Menos carne e mais vegetais: estudo reforça valor da dieta para a saúde e o planeta

Com base em dados de mais de 30 países, novo relatório global da Comissão EAT-Lancet atualiza orientações para países ricos e pobres, indicando ajustes na alimentação que podem evitar mortes prematuras e conter emissões de gases do efeito estufa

Frutas e legumes em Londres
Por Agnieszka de Sousa
04 de Outubro, 2025 | 12:00 PM

Bloomberg — Quando um grupo de cientistas e especialistas em nutrição apresentou um plano alimentar global há alguns anos, poucos imaginavam que ele provocaria um dos debates mais intensos sobre alimentação dos últimos tempos.

A proposta central parecia inofensiva: para que um planeta cada vez mais populoso possa prosperar, os países ricos deveriam reduzir o consumo de carne e aumentar o de alimentos de origem vegetal.

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Mas logo após a publicação, o relatório da Comissão EAT-Lancet virou alvo de forte reação. Os autores receberam ameaças, foram acusados de elitismo e atacados em campanhas nas redes sociais apoiadas pela indústria da carne.

Alguns formuladores de políticas adotaram suas recomendações, enquanto outros — especialmente nos Estados Unidos — rejeitaram o estudo como uma tentativa “progressista” de tirar a carne do prato das pessoas.

Agora, uma nova rodada desse debate acaba de começar. Com base em novos dados e contribuições de especialistas de mais de 30 países, a comissão lançou na sexta-feira (4) uma segunda versão do relatório, reafirmando essencialmente a mesma mensagem: comer menos carne e mais feijões, castanhas e vegetais — sobretudo nos países ricos.

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Segundo o estudo, essa mudança poderia evitar cerca de 15 milhões de mortes prematuras por ano e reduzir as emissões da agricultura em 15%.

“Ao melhorar as dietas, também melhoramos o meio ambiente”, disse Walter Willett, professor de epidemiologia e nutrição da Universidade Harvard e copresidente da comissão. “Há um senso de urgência que só aumentou desde o último relatório.”

Leia também: Saudável ou ultraprocessado? Classificação de alimentos afeta até iogurte nos EUA

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Os sistemas alimentares respondem por cerca de um terço das emissões globais de gases de efeito estufa, impulsionadas principalmente pela pecuária — grande emissora de metano e consumidora intensiva de terra e água.

Mesmo que o mundo abandone os combustíveis fósseis, a produção de alimentos sozinha pode levar o aquecimento global além do limite de 1,5°C.

A responsabilidade, porém, é desigual: os 30% mais ricos da população mundial são responsáveis por mais de 70% da pressão ambiental ligada à alimentação, segundo o relatório.

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A chamada “dieta da saúde planetária”, proposta pela comissão, é semelhante à dieta mediterrânea e a outras tradições alimentares em diferentes partes do mundo.

As recomendações são apresentadas em faixas de consumo, o que permite certa flexibilidade.

Não se trata de promover o veganismo, mas de defender que alimentos de origem animal sejam opcionais, consumidos com moderação, e baseados no princípio “1+1”: uma porção de laticínios e uma de outra proteína animal por dia.

“A ideia é respeitar a diversidade cultural e as preferências individuais”, disse Willett.

As mudanças mais significativas afetariam os setores de carne e laticínios. A produção de carne bovina, caprina e ovina precisaria cair um terço até 2050 em relação aos níveis de 2020, e os rebanhos de ruminantes teriam de ser reduzidos em cerca de 25%.

Ainda assim, o relatório reconhece que mudar a dieta não basta: é preciso diminuir o desperdício de alimentos e aumentar a produtividade agrícola.

Batizada de EAT-Lancet 2.0, a nova versão foi elaborada por um painel multidisciplinar com especialistas em pecuária, economia, nutrição e clima. O texto passou por revisão por pares e foi financiado por instituições como a Fundação Rockefeller e a Fundação Novo Nordisk.

A primeira versão, publicada em 2019, teve grande repercussão e foi citada em mais de 600 documentos de políticas públicas. Cidades como Milão, Londres e Tóquio prometeram alinhar seus programas de alimentação pública às diretrizes do estudo.

Segundo Tim Benton, professor da Universidade de Leeds e especialista em segurança alimentar, o relatório se tornou uma referência para incorporar sustentabilidade em guias alimentares.

Mesmo assim, sua aplicação prática foi limitada. O consumo global de carne continua em alta, enquanto as vendas de proteínas alternativas perdem força. A pandemia, a invasão da Ucrânia pela Rússia e o aumento dos preços dos alimentos reduziram o apetite político e do consumidor por sustentabilidade.

Politização do estudo

Paralelamente, o avanço do populismo de direita fortaleceu movimentos que associam o consumo de carne a valores identitários. O crescimento da chamada “manosfera” e do machismo influenciado pelo movimento MAGA (ligado a Donald Trump) impulsionou a popularidade da dieta carnívora.

“O poder político do setor pecuário, somado a esse populismo de direita — do tipo ‘ninguém vai me dizer que eu não posso comer carne’ —, fez da EAT-Lancet um alvo fácil para o que hoje se chama de agenda anti-woke”, afirmou Benton.

Para alguns dos principais nomes do relatório, a reação negativa teve impacto pessoal.

A médica Gunhild Stordalen, cofundadora da EAT Foundation e responsável pelo financiamento do estudo, foi retratada online como parte de uma “elite de Davos”. Uma investigação posterior revelou campanhas coordenadas para desacreditar o relatório.

Segundo a Changing Markets Foundation, postagens críticas — amplificadas por “desinfluenciadores” ligados à indústria da carne — usaram a hashtag #yes2meat. A organização alertou na semana passada para uma nova ofensiva contra a atualização.

A nova edição tenta responder a críticas anteriores, como a de que o foco era excessivamente ocidental e ignorava dietas locais ou a questão da acessibilidade.

Desta vez, o destaque está em sistemas alimentares justos: quase metade da população mundial ainda não tem acesso a dietas saudáveis e acessíveis, salários dignos e ambientes seguros.

A comissão reconhece que, embora o Norte Global precise reduzir drasticamente o consumo de carne, partes do Sul Global talvez precisem aumentar o consumo de proteína animal para combater a desnutrição — sem atingir os níveis dos países ricos.

Para viabilizar essas mudanças, o relatório defende novas políticas públicas, incluindo reformas de subsídios e taxação, de forma que alimentos saudáveis se tornem acessíveis e atrativos.

Stordalen afirmou que a comissão planeja levar o novo relatório em uma turnê global, destacando seus impactos em diferentes regiões e culturas. A iniciativa incluirá diálogos com agricultores, chefs, consumidores e profissionais de saúde.

“Estamos reunindo todos os atores-chave à mesa para ter conversas francas — e realmente tentar mudar mentalidades”, disse ela.

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