Risco fiscal vai entrar no radar do mercado, diz Padovani, do BV

Economista-chefe diz à Bloomberg Línea que a desaceleração global tende a se refletir no país e levar a uma mudança de humor do investidor externo sobre o Brasil

O objetivo do Fed não é manter a atividade econômica aquecida, mas combater a inflação
08 de Setembro, 2022 | 01:53 PM

Bloomberg Línea — O economista Roberto Padovani, do BV (ex-Banco Votorantim), se especializou ao longo das últimas três décadas em analisar a conjuntura da economia no Brasil e no mundo e traçar cenários para seus clientes. O que ele tem projetado recentemente é que a situação positiva das contas públicas tende a dar uma virada ao longo dos próximos meses e que esse tema deve entrar no radar de investidores e gestores do mercado financeiro, em particular dos estrangeiros, em breve.

Na avaliação de Padovani, que foi sócio da Tendências Consultoria, uma das maiores do país, e responsável pela América Latina no banco alemão WestLB anteriormente, a desaceleração da economia mundial tende a esfriar a atividade no Brasil a partir do fim do ano. Além disso, o aperto monetário em curso nos países ricos – especialmente nos Estados Unidos – vem fortalecendo o dólar e favorecendo um fluxo de capitais em direção a ativos mais seguros.

Nesse ambiente, a arrecadação de impostos também tende a sentir os efeitos de uma atividade econômica mais fraca. E existe uma pressão para o aumento de gastos públicos, com a possibilidade de reajustes salariais do funcionalismo e o aumento permanente do Auxílio Brasil para um valor mínimo mensal de R$ 600.

“Até agora só houve boas notícias no Brasil. Crescimento econômico melhor, contas públicas indo bem, contas externas indo ok. O mercado vem ‘meio passando batido’ [em relação a essa questão]. Mas acho que, com essa mudança no humor global, isso tende a reverter aqui também”, afirmou Padovani em entrevista à Bloomberg Línea.

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Para o economista, o aumento das taxas de juros no Brasil tem elevado o custo do carrego da dívida pública, o que tem um impacto significativo para os gastos do governo. Ele acredita que a trajetória da dívida pública é de alta “independentemente de qualquer coisa” e que o Brasil deve levar de seis a sete anos para estabilizar a dívida.

“Quando se combina pressão por gastos com um ambiente de menor arrecadação, com juros elevados, vemos duas saídas: uma é aumento de impostos e a outra é aumento de dívida. Deve ter um pouco de tudo. Mas certamente é um ambiente mais complicado”, disse ele.

Sobre o ciclo de aperto monetário, Padovani acredita que os bancos centrais e, em especial, o Federal Reserve devem continuar a elevar as taxas de juros para um nível contracionista, como tem sido demonstrado nas falas de dirigentes do Fed e também do Banco Central do Brasil.

Na visão dele, o Fed deve elevar os juros mesmo que isso signifique um crescimento menor da economia ou até uma recessão. Ele próprio nota que os dirigentes já reconhecem que a atividade deve ficar mais fraca justamente por causa do aperto monetário.

“O banco central tem que desacelerar a atividade econômica. O objetivo dele não é manter a atividade econômica. É trazer a inflação de 8,5% para 2%. Ele vai ter que desacelerar a atividade”, afirmou, se referindo aos Estados Unidos.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, feita na sede do BV em São Paulo e editada para fins de clareza:

Bloomberg Línea: Como vê a situação da economia brasileira hoje?

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Roberto Padovani: Os dados do primeiro semestre vieram melhor do que o esperado, e isso tem um efeito grande nas estatísticas do ano. Tivemos um bom começo de ano por conta do setor de serviços e da economia mundial. Mas a nossa impressão é que a atividade deve perder um pouco de fôlego a partir de agora. Não no terceiro trimestre, por causa do impulso fiscal. Mas a partir do quarto trimestre – e principalmente a partir de 2023 –, a gente acha que a economia mundial desacelera, e o Brasil desacelera junto.

O que pesa mais em relação ao cenário externo?

O primeiro ponto é a alta expressiva da inflação. A inflação próxima de dois dígitos nos EUA e na Europa está tendo um impacto sobre a renda real. Além disso, nos EUA há uma perda de riqueza. Os dados do mercado imobiliário estão mostrando desaceleração, e as Bolsas estão recuando. Há uma reprecificação do patrimônio, que traz perda de riqueza e sensação de empobrecimento. Tem também um cenário global confuso, com a questão da Ucrânia, de Taiwan, questões climáticas sérias. Quando se junta perda de renda, perda de riqueza e esse ambiente global, claramente a gente vê a confiança de empresários e de consumidores caindo.

Fora isso, a partir de agora entra outra variável contra o crescimento que é o [custo do] crédito. Os juros nos EUA estão começando a chegar no nível neutro. Parou-se de dar estímulo e a atividade começa a contrair. O mesmo deve acontecer na Europa. A discussão dos economistas é saber a intensidade dessa desaceleração econômica. Está todo mundo tentando fazer a conta.

Para a economia brasileira, qual é o principal canal de transmissão?

O mais tradicional – e menos importante – é o canal do comércio exterior. Mas o canal mais importante é financeiro. Se a taxa de juros sobe muito nos EUA, isso vai bater nas Bolsas e nas moedas. O investidor, nesse contexto, fica mais cauteloso. A gente acha que os mercados emergentes tendem a ser penalizados em termos de fluxos financeiros.

Como o câmbio é afetado nesse contexto?

O câmbio tem duas histórias. Tem uma história global e outra local. A global é a seguinte: os EUA têm uma economia muito mais aquecida do que a Europa. Isso vai implicar uma alta de juros muito mais forte nos EUA do que na Europa. Portanto, deve ter um dólar mais forte no mundo. A gente já está vendo isso. A história local é que, nesse contexto global de aversão a risco, vai ter incertezas domésticas, principalmente no lado fiscal. Isso potencializa a pressão na moeda.

O que mais preocupa sobre a questão fiscal?

Um tema que está em segundo plano hoje é a dinâmica da dívida pública a partir de 2023. Esse é um tema do qual os economistas falam, mas para o qual o mercado não dá muita atenção agora. O que vai ter mais ao longo deste semestre é uma mudança de humor do investidor externo, mais atento a dúvidas fiscais locais.

Por que o mercado ainda não deu atenção a esse tema?

Os eventos globais são dominantes e há muita volatilidade externa, muita dificuldade de produzir diagnósticos, cenários. E isso acaba dominando os fluxos no mercado local. Ao mesmo tempo, até agora só houve boas notícias no Brasil. Crescimento econômico melhor, contas públicas indo bem, contas externas indo ok. O mercado vem ‘meio passando batido’ [em relação a essa questão]. Mas acho que, com essa mudança no humor global, isso tende a reverter aqui também.

Como o senhor vê essa questão do risco fiscal a partir do ano que vem?

Nós temos três preocupações. A primeira delas é a reversão do ciclo global, que leva a um menor crescimento do Brasil e à queda da inflação. Nós imaginamos que a arrecadação vá perder fôlego. A arrecadação foi muito bem nos últimos meses por uma combinação de alta de preços, como energia e combustíveis, e crescimento econômico. Isso perde força a partir de agora.

Ao mesmo tempo, temos uma taxa de juros muito elevada. O custo de carrego dessa dívida pública é muito alto. Mesmo que as coisas caminhem bem do lado da despesa, o fato de ter menos arrecadação, com a dívida cara, gera uma dinâmica de dívida complicada. Vamos precisar de seis ou sete anos para estabilizar a dívida. A trajetória é de alta independentemente de qualquer coisa.

Além disso, há um terceiro fator: existe uma pressão da sociedade por gastos, que é uma coisa natural, eu diria. Passamos os últimos sete anos controlando despesas obrigatórias e as discricionárias. Em algum momento precisa-se corrigir isso. É o caso dos reajustes de funcionários públicos e dos investimentos do governo. E tem um consenso em toda a sociedade de que os programas sociais são meritórios e necessários.

Quando se combina essa pressão por gastos com um ambiente de menor arrecadação, com juros elevados, vemos duas saídas: uma é aumento de impostos e a outra é aumento de dívida. Deve ter um pouco de tudo. Mas certamente é um ambiente mais complicado.

Por que o tema fiscal não entrou no radar do mercado?

O mercado financeiro é sábio. Ele não antecipa muito o cenário. Ele fica vendo os dados correntes. Quando começarmos a perceber dados fiscais um pouco piores, isso deve entrar no radar. Nós, que somos economistas, tentamos olhar para frente, para ver esses movimentos. A lógica indica que deve ter uma reversão do movimento de [queda da] dívida. E começa a subir a partir de 2023.

O senhor citou a inflação no Brasil. Já dá para afirmar que o pior já passou?

A desoneração de combustíveis e energia contribuiu para ter deflação em julho e agosto. Mas a gente já nota uma mudança de trajetória. Alcança um platô em abril, maio e junho. Depois começa a ceder. Tem um consenso de que a inflação vai cair. A discussão é quão rápida ela cai. Tem uma turma mais otimista, outra mais pessimista. Mas já dá para dizer que teve essa inflexão.

Está mais otimista ou pessimista?

A gente no banco está um pouco preocupado. Por um lado, há uma desaceleração econômica global e no Brasil, que ajuda na queda da inflação. Por outro lado, as cadeias globais de produção estão se regularizando, mas ainda não estão regularizadas. O segundo ponto de preocupação é com o dólar e o cenário fiscal no Brasil. A gente vê o dólar num patamar mais alto, pressionando custos.

Qual o impacto do aperto monetário na economia dos Estados Unidos?

A inflação norte-americana é a mais alta em quatro décadas. Tem uma geração inteira que não viu inflação nos EUA nesse nível. É difícil estimar qual é a reação dos bancos centrais nesse cenário. Os diretores do Fed têm dito que a taxa básica deve ficar entre 3,5% e 4%. Mas essa é uma primeira dúvida. A segunda dúvida é saber como essa puxada nos juros impacta a economia, o que também não é muito óbvio em meio a esses fatores geopolíticos e climáticos, e os confinamentos contra a covid-19 que continuam na China. Alguns acreditam que se a economia mundial estiver desacelerando, os bancos centrais não vão subir a taxa de juros. Mas a gente acha que os bancos centrais vão subir as taxas de juros mesmo com a economia desacelerando.

Por quê?

Uma das diretoras do Fed falou justamente isso, que a chance de recessão está aumentando porque o Fed vai subir os juros. O que eu acho que é correto. O banco central tem que desacelerar a atividade econômica. O objetivo dele não é manter a atividade econômica. É trazer a inflação de 8,5% para 2%. Ele vai ter que desacelerar a atividade. O banco central não vai ligar para a questão do crescimento. É um ambiente de incerteza. Mas a mensagem é que vem uma desaceleração à frente.

De quanto pode ser a alta de juros do Fed para levar a inflação à meta?

Não está claro. O que tem chamado a atenção é que todos os diretores do Fed estão falando coisas muito parecidas, que é uma taxa básica entre 3,5% e 4% (ao ano). Alguns diretores falam um pouco acima de 4%. E o Fed tem dito que a taxa neutra é entre 2% e 2,5%. Como os EUA têm um mercado de trabalho superaquecido, com as taxas de desemprego mais baixas em 70 anos, não tem muita dúvida que tem que colocar a taxa bem acima do nível neutro. Quanto é isso? 100 pontos? 200 pontos? A gente não sabe. A gente acredita que seja próximo de 4%. Isso vai implicar um encarecimento do crédito e uma reprecificação dos ativos globais. Isso não está muito no preço.

A inflação americana vai continuar dando o tom dos mercados?

Acho que sim, porque a inflação resume os demais choques que a gente está vendo na economia. As outras variáveis não têm dados muito precisos. Os preços de commodities ajudam, mas o melhor é olhar a inflação. Se a gente perceber uma queda da inflação americana um pouco mais forte, talvez trabalhe com um juros menos pressionado lá e tenha um pouco de fôlego.

De todo modo, temos um cenário econômico mais difícil à frente?

Olhar 2023 tem que ser um exercício diferente do que vimos em 2020 e 2021. Vimos uma retomada global muito forte. O Brasil surpreendendo em termos de crescimento. Foi uma dinâmica de uma recuperação muito intensa. Esse ritmo vai mudar. Os últimos 18 meses talvez não sejam uma boa referência para o que será o próximo ano. Em nenhum momento nós achamos que é uma crise. Não é nada disso. Nós achamos que é só uma moderação. Uma desaceleração cíclica. Ciclicamente subiu no pós-pandemia. Agora, por causa da inflação, o crescimento se acomoda no mundo e no Brasil. É muito mais uma acomodação do que um ambiente negativo.

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Filipe Serrano

É editor da Bloomberg Línea Brasil e jornalista especializado na cobertura de macroeconomia, negócios, internacional e tecnologia. Foi editor de economia no jornal O Estado de S. Paulo, e editor na Exame e na revista INFO, da Editora Abril. Tem pós-graduação em Relações Internacionais pela FGV-SP, e graduação em Jornalismo pela PUC-SP.