Os Brics têm um desafio de agenda única. Trump deu um ‘empurrão’ com suas tarifas

Bloco era visto como uma alternativa à ordem mundial liderada pelos EUA, mas agora se projeta como defensor dos valores ocidentais como o livre comércio e o multilateralismo

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Bloomberg — Desde que os Brics foram criados, há mais de uma década, o grupo de nações de mercados emergentes tem se esforçado para identificar um objetivo comum. As tarifas do presidente Donald Trump podem ter resolvido esse problema.

Espera-se que os líderes dos Brics, reunidos no Rio de Janeiro neste fim de semana para uma cúpula organizada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assinem uma declaração conjunta condenando “o aumento de medidas protecionistas unilaterais injustificadas” e o “aumento indiscriminado” de tarifas.

Foi isso que os ministros das relações exteriores do bloco, que leva o nome dos membros mais antigos, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, concordaram em abril, e várias autoridades disseram que o texto permaneceria no comunicado.

É improvável que a linguagem conclusiva cite diretamente os EUA. Mas o grupo está enviando um sinal inequívoco para o governo Trump às vésperas do prazo de 9 de julho para que suas taxas entrem em vigor.

Todos os membros dos Brics concordam que “essas tarifas não são produtivas”, disse em uma entrevista o embaixador Xolisa Mabhongo, principal negociador da África do Sul, ou sherpa. “Elas não são boas para a economia mundial. Não são boas para o desenvolvimento.”

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Força geopolítica

Enquanto Trump afasta aliados tradicionais e segue sua agenda America First, os Brics estão buscando ocupar o terreno que o líder dos EUA cedeu.

O resultado é que o grupo que há muito tempo se presumia estar forjando uma alternativa à ordem mundial liderada pelos EUA agora está se projetando como defensor desses mesmos valores fundamentais, incluindo o livre comércio e o multilateralismo.

A China trabalhará com os Estados membros para “fortalecer a parceria estratégica dos Brics e salvaguardar o multilateralismo”, disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Mao Ning, em uma reunião em Pequim na quarta-feira.

Mesmo com Trump fornecendo alguns elementos de unidade de propósito, é provável que o grupo Brics ainda fique muito aquém de exercer a influência global que seus membros há muito buscam.

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O presidente chinês Xi Jinping, que realizou uma visita de Estado a Brasília em novembro e deverá participar da cúpula climática COP30 no Brasil no final deste ano, não participará da reunião dos Brics. Vladimir Putin, da Rússia, ficará ausente para evitar colocar o governo brasileiro na incômoda posição de ter que prender um presidente procurado por crimes de guerra na Ucrânia.

Fundado em 2009, o grupo Brics original há muito tempo sofre com a falta de valores compartilhados entre os membros, que têm pouco em comum além de sua condição de grandes economias emergentes que queriam ter voz nos assuntos globais dominados por Washington e pelo Ocidente.

Sua rápida expansão para incluir o Egito, a Etiópia, o Irã, a Indonésia e os Emirados Árabes Unidos reforçou sua representação - o novo Brics representa cerca de 40% do PIB global e aproximadamente metade da população do planeta - mas ameaça torná-lo ainda menos coerente.

O que diz a Bloomberg Economics: O grupo é mantido unido principalmente por um sentimento compartilhado de que os mercados emergentes devem ter uma voz mais alta na ordem global e um desejo de construir um mundo multipolar. Entretanto, na ausência de uma agenda compartilhada mais clara, a gravidade geopolítica do grupo provavelmente continuará a aumentar apenas gradualmente, de acordo com seu peso econômico ou, possivelmente, com sua expansão futura. - Jimena Zuniga, analista de geoeconomia da América Latina

Notavelmente, o bloco está dividido quanto às referências à guerra, com a Rússia e a China contra qualquer menção significativa, de acordo com várias delegações. O Egito está pressionando por uma menção à paz e à segurança no Oriente Médio, o que significa principalmente resolver a guerra em sua fronteira em Gaza, de acordo com uma pessoa familiarizada com o assunto.

A agressão de Trump oferece ao bloco uma espécie de dilema. Embora sua pressão tarifária lhe dê um grau de determinação compartilhada, alguns membros desejam manter relações equilibradas com os EUA e a China.

Paradoxalmente, a ameaça de Trump de impor taxas de 100% ao bloco se ele abandonar o dólar no comércio bilateral estimulou o interesse no desenvolvimento de sistemas de pagamento locais e outros instrumentos que podem facilitar o comércio e o investimento entre as nações. A ideia de abandonar o dólar não está sendo discutida, de acordo com as autoridades brasileiras.

O comércio entre as cinco nações originais dos Brics cresceu 40% entre 2021 e 2024, chegando a US$ 740 bilhões por ano, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional.

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O governo Lula está otimista de que os líderes farão progressos em alternativas coletivas, em parte porque as ameaças comerciais de Trump deram aos países incentivos para forjar consenso e novas parcerias, de acordo com duas autoridades brasileiras familiarizadas com as discussões.

O grupo Brics também está discutindo mecanismos para impulsionar o financiamento climático entre os membros pela primeira vez, disseram as autoridades, uma questão que assumiu maior importância depois que Trump retirou os EUA do Acordo de Paris.

A China continua a se envolver com outras nações do Brics sobre o clima, também como uma forma de mostrar que é um aliado mais amigável e confiável do que os EUA. Juntamente com a Indonésia, Pequim manteve discussões com o Brasil sobre a agenda da cúpula climática anual da ONU.

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Por sua vez, a Índia não vê grandes obstáculos para uma declaração conjunta da cúpula, de acordo com um funcionário do governo familiarizado com os preparativos, que pediu para não ser identificado, discutindo a diplomacia em andamento.

O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, fará uma visita de Estado ao Brasil após o término do encontro no Rio. Lula também dará as boas-vindas ao presidente da Indonésia, Prabowo Subianto, e ao presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em um desfile consecutivo.

No entanto, as divisões entre os membros dos Brics- e especialmente entre a velha guarda e os recém-chegados - ainda podem vir à tona. O Egito e a Etiópia se recusaram a apoiar a África do Sul para obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, algo que havia sido um dos poucos temas unificadores do bloco.

Há também tensões latentes entre as duas maiores economias do grupo. A China e a Índia disputam a liderança dos Brics e do Sul Global como um todo. Modi vai reivindicar sua liderança quando assumir a presidência dos Brics em 2026, apenas três anos depois de Xi ter faltado à cúpula do G-20 da Índia.

Em um momento em que os Brics estão tentando provar que são mais do que apenas um acrônimo cativante, outra falta de Xi não seria uma boa ideia.

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