Para ser um super app em Latam, tem que ser um super app no Brasil, diz chefe da 99

Depois de anos com uma estratégia de expansão global, a chinesa Didi Chuxing decidiu colocar o foco na América Latina; e o Brasil se tornou a aposta central, com prioridade no avanço da 99Food, contou Simeng Wang em entrevista à Bloomberg Línea

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Bloomberg Línea — A Didi Chuxing, controladora da 99, está apostando todas as fichas no Brasil. Depois de anos em que priorizou uma expansão global no segmento de mobilidade urbana, a gigante chinesa de tecnologia decidiu deixar de lado a corrida internacional e concentrar seus esforços em se tornar um superapp de sucesso na América Latina.

O primeiro passo dessa mudança radical na estratégia foi o lançamento da 99Food no Brasil, um serviço de entrega de comida que chegou para enfrentar a hegemonia do iFood em um mercado dominado há muitos anos pelo rival.

Para bancar essa ambição, o grupo decidiu desembolsar inicialmente R$ 2 bilhões, com a maior parte do valor concentrada no Brasil.

O investimento robusto reflete a aposta de que o país não é apenas mais um mercado mas o coração da estratégia regional. “Para ser um super app de Latam, primeiro você tem que ser um super app no Brasil”, afirmou Simeng Wang, diretor-executivo da 99 no Brasil, em entrevista exclusiva à Bloomberg Línea.

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Segundo o executivo, a empresa opera de forma rentável em mobilidade, a sua primeira vertical de negócios, e agora quer replicar o sucesso em delivery de refeições, um setor que movimenta bilhões de reais mensalmente e visto pela 99 como um negócio com um potencial de escala muito maior.

Leia abaixo os principais pontos da entrevista com Simeng Wang, concedida no Rio de Janeiro, por ocasião do lançamento da operação na capital e em cidades da região metropolitana do estado.

Qual é a importância do mercado brasileiro para a Didi, controladora da 99?

A Didi nasceu na mobilidade e, quando começamos a nossa expansão, a ideia era estar presente globalmente. Escolhemos Latam, com Brasil e México como os primeiros lugares, e seguimos a nossa estratégia de expansão para vários outros lugares.

O que mudou? No fim do ano passado, rediscutimos a estratégia. A pergunta foi: é melhor ser um líder que tem cobertura global de mobilidade, igual o Uber, o nosso principal concorrente, ou ser um superapp em Latam, oferecendo vários serviços essenciais? A conclusão foi pela segunda opção.

Ou seja, deixamos de lado a expansão para outros países e focamos na região. Para ser um superapp em Latam, temos que ser, primeiro, um superapp no Brasil.

Como a 99Food se encaixa na nova estratégia?

Para sermos um superapp aqui, precisamos contar com o serviço de entrega de comida, que faz parte dos serviços essenciais. E o mercado de entrega de comida ainda tem muito potencial de crescer por si só. E tudo isso fez com que decidíssemos investir aqui. São altos investimentos que o grupo coloca para o lançamento da 99Food.

Como a 99 está posicionada no Brasil?

Hoje, nós somos rentáveis no serviço de mobilidade, que tem 13 anos de história. É o nosso serviço mais maduro e que já tem o seu próprio lucro. Para apoiar a operação, nós investimos em fintech [99Pay] e na 99Food.

Mas a fintech tem uma lógica muito diferente. Estamos falando de números de empréstimos, oferta de microcrédito, análise de risco e de como temos que ter uma reserva que nos permita correr eventuais riscos no futuro. A lógica de investimento é muito distinta. A entrega de comida precisa de escala no curto prazo, por isso tem que contar com esse número alto de investimentos.

A 99 tem um discurso forte de ser mais uma opção mais econômica. Há no mercado, porém, uma crítica à qualidade dos serviços, como carros mais antigos e menos conservados. Como a 99 se posiciona em relação à experiência dos produtos?

Experiência é algo crítico. Sem experiência, o preço sozinho não funciona. Hoje, são dois players principais de mobilidade e nós contamos com liderança em várias cidades, em vários modais, não somente por ser acessível. O serviço é bom o suficiente para várias camadas de consumidores em várias cidades.

Em algumas cidades nós temos dificuldade e estamos melhorando, mas hoje, sim, representamos uma economia mais acessível e mais democrática. [A qualidade do] nosso serviço não é um ponto que não olhamos, é muito essencial.

Nos nossos testes de 99Food em São Paulo e Goiânia, consumidores e restaurantes nos contam que a experiência está muito melhor que anteriormente. Tempo de entrega mais rápido, há mais acurácia na estimativa e eles conseguem acompanhar a rota de entrega melhor. Isso tudo faz parte do ecossistema de experiência.

Você mencionou que a 99 dialoga com algumas camadas da população, o que indica que nem tanto com outras. As classes A e B teriam uma relação mais negativa com a 99?

Hoje, temos dificuldade, eu posso falar, de penetrar na classe AA.

Como aproveitar essa experiência positiva de clientes com a 99Food, como comentou, e levá-la para a mobilidade?

Nós vemos no mundo atual de entrega, sem concorrência e que não é ótimo, no nosso olhar, que conseguimos oferecer uma experiência e um preço melhor. Com isso, atraímos camadas que a mobilidade em si não consegue hoje. Isso já acontece em São Paulo e em Goiânia.

Já vemos clientes com tickets médios-altos no universo de entrega de comida entrando para a mobilidade. E isso traduz exatamente a ideia de um superapp. Existem serviços essenciais complementares que consistem em atrair o usuário para usar um app só para resolver todas as coisas. Isso só vai ser cada dia mais forte com o nosso 99Food expandido pelo Brasil.

Olhando para as três verticais do negócio - mobilidade, fintech e delivery -, a fintech parece ocupar um espaço de figuração. Como a 99 pretende avançar em produtos financeiros?

Fintech, diferentemente dos outros dois, é um setor muito, muito regulado. Nós temos licenças com o Banco Central e temos demanda todas as semanas de renovar algo. A parte regulatória é muito forte porque se trata de dinheiro e tem alto risco. Somos mais cautelosos, sabemos que a gestão de risco e o compliance são essenciais e estamos seguindo passo a passo.

O outro ponto importante é que fintech não tem uma questão de escala tão crítica para nós. Mobilidade e entrega de comida, se você não têm escala e densidade, não funcionam. Em fintech, como temos os casos de uso das outras duas verticais, nós atraímos e podemos conceder crédito para os usuários. Nós não precisamos ser maiores que o Nubank ou o PicPay. Temos nossos nichos e eles já são muito bons.

A 99 chegou ao mercado com o discurso de ampliação da concorrência e de quebra da hegemonia do iFood. Recentemente, porém, a 99Food foi acionada no Cade pela chinesa Meituan, dona da Keeta, em razão de contratos de exclusividade com restaurantes. Por que optaram por esse caminho?

Primeiro, é uma prática do mercado. O Cade teve uma decisão em relação ao iFood que não diz que isso é proibido no Brasil, colocou apenas as condições para um player dominante poder operar. Nós somos novos no mercado e precisamos adotar a prática do mercado. Muitos restaurantes já estão acostumados com a oferta do iFood, com exclusividade e com algumas condições de investimento, com taxas menores.

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Como funcionou essa negociação?

Colocamos ofertas diferentes na mesa dos donos dos restaurantes: sem exclusividade; com semi-exclusividade, ou seja, você pode trabalhar ainda com o iFood, mas deixa de trabalhar em novos e eventuais entrantes; e total exclusividade. E a maioria dos nossos restaurantes escolheu a opção sem exclusividade, e outros com semi-exclusividade. E todos estão na plataforma.

É um comum acordo, a 99 não tem um poder econômico de obrigar diferentemente do player atual. Eu não tenho tamanho, estou começando. Tudo isso dentro da lei e da decisão do Cade. Tem outra questão: esses acordos têm um prazo determinado. A maioria é de dois anos, não é vitalício.

Da base da 99Food, quantos escolheram exclusividade ou semi-exclusividade?

Muito pouco, menos do que 1%.

Ainda assim, não é uma falta de coerência, uma vez que a 99 critica a hegemonia de um concorrente, o iFood, e faz uso da mesma estratégia que contribuiu para chegasse ao tamanho atual?

De novo, é uma prática comum do mercado. De novo, os restaurantes já estão acostumados. Os donos de restaurantes precisam investir e muitos deles estão em um momento de crescimento do delivery e, portanto, precisam de recursos para ampliar o balcão, a cozinha. Isso tudo demanda dinheiro. Para que consigam investir, essa prática é importante porque nós colocamos dinheiro.

Isso faz parte do mercado hoje. Para a plataforma, é importante porque, como eu falei, densidade e escala são muito críticos e, concentrando a demanda - ou talvez só dividindo com o player atual -, conseguimos rapidamente alcançar essa escala para competir com quem tem 80%, 90% do mercado. Sem isso, não vai acontecer. Mas, do outro lado, é menos de 1%. Ou seja, existem milhões de restaurantes que podem operar em outras plataformas.

Na abertura da operação no Rio de Janeiro, você disse que a taxa de retenção está alta em Goiânia e São Paulo após os usuários utilizarem cupons de desconto e que isso permite ver um futuro para a rentabilidade. Que futuro seria esse e em quanto tempo ele pode vir?

A 99Food é um trabalho de longo prazo. Para expandir no Brasil demora um ou dois anos. Para consolidar, ainda mais tempo. Graças ao grupo, que é rentável na China, e à vertical de mobilidade, também rentável, temos um apetite de investimento de longo prazo. Hoje, isso não é a maior preocupação.

A maior preocupação é como conseguir crescer o mercado. O business model do mundo de delivery já é muito estabelecido. É o quanto conseguimos realmente adicionar valor, crescer, aumentar o mercado e aprimorar a eficiência da indústria. E acreditamos que, eventualmente, teremos uma rentabilidade necessária.

Mas sabemos que mobilidade e entrega de comida são serviços com baixíssima margem e de grande escala. Estamos falando de milhões e milhões por dia, com 1% ou 2% de margem - não existe o sonho de ganhar 10% ou 20%. Não é isso, porque é um serviço democrático que beneficia todos. Eu preciso me tornar um player relevante no mercado para ser rentável.

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