Bloomberg Línea — O mercado de distribuição de gás liquefeito de petróleo (GLP), conhecido popularmente como “gás de cozinha”, pode ganhar uma nova dinâmica com o retorno da Petrobras (PETR3, PETR4) ao setor, movimento que a estatal brasileira considera atualmente.
Isso porque o segmento passaria a ter como competidor o principal fornecedor do produto, com mais de 90% da oferta doméstica, segundo especialistas ouvidos pela Bloomberg Línea.
O GLP tem um componente político extremamente relevante, uma vez que está presente na casa de brasileiros em todas as cidades do país, utilizado na cocção de alimentos. Rotineiramente, governos discutem subsídios e programas voltados para a população de baixa renda ter acesso mais facilitado ao produto.
No início deste mês, a Petrobras anunciou o plano de voltar ao segmento de distribuição, embora a CEO da estatal, Magda Chambriard, tenha afirmado que por ora não há “nada em vista” em termos de negociações.
A companhia deixou de atuar na distribuição de GLP durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em meio à política de venda de ativos “não core” (não relacionados à atividade principal da companhia, de exploração & produção de óleo e gás). A Petrobras vendeu a Liquigás, em 2020, para um consórcio de empresas.
Hoje, Ultragaz, do Grupo Ultra (UGPA3), Copa Energia, Supergasbras e Nacional Gás concentram 90% da distribuição, sendo que a maior fatia do mercado está nas mãos da Copa Energia, que tem cerca de 25% do total.
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Segundo o diretor sênior da A&M Infra, Rivaldo Moreira Neto, o GLP tem origem de duas fontes no Brasil: refinarias de petróleo e campos do pré-sal. Em ambas, o domínio absoluto é da Petrobras.
“Com o avanço da produção do pré-sal, esse petróleo trouxe um gás muito rico, que vem com outros subprodutos”, diz o executivo.
No caso dos campos do pré-sal, a trajetória acontece da seguinte forma: o petróleo é extraído da plataforma e levado por gasodutos até uma Unidade de Processamento de Gás Natural (UPGN). Lá, o metano (gás natural) é levado para as distribuidoras, como a Comgas (CGAS5), por exemplo.
Ainda nessas unidades, outros dois produtos relevantes, o propano e o butano, são combinados e formam o GLP, o mesmo que sai das refinarias de petróleo.
Apesar dos avanços recentes da produção na camada pré-sal, o Brasil não é autossuficiente em GLP. Segundo Moreira, cerca de 20% do consumo doméstico vem da importação, que também é dominada pela Petrobras.
“Naturalmente quem domina a produção vai ter poder na importação, porque quem define o preço de atacado no país é a Petrobras, que tem um market share muito relevante. É difícil para uma empresa privada tentar importar o produto e competir com ela”, avalia.
De acordo com levantamento da consultoria britânica Argus, o consumo residencial representa cerca de 68% da demanda total de GLP no país, que hoje é de 7,6 milhões de toneladas por ano. Mensalmente, são vendidos aproximadamente 35 milhões de botijões de 13 quilos no país, principalmente para cocção.
Em 2024, as vendas de GLP envasado para uso residencial somaram 4,47 milhões de toneladas, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Ainda de acordo com a Argus, o GLP representa cerca de 21% da matriz energética residencial do país, com a lenha respondendo por mais de 25% do total, especialmente em áreas rurais de baixa renda.
Chambriard ressaltou que a Petrobras quer ampliar as áreas de atuação, com projetos que sejam “rentáveis” e tenham atratividade. “Somos uma empresa que nasceu integrada. A Petrobras tem 71 anos e se tornou o que é porque justamente era uma empresa do poço ao posto”, disse a executiva a investidores no último dia 8.
Na ocasião, o diretor de logística, comercialização e mercados, Claudio Schlosser, afirmou que a empresa já vem atuando no sentido de ser “a melhor opção para o cliente final”. “Nós vamos ter um aumento da produção de GLP. [A distribuição] é a forma [de negócio] mais rentável para a Petrobras”, afirmou.
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Para Moreira Neto, da A&M Infra, o tema das margens é complexo, principalmente para a Petrobras, que tem como principal negócio a exploração e produção de petróleo, que demanda recursos vultosos.
Em paralelo, ele observa que o consumo de GLP é basicamente estável, podendo cair em cidades onde o gás natural (encanado) avança.
“A distribuição de GLP é um negócio que não cresce e, teoricamente, entrega um retorno percebido de capital investido menor em comparação à atividade principal da Petrobras”, avalia o especialista.
Ele acrescenta que o principal custo das distribuidoras é a compra da molécula. “O principal driver de custo e até do preço ao consumidor final está muito ancorado no que a Petrobras define.” Neste sentido, Moreira explica que a empresa que domina a originação do GLP passaria a competir também na distribuição.
“Se a Petrobras vai vender para os seus competidores, como garantir isonomia às transações?”, indaga o executivo. “O incentivo é muito baixo para [a estatal] facilitar a vida de seus concorrentes.”
Em sua avaliação, caso a Petrobras volte de fato ao negócio de distribuição de GLP, é provável que a discussão deva chegar ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
“As condições de competição serão questionadas pelos players, principalmente porque este não é um mercado regulado, em que a ANP define tarifas. A grande questão é como garantir práticas justas”, diz Moreira.
Histórico de preocupações
A preocupação do mercado é fundamentada, em parte, por um caso ocorrido em 2023.
A Acelen, braço de energia do Mubadala (fundo soberano de Abu Dhabi), recorreu ao Cade para pedir medida preventiva para que a Petrobras oferecesse as mesmas condições de compra de petróleo que aquelas ofertadas para suas próprias refinarias, em meio a acusações de “abuso de poder dominante” nas transações referentes à refinaria Mataripe, na Bahia, comprada pelo fundo soberano em 2021, durante processo de desinvestimentos da estatal.
Posteriormente, a própria Petrobras informou ao mercado ter recebido proposta do Mubadala para “parceria estratégica em refino e biorrefino, o que incluía uma eventual venda de participação acionária na refinaria de Mataripe”. Em declarações posteriores, Chambriard afirmou que essa não era uma “prioridade” da companhia.
Para a especialista em gás natural da Argus, Betina Moura, a possível volta da Petrobras ao segmento de distribuição de GLP pode alterar significativamente a dinâmica competitiva do setor.
Em sua avaliação, caso o objetivo da estatal seja ampliar o acesso da população ao produto e reduzir custos, isso pode, sim, levar à queda do preço final ao consumidor.
No entanto, ela alerta que o movimento é observado com reservas por agentes do mercado, que consideram que a decisão pode estar mais alinhada à agenda do governo, dado o peso do GLP no cotidiano das famílias brasileiras.
“Como a Petrobras já detém uma fatia majoritária do suprimento, será importante acompanhar os efeitos dessa decisão sobre a concorrência em um mercado já bastante concentrado”, diz a especialista.
Moreira Neto, da A&M Infra, lembra que o governo prepara o lançamento do programa “Gás para Todos”, em substituição ao Auxílio Gás (também conhecido como Vale Gás). A promessa é que até 17 milhões de famílias em situação de vulnerabilidade recebam o valor de um botijão de 13 kg.
“Ano que vem temos eleições e a pauta da volta da Petrobras à distribuição de GLP carrega bastante da proposta do governo de ter uma empresa pública para alavancar esse tipo de política. Mas certamente isso deve levantar questionamentos no Cade por conta do conflito imediato com as empresas que compram GLP da Petrobras”, avalia o executivo.
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