embrapa demandas de vários segmentos interessados no potencial do cânhamo”, disse.

Segundo ela, são empresas que desenvolvem maquinários para secagem de fumo e querem adaptar esses equipamentos para secagem de cannabis, por exemplo.

“Nós temos no país vários laboratórios que fazem a produção de mudas in vitro, de espécies frutíferas, de hortaliças. Já nos procuraram para entender como é esse mercado, porque a cannabis é propagada também vegetativamente, então teríamos aí o mercado de produção de sementes e mudas”, disse.

Potencial econômico no agro

O apoio da Embrapa na discussão tem apontado que o Brasil tem clima e solo adequados para o cultivo da cannabis em todas as regiões do país, com possibilidade de adaptar cultivares às condições locais.

Além disso, a rusticidade da planta favorece o uso em áreas degradadas, com potencial de regeneração do solo e sequestro de carbono.

Em comparação com outras culturas, exige menos água, menos defensivos agrícolas e tem alta capacidade de sequestro de carbono - o que a coloca no centro do debate sobre agricultura verde e transição energética.

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A cadeia do cânhamo industrial abrange o uso da fibra para tecidos, a celulose para papel, os bioplásticos, a construção civil e até o uso de subprodutos em rações animais e cosméticos.

Há também interesse da indústria de sementes e mudas, com demanda por propagação in vitro, bem como de empresas de maquinário que buscam adaptar tecnologias de secagem já existentes.

O tema ainda depende do resultado das discussões políticas e da forma como poderia ser feita a regulamentação da produção da planta. Assim, a organização do evento e a Embrapa evitaram fazer projeções do possível ganho econômico da exploração do cânhamo em larga escala no país.

“É um mercado que ainda precisa ser destravado para que as pessoas percebam que é um produto que carrega uma sustentabilidade ambiental. Esse potencial está muito ligado ao que vai ser permitido pela lei”, disse Emydio, da Embrapa.

Ainda assim, um estudo recente da consultoria Kaya Mind apontou que o mercado da cannabis medicinal (dentro da lei) já movimentou cerca de R$ 853 milhões em 2024, com projeções que ultrapassam R$ 1 bilhão em 2025.

Além disso, há a expectativa de que o setor do cânhamo industrial possa representar R$ 26 bilhões por ano em impacto econômico e gerar 300 mil empregos diretos e indiretos, caso seja regulamentado.

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O potencial reflete o fato de que as leis estão mudando em muitos países do mundo para permitir o uso medicinal e industrial da cannabis, com novos países liberando seu cultivo e uso “a cada semana”, segundo Jordão.

Um exemplo é a Alemanha, onde a liberação do cultivo levou a um grande interesse de produtores canadenses, americanos e europeus.

A China é mencionada como um grande produtor e mercado consumidor de cânhamo industrial, com o Brasil tendo potencial para competir nesse mercado, inclusive exportando matéria-prima para o país asiático.

O debate, no entanto, ainda esbarra em obstáculos políticos e culturais.

“Falta uma lei mais abrangente que trate da cannabis como setor produtivo”, disse Jordão. “Hoje temos avanços pontuais: a Anvisa agiu dentro do seu escopo, o STJ [Superior Tribunal de Justiça] abriu uma brecha, mas ainda falta clareza legal sobre quem pode plantar, como pode plantar e para qual finalidade.”

“O cânhamo pode ser uma nova fronteira do agro brasileiro”, disse Jordão. “Mas para isso, é preciso uma regulamentação clara, baseada em dados, capaz de atrair investimento e destravar a cadeia produtiva.”

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Daniel Buarque

Daniel Buarque

É doutor em relações internacionais pelo King’s College London. Tem mais de 20 anos de experiência em veículos como Folha de S.Paulo e G1 e é autor de oito livros, incluindo 'Brazil’s international status and recognition as an emerging power', 'Brazil, um país do presente', 'O Brazil é um país sério?' e 'O Brasil voltou?'