Falta de ‘tempero latino’ ressoa no sorteio para a Copa do Mundo de 2026

Sem ídolos do esporte ou artistas mexicanos no palco montado pela FIFA, a cerimônia em Washington DC mostrou falta de isonomia entre as culturas dos países-sede do Mundial; autoridades do país prometem uma Copa com sabor local

Jurgen Mainka, Chief Tournament Officer  para o México da Copa do Mundo de 2026, em evento organizado pelo governo do país e pelas cidades-sede mexicanas em Washington DC em 5 de dezembro de 2025 (Foto: Divulgação)
Por Alexandre Salvador
06 de Dezembro, 2025 | 04:22 PM

Bloomberg Línea, de Washington DC — Nos corredores do Kennedy Center, em Washington DC, havia um sentimento em comum a muitos dos presentes após o sorteio dos grupos para a Copa do Mundo da FIFA 2026 nesta sexta-feira (5): faltou tempero latino à festa.

Para um torneio com uma nação latino-americana como co-anfitriã, o México, sem contar a relevante e crescente população latina de forma quase transversal nos Estados Unidos, o evento remeteu mais a uma apresentação do movimento conhecido como “Make America Great Again”, do presidente Donald Trump.

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A cerimônia foi vista, por muitos observadores, como uma extensão de um comício político de Trump - o que ajudaria a explicar a cobertura “tímida” da imprensa local: neste sábado (6), jornais de relevância e prestígio como o New York Times e o Washington Post dedicaram notas de rodapé em sua primeira página e reportagens críticas ao que consideraram excesso de política no evento.

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O sorteio culminou com um tributo ao convidado mais homenageado da festa preparada pela FIFA, com os acordes de YMCA do Village People, o hino não oficial que acompanhou Trump durante sua campanha eleitoral de 2024.

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A estética, o ritmo e os protagonistas gritavam “USA”, o que deixou para a delegação mexicana a tarefa de lembrar ao mundo que parte fundamental da alma do torneio reside ao sul do Rio Grande (ou ao norte do Rio Bravo para os mexicanos).

A divulgação do calendário completo neste sábado (6), com os jogos e as respectivas cidades, reforçou o sentimento, na medida em que, a despeito do número recorde de 36 jogos de seleções cabeças-de-chave na primeira fase, cidades mexicanas vão abrigar apenas uma partida - Uruguai x Espanha, em Guadalajara -, isso sem contar, obviamente, os jogos dos anfitriões e os de EUA e Canadá em seus respectivos territórios.

WASHINGTON, DC - DECEMBER 05: Draw assistants Tom Brady, Wayne Gretzky, Shaquille O’Neal and Aaron Judge react with the FIFA World Cup Trophy during the FIFA World Cup 2026 Official Draw at John F. Kennedy Center for the Performing Arts on December 05, 2025 in Washington, DC. (Photo by Michael Regan - FIFA/FIFA via Getty Images)

O sentimento de desconexão cultural foi resumido por Pablo Lemus Navarro, governador do Estado de Jalisco, lar de uma das capitais futebolísticas mais importantes do continente: Guadalajara.

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Em entrevista à Bloomberg Línea após o sorteio, em evento no Mexican Cultural Institute, em Washington DC, o governador expressou sua avaliação sobre o evento.

“A quem organizou o sorteio, digo respeitosamente que faltou um mexicano”, disse Lemus. Para o governante estadual, a ausência de ícones globais do México teria sido um erro de cálculo na narrativa do evento.

“Onde estava o [boxeador mexicano] ‘Canelo’ Álvarez? Onde estava [o piloto de Fórmula 1) ‘Checo’ Pérez abrindo alguma das bolinhas? Ou na música, alguém como Alejandro Fernández”, questionou Lemus.

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Os atletas escolhidos para sortear as bolinhas nos potes da Fifa foram todos americanos ou canadenses: o ex-quarterback da NFL Tom Brady, a lenda da NBA Shaquille O’Neal, o jogador de beisebol Aaron Judge, do New York Yankees, e o canadense Wayne Gretsky, considerado o Pelé do hóquei sobre o gelo.

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Além disso, o evento não teve um grande artista mexicano se apresentando nos segmentos musicais da festa de sexta.

Por outro lado, Lemus reconheceu o valor diplomático do dia, ao destacar a imagem de unidade projetada pela presidente do México, Claudia Sheinbaum, ao lado de Donald Trump e do primeiro-ministro do Canadá, Mark Carney.

“É uma imagem que projeta unidade, trabalho conjunto e que somos povos irmãos”, disse Lemus, que enfatizou: embora o protocolo tenha sido, a rigor, correto, “os gritos do México ganharam” na sala de concertos do John F. Kennedy Center for the Performing Arts, o local do sorteio dos grupos do Mundial de 2026.

Contraofensiva: infraestrutura e sabor local

Depois de um sorteio predominante no “american way”, os líderes das três sedes mexicanas (Cidade do México, Guadalajara e Monterrey) apresentaram seu catálogo de atrações prometidas para garantir que, quando a bola rolar a partir de junho de 2026, a experiência seja inconfundivelmente mexicana.

A apresentação do país como destino para turistas de todo o mundo se deu inicialmente em um evento batizado como Fiesta de Mexico, realizado logo após a cerimônia organizada pela Fifa, a poucos quilômetros de distância.

Samuel García, governador de Nuevo León, região que abriga a cidade-sede de Monterrey, chegou com um discurso focado na modernidade e na infraestrutura, sem perder o toque “norteño”.

García ressaltou a construção das linhas de metrô mais longas do continente, projetadas para conectar o aeroporto diretamente com a FIFA Fan Fest e o Estádio BBVA, conhecido como El Gigante de Acero.

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“Estamos construindo a Torre Rise, que será a mais alta da América Latina”, afirmou García, delineando uma Monterrey cosmopolita pronta para receber seleções como Japão e Tunísia, do Grupo F, como veio a se confirmar depois.

O governador não perdeu a oportunidade para o humor gastronômico, prometendo uma fusão cultural única para os visitantes asiáticos: “Teremos o Japão: sushi com chicharrón de la Ramos e chiles toreados na soja para apimentar", brincou, garantindo que o ambiente no estádio será incomparável.

Por sua vez, Jalisco aposta na tradição e na magnitude turística.

Pablo Lemus destacou que seu estado não oferecerá apenas futebol mas uma experiência integral que abrange desde a modernidade de Guadalajara até a tradição de seus “Pueblos Mágicos” como Tequila e a ribeira de Chapala.

Com uma expectativa de receber 2,5 milhões de visitantes durante os 39 dias do evento, Jalisco se prepara para ser um epicentro da festa.

“Somos o único país de todo o planeta que vai para uma terceira Copa do Mundo [como sede]”, lembrou uma representante de turismo, sublinhando que para o México isso não é apenas um negócio mas uma questão de legado histórico.

Cidade do México: festa mais inclusiva

Em meio às críticas pela “americanização” do protocolo da FIFA, a Cidade do México “levantou a mão” com o discurso da autenticidade do torneio.

Em entrevista concedida à Bloomberg Línea, Alejandra Frausto, secretária de Turismo da Cidade do México, respondeu diretamente à alegada preocupação sobre a falta de representação latina no sorteio.

“Em 188 dias, esperamos vocês na Cidade do México e viverão a festa mais mexicana de todas”, disse a autoridade que lidera os esforços turísticos da capital mexicana com vistas para a Copa do Mundo.

Frausto desconsiderou o que seria a frieza do evento em Washington DC e prometeu uma atmosfera radicalmente distinta: “Hoje estamos aqui com tacos al pastor, com mariachi, com sonidero, com o ambiente mexicano", disse, em contraste do ambiente corporativo da FIFA com o calor cultural da capital.

Alejandra Frausto, secretária de Turismo da Cidade do México, no palco (à direita) em evento organizado em Washington DC pelo governo do país e das cidades-sede mexicanas para a Copa do Mundo de 2026 em 5 de dezembro de 2025 (Foto: Andres Grau/CDMX/Divulgação)

A autoridade destacou um dado histórico e político chave: a presença de Claudia Sheinbaum.

“Nos sentimos muito representados com ela, a primeira mulher presidenta da nossa história”, afirmou a secretária de Turismo da Cidade do México, que acrescentou que a mandatária possui o conhecimento necessário para conduzir o país durante um evento dessa magnitude.

A capital do país se posiciona não só como sede esportiva mas como uma potência turística capaz de absorver a demanda global.

Segundo ela, com 1.200 voos diários e uma oferta de 62.000 quartos de hotel (e mais de 60 restaurantes com o selo estrelado Michelin), a Cidade do México se prepara para ser um relevante hub logístico da Copa.

“Somos a cidade com mais museus, o primeiro destino urbano para turismo LGBT+”, acrescentou Frausto, lembrando que a cidade tem a capacidade de converter o Mundial em um festival massivo com 30 eventos de futebol gratuitos.

‘A bola volta para casa’

A mensagem da delegação mexicana foi uníssona: o dinheiro e os estádios gigantes podem estar no norte, mas a paixão reside no sul.

Como mencionado em discursos oficiais da delegação, o México apela a uma história que precede a FIFA por milênios. “Há mais de 3.000 anos, no México havia um fogo sagrado: o jogo de bola”, lembrou uma das representantes da Cidade do México.

A narrativa para os próximos meses está clara.

Enquanto os Estados Unidos oferecem eficiência e espetáculo ao estilo Super Bowl, a final da NFL (National Football League) o México promete o soft power de sua cultura, sua gastronomia e sua história.

Como concluiu a delegação da capital mexicana: em 2026, não apenas se joga futebol; “a bola volta para casa”, uma menção ao jogo de bola mesoamericano criado pelo povo olmeca há mais de 3.400 anos.