Bloomberg Línea — Uma cena da posse de Donald Trump para seu segundo mandato na Presidência dos Estados Unidos, em 20 de janeiro, chamou a atenção da jurista e pesquisadora alemã Katharina Pistor, professora de Direito da Universidade Columbia.
Na primeira fila do evento que inaugurou o novo governo, quem estava presente com destaque não eram políticos aliados republicanos e familiares que normalmente ocupam o espaço, mas CEOs e empresários - especificamente os que lideram big techs, de Elon Musk e Mark Zuckerberg a Jeff Bezos e Sundar Pichai.
A cena foi sintomática do que a jurista e pesquisadora chama de “Novo Consenso de Washington: em que governos passam a ser dominados por dentro por grandes empresas e a se preocupar especialmente com elas, disse a professora da Escola de Direito de Columbia em Nova York em um artigo recente.
“O Consenso de Washington dos anos 1980 e 1990 era um movimento crítico ao Estado que argumentava que os mercados poderiam fazer tudo melhor do que qualquer governo”, disse Pistor em seu resumo sobre o conjunto de políticas econômicas que pretendiam resolver crises e colocar países, em especial emergentes, na rota do crescimento sustentado.
“O consenso levou a uma série de privatizações e à liberalização das relações comerciais e, eventualmente, dos fluxos de capital. O Novo Consenso de Washington é diferente. O Estado é forte, mas é controlado por empresas privadas”, afirmou Pistor em entrevista à Bloomberg Línea.
Pistor atribuiu a mudança a uma confluência de fatores, incluindo o fortalecimento gradual do poder presidencial nos Estados Unidos e em outros países, bem como o que chamou de “abraço neoliberal de idealizar corporações e CEOs”.
A professora, especialista em Direito Societário, Empresarial e das Operações, Direito Internacional e Comparado, é autora de nove livros: um dos mais recentes, “The Code of Capital: How the Law Creates Wealth and Inequality”, foi eleito um dos melhores de 2019 pelo Financial Times e a Business Insider.
Leia mais: ‘Acordo de Mar-a-Lago’? Por que Wall St debate possível novo Bretton Woods com Trump
Juntos, segundo Pistor, grandes empresas e CEOs poderosos levaram a uma concentração significativa de poder privado, particularmente no setor de tecnologia. O desmantelamento da capacidade da aplicação das leis antitruste, argumentou, permitiu que essas corporações acumulassem poder desenfreado.
Essa consolidação de poder, Pistor alegou, seria semelhante a uma oligarquia, um termo que o próprio ex-presidente Joe Biden usou em discurso pouco antes de deixar o poder “Acho que é muito semelhante”, disse, ao reconhecer o paralelo entre sua análise e as preocupações de Biden.
Segundo ela, o novo governo Trump implementa esse tipo de mudança de poder em que empresas não apenas influenciam governos mas assumem ativamente suas funções centrais.
Corporações privadas, especialmente nos setores financeiro e tecnológico, acumularam um poder sem precedentes, o que ameaçaria a governança democrática, disse.
“Quando falo sobre um ‘Novo Consenso de Washington’, digo basicamente que os negócios governam o Estado”, alertou. “E a extensão em que isso está se tornando verdade desde a posse de Trump é muito maior do que eu imaginava.”
Apesar de ver a influência de empresas de forma ampla, como no dia da posse, o exemplo mais marcante apontado por Pistor foi o crescente poder de Elon Musk sobre operações centrais do governo dos EUA, especialmente em comunicações, exploração do espaço e inteligência artificial.
Leia mais: O CEO de Wall St que pretende desmontar o estado e cortar gastos no governo Trump
O homem mais rico comandou por pouco mais de quatro meses o Departamento de Eficiência Governamental (Doge), o que lhe conferiu acesso a dados estratégicos do Estado americano e poder sobre a máquina pública.
“Observar Musk e sua equipe assumirem operações centrais do governo americano aconteceu muito mais rápido e foi muito mais fundo no cerne do governo do que eu havia antecipado”, disse Pistor, que concedeu a entrevista antes da recente saída de Musk do governo.
CEO Trump e riscos à democracia
Pistor disse admitir que sua visão expressa uma “visão sombria sobre os EUA”, temendo que o regime atual esteja em certos casos operando fora dos limites da Constituição.
A jurista disse que o processo em curso reflete uma tensão de longa data entre democracia e poder corporativo. Para ela, as grandes corporações sempre foram administradas como autocracias.
“Você basicamente tem um único líder no comando”, disse. “E Trump repete esse mantra de querer ser um governante forte e centralizado. Sempre toleramos esse tipo de mentalidade e práticas organizacionais nas empresas — e agora elas estão sendo incorporadas até mesmo pelos governos que deveriam ser democráticos”, apontou.
A erosão da democracia, segundo Pistor, não é apenas resultado de uma administração mas a culminação de décadas de expansão do poder presidencial.
Leia também: Como Trump pode mudar a ordem mundial, segundo seu economista de confiança
“Isso não começou ontem. Nem começou apenas com Trump”, explicou.
“Uma das coisas que vimos na democracia americana, tolerada e às vezes endossada por acadêmicos do direito, foi o fortalecimento do poder presidencial. Todo presidente desde Reagan assumiu mais poder para governar por decreto.”
Isso, disse, levou a uma crescente centralização do poder no Executivo, muitas vezes justificada pelo impasse político no Congresso americano.
A Suprema Corte americana, acrescentou, também desempenhou um papel fundamental na legitimação dessa concentração de poder.
“Temos agora uma Suprema Corte que endossa esse modelo, que acredita que deveria haver um Executivo poderoso basicamente governando o país”, observou.
Mudança global
A professora de direito alegou ainda que a tendência não é apenas um problema dos EUA mas um fenômeno global com sérias consequências geopolíticas.
Questionada sobre a América Latina, por exemplo, onde o Consenso de Washington original teve um impacto profundo, ela destacou o potencial para uma dinâmica semelhante.
“Trump está criando um sistema global com menos interdependência, e isso deveria, em teoria, devolver mais poder a diferentes países. Mas terá um preço”, alertou.
Leia mais: Brasil foi exemplo global na luta contra abusos de big techs, diz pesquisadora
“Significa desmantelar um sistema global de comércio e talvez também um sistema financeiro, o que trará dificuldades econômicas”, disse.
Ao mesmo tempo, ela observou que as corporações americanas têm empurrado agressivamente sua influência para o exterior, incluindo o Brasil e a Argentina.
“Trump apoiará empresas americanas que vão ou estão no exterior e conquistam poder em outros países. Haverá pessoas em outros países que tentarão imitar isso e usar o modelo dos EUA para legitimá-lo”, disse.
Como exemplo do que deveria ser a reação dos países, Pistor citou a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) contra Musk no caso da tentativa do X de descumprir uma decisão do ministro Alexandre de Moraes - e, por tabela, da instância máxima da Justiça de um país.
“O ministro foi o último juiz que realmente disse a Musk: ‘Você não pode fazer isso.’ E mostra que, em princípio, o Estado ainda é soberano.”
Leia mais: Musk diz que EUA deveriam sair da Otan e parar de pagar pela defesa da Europa
A questão, disse ela, é saber se os Estados reafirmarão sua soberania ou permitirão que o poder corporativo siga sem controle.
“Se o Estado ainda é o soberano, ele estabelece as regras sob as quais as empresas podem operar dentro desse Estado. E essa ideia precisa ser reforçada, se o objetivo for proteger suas democracias.”
O perigo, alertou, é que o novo Consenso de Washington imponha seu modelo econômico e político sobre outras nações, seja o Brasil ou mesmo na Europa.
“A questão é: vocês têm a resistência, a vontade política, o apoio do povo para dizer: ‘Vamos fechar a Meta ou o Facebook em nosso país se eles fizerem isso’?”
“A Europa tem a capacidade tecnológica, assim como muitos outros países, para desenvolver plataformas alternativas”, argumentou.
“O apoio político para isso precisa ser conquistado, o que não é fácil. Mas a primeira linha de defesa é dizer: ‘Vocês estão violando nossos princípios fundamentais, e não permitiremos isso.‘”
Para Pistor, a questão é sobre se a sociedade pode se mobilizar contra essa nova ordem antes que seja tarde demais.
“Toleramos autocracias na forma de empresas por séculos”, disse. “Isso criou a base para essas autocracias desmantelarem a democracia.”
Ela disse acreditar que o caminho a seguir não é apenas político mas econômico: “Precisamos pensar em como controlar o poder econômico.”
A esperança, segundo ela, está no que chama de “vulnerabilidade” das empresas de tecnologia.
“Ninguém precisa estar no Twitter. Ninguém precisa estar no Facebook”, observou.
“Eles vivem dos nossos dados. Podemos retirar esses dados, se conseguirmos superar esse vício.” Se as pessoas reconhecerem o poder que possuem, sugeriu, talvez possam reagir contra a captura corporativa da democracia.
Leia também
Como um ex-discípulo de Soros convenceu republicanos para liderar a economia de Trump