Big techs estão tomando o poder. E os EUA de Trump aceleram isso, diz pesquisadora

Empresas de tecnologia enfraquecem instituições democráticas e assumem funções de governos, a exemplo do que fez Musk na Casa Branca, diz Marietje Schaake, ex-membro do Parlamento Europeu e hoje em Stanford, em entrevista à Bloomberg Línea

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Bloomberg Línea — A concepção de golpe de Estado no mundo contemporâneo mudou.

A ciência política tem se desdobrado nos últimos anos para analisar como as democracias morrem e tem apontado que não é mais necessário colocar tanques na rua para tomar o poder. Para a ex-membro do Parlamento Europeu Marietje Schaake, entretanto, o verdadeiro risco ao Estado democrático de direito não vem apenas de políticos autoritários mas, sim, de empresas de tecnologia.

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“Essas empresas não estão mais apenas fornecendo serviços; elas estão assumindo papéis tradicionalmente exercidos pelos Estados-nação”, disse Schaake em entrevista à Bloomberg Línea.

Para ela, as big techs estão minando as instituições democráticas enquanto se comportam cada vez mais como Estados que não assumem responsabilidades.

E o principal exemplo recente disso é a força geopolítica de Elon Musk, que fez parte do alto escalão do governo americano de Donald Trump, período em que participou de decisões-chave da política do país e exerceu influência até mesmo sobre as decisões relativas às relações dos EUA com o resto do mundo.

Essa análise é apresentada de forma detalhada no livro The Tech Coup: How to Save Democracy from Silicon Valley, lançado no final de 2024.

A obra explora como o poder crescente das empresas de tecnologia impacta a democracia, analisa desde o uso de plataformas digitais em protestos até a proliferação de spyware e a influência de empresas em eleições.

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Schaake, que é holandesa, examina o que apontou como falta de regulação eficaz e as tentativas de autorregulação, destacou os riscos para a soberania democrática e os direitos dos cidadãos em áreas como privacidade e segurança.

O livro também aborda a geopolítica da tecnologia, a crescente dependência de infraestruturas digitais críticas e a necessidade de colaboração internacional para fortalecer os princípios democráticos na era digital. E propõe a criação de uma infraestrutura digital pública e uma revisão das políticas tecnológicas.

Atual pesquisadora de política internacional no Centro de Política Cibernética da Universidade Stanford, um berço de líderes tech e referência dessa indústria, Schaake avaliou na entrevista a seguir como as big techs estão remodelando a política global a partir da aliança - agora desfeita - entre Donald Trump e Elon Musk, que acelera o que ela chama de processo de destruição da democracia.

Seu livro, The Tech Coup, foi publicado no fim de 2024. Dado o rápido ritmo dos acontecimentos, especialmente com o retorno de Donald Trump ao poder nos EUA e seu alinhamento com figuras como Elon Musk, como sua análise evoluiu desde então?

É impressionante a rapidez com que a situação se intensificou. Embora a maior consolidação de poder pelos líderes de tecnologia parecesse inevitável, a maneira precisa como se desenrola é profundamente preocupante. Estamos testemunhando uma sinergia sem precedentes entre o poder político e estatal e a influência dos líderes de tecnologia.

O apoio aberto desses líderes a uma figura controversa como Trump representa uma aposta significativa.

O termo “golpe”, que alguns inicialmente acharam forte, agora parece cada vez mais inadequado para descrever a trajetória atual nos Estados Unidos. Não é apenas uma mudança na agenda política; é um potencial desmantelamento de instituições, um desrespeito ao Estado de direito e um afastamento dos princípios fundamentais que os EUA historicamente defenderam, independentemente da liderança política.

Estes são tempos dramáticos e ameaçadores, que sublinham a necessidade urgente de supervisão democrática sobre esses oligarcas da tecnologia.

Infelizmente, a própria nação com imenso poder tecnológico e político parece abdicar de sua responsabilidade, inclinando-se para a desregulamentação em um momento em que o oposto é crucial.

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A professora Katharina Pistor, da Universidade Columbia, fala de um “novo consenso de Washington” em que as empresas estão profundamente enraizadas no governo. Como a influência das big techs nesse sentido difere da de outras indústrias poderosas historicamente?

A diferença fundamental reside no impacto do poder das big techs. Essas empresas não estão mais apenas fornecendo serviços; estão assumindo papéis tradicionalmente exercidos pelos Estados-nação. Elas constroem, escaneiam, protegem e operam infraestruturas críticas. Elas se tornaram atores geopolíticos por direito próprio, como vimos com as decisões da Maxar em relação à Ucrânia ou o controle de Elon Musk sobre a Starlink.

Além disso, o volume e a sensibilidade dos dados aos quais essas empresas têm acesso são incomparáveis. O exemplo da Palantir terceirizando a análise de dados governamentais ou Elon Musk obtendo acesso privilegiado a informações governamentais confidenciais por meio de seu DOGE destaca isso.

Esse nível de acesso a dados e potencial uso indevido para fins como treinamento de modelos de IA diferencia as big techs de setores de lobby tradicionais como energia ou farmacêuticas.

A que tipo de diferença se refere?

Embora essas indústrias sem dúvida tenham exercido influência significativa, seu produto e impacto são diferentes. A tecnologia não é mais apenas um produto; é uma camada abrangente que impacta todas as facetas de nossas vidas – segurança nacional, saúde pública, debate democrático, eleições e muito mais.

Diferentemente das empresas de energia, que normalmente exigem aprovação governamental para grandes operações, as empresas de tecnologia podem inovar e implantar novas tecnologias, como a IA generativa, sem qualquer licenciamento prévio ou avaliação de interesse público.

Essa “inovação sem pre-autorização”, embora outrora celebrada, levou a uma situação em que a sociedade está sujeita a experimentos ao vivo com riscos potencialmente profundos e não avaliados.

O forte contraste entre a mudança da UE em direção à regulamentação da IA e a postura desregulamentadora dos EUA sob uma administração Trump sublinha essa divergência de abordagem e suas implicações globais.

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Você destaca os efeitos cascata globais do caso das empresas de tecnologia e da política nos EUA. Com o potencial de uma administração Trump que pressiona pela desregulamentação globalmente e se alinha com as big techs, como a regulamentação pode ser implementada de forma eficaz?

O impacto da tecnologia e da política dos EUA é inegavelmente global. O que acontece nos EUA envia grandes ondas, não apenas marolas, pelo mundo. O foco de figuras como Elon Musk e JD Vance na Europa, empregando retórica agressiva em relação aos líderes europeus, é indicativo disso.

Seu interesse na Europa provavelmente decorre de alguns fatores-chave. Em primeiro lugar, a forte base da Europa no Estado de direito, na democracia e nos direitos e liberdades fundamentais contrasta fortemente com a potencial trajetória nos EUA.

Em segundo lugar, a UE representa o único grande mercado democrático que regula ativamente a tecnologia e busca a soberania digital, o que ameaça diretamente os modelos de negócios dessas gigantes, que antes eram amplamente não regulamentados. Além disso, uma Europa democraticamente poderosa, não alinhada com a direção atual dos EUA, representa um desafio à sua influência global.

Vemos alinhamentos semelhantes com vozes nacionalistas, de extrema direita e antiestablishment em lugares como o Brasil, exemplificado pelo apoio a Bolsonaro. O confronto descarado de Elon Musk com o ministro Alexandre de Moraes no Brasil, alavancando toda a sua plataforma e algoritmos, demonstra a disposição desses atores de desafiar diretamente as instituições democráticas.

Esse comportamento transcende as batalhas políticas tradicionais e indica uma mudança nas próprias regras do jogo, com players poderosos e não eleitos que entram em campo. O relativo silêncio nos EUA em relação a esses desenvolvimentos é particularmente preocupante.

Em The Tech Coup, você discute a importância de os Estados recuperarem a soberania. Que ações concretas os indivíduos podem tomar para contribuir com isso, tanto em suas vidas pessoais quanto para impulsionar uma mudança social mais ampla?

Para os indivíduos, recuperar a soberania começa com a autodeterminação em suas vidas digitais. Isso significa cultivar um relacionamento mais consciente e menos viciante com as mídias sociais, fazer escolhas de consumo informadas (por exemplo, usar aplicativos de mensagens focados na privacidade) e estar atento a como seus dados estão sendo usados. No entanto, dada a imensa assimetria de poder entre usuários individuais e a Big Tech, as ações individuais por si só são insuficientes.

A ação coletiva e o engajamento político são cruciais. Precisamos pressionar nossos políticos a priorizar a governança democrática da tecnologia. O potencial de boicotes a certas plataformas ou mesmo proibições de tecnologia dos EUA na Europa, impulsionado por preocupações com segurança e a instrumentalização de dependências, poderia ser um desenvolvimento interessante a observar.

Em última análise, isso requer liderança política para se afastar da governança privada e de modelos orientados para o lucro em direção a uma estrutura democrática e baseada no Estado de direito. O declínio paralelo da democracia e a ascensão do poder tecnológico descontrolado não são coincidência, destacando a necessidade urgente de uma reavaliação fundamental de nossa relação com a tecnologia.

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Sua perspectiva sobre a capacidade de proteger a democracia desse “golpe tecnológico” mudou? Você está mais otimista ou pessimista?

Tenho uma mistura complexa de sentimentos. Por um lado, o “golpe tecnológico” está se desenrolando mais rápido e de forma mais significativa do que eu inicialmente temia. A potencial mudança na política dos EUA, afastando-se das normas democráticas e da cooperação internacional, é profundamente preocupante.

Por outro lado, agora há uma compreensão generalizada do problema. O ceticismo inicial desapareceu em grande parte. Mesmo que haja um culto a certas figuras, um amplo espectro de pessoas – estudantes, líderes empresariais, figuras políticas, jornalistas e atores da sociedade civil em todo o mundo – reconhece os perigos do poder descontrolado exercido por líderes de tecnologia não responsabilizados. Essa maior conscientização me dá um fio de esperança.

Embora a coalizão daqueles que podem estar satisfeitos com a situação atual tenha ganhado poder em alguns setores, aqueles que estão profundamente preocupados estão mais alarmados e sentem uma maior sensação de urgência. Isso está gerando impulso para o desacoplamento de tecnologias que poderiam ser instrumentalizadas contra valores democráticos e segurança.

A questão fundamental permanece: quem realmente se beneficia dessa erosão do controle democrático? Acredito que a resposta é quase ninguém. Portanto, mantenho a esperança de que, por meio da colaboração além das fronteiras, ainda possamos mudar essa trajetória, recuperar nossas democracias e estabelecer uma relação mais responsável e transparente com a tecnologia.

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