Falta de monges e mercado paralelo colocam em risco tradição das cervejarias trapistas

Abadias centenárias enfrentam modernização forçada e queda nas vocações religiosas para manter a produção para suprir a uma alta demanda global pelo estilo de cerveja especial

Westvleteren
Por Max Ramsay - Katharina Rosskopf
28 de Dezembro, 2025 | 03:37 PM

Bloomberg — A Abadia de São Sisto passou por muitas situações em seus quase 200 anos de história. No entanto, mais recentemente, o mosteiro católico na Flandres Ocidental — mais conhecido por suas cervejas belgas Westvleteren, de alta qualidade — tem enfrentado um duplo desafio: um próspero mercado paralelo, que a forçou a adaptar seu modelo de negócios centenário e um segundo risco existencial potencialmente maior, a ordem trapista ficando sem monges.

A popularidade da cerveja pode ser vista nas manhãs em que veículos de toda a Europa esperam pacientemente para pegar caixas pré-encomendadas de motoristas de empilhadeiras vestidos com hábitos monásticos, um processo envolto em tanta burocracia que torna extremamente difícil comprá-la.

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A Westvleteren é uma das 11 cervejarias em todo o mundo certificada pela Associação Internacional Trapista. Isso significa que seus produtos são fabricados nas proximidades de uma abadia trapista, sob a supervisão de monges ou freiras, e os lucros são usados para caridade ou para as necessidades da comunidade monástica. Das 11, cinco dessas cervejarias estão na Bélgica, duas na Holanda e uma na França, Espanha, Itália e Inglaterra.

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Os monges da Abadia de São Sisto estão a caminho de fabricar cerveja por apenas 57 dias neste ano, de acordo com dados compartilhados com a Bloomberg News, deixando as máquinas paradas durante a maior parte de cada mês.

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Westvleteren

Eles esperam produzir pouco mais de 750 mil litros em 2025, ganhando o suficiente para cobrir os custos de funcionamento da abadia e projetos de caridade.

É uma pequena parte da produção total de cerveja da Bélgica, que foi de cerca de 21 milhões de hectolitros em 2024, de acordo com o Eurostat — mas a tradição trapista é parte do motivo pelo qual a Unesco declarou a cultura cervejeira do país como patrimônio cultural imaterial da humanidade.

“Embora o número de monges esteja diminuindo, seu papel como guardiões da tradição, qualidade, valores e credibilidade os torna indispensáveis para a cultura cervejeira belga”, afirma Krishan Maudgal, diretor da Associação Belga de Cervejeiros. “Eles formam a base moral e histórica sobre a qual ainda repousa grande parte da história da cerveja belga.”

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À primeira vista, as cervejarias trapistas da Bélgica estão prosperando. A cerveja é cobiçada como sempre e os monges podem reinvestir no futuro. Mas sua tradição e seu modelo de negócios incomum os deixam expostos a pressões únicas.

A única cervejaria trapista dos Estados Unidos fechou em 2022 e outra na Bélgica, Achel, parou de vender cerveja trapista em 2023, após ter seu status revogado e ser vendida para uma cervejaria comercial.

Os últimos monges restantes foram transferidos para outra abadia. Em jogo não estão apenas as cervejas adoradas — ou um modo de vida que sobreviveu a guerras e mudanças sociais — mas instituições que proporcionam um importante desenvolvimento econômico e apoio caritativo às suas regiões.

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A Westvleteren ainda tem dois monges envolvidos na gestão da sua cervejaria e mais cinco que ajudam no processo de engarrafamento. Mas o seu estatuto muito cobiçado criou problemas que outras cervejarias trapistas, cuja cerveja está mais amplamente disponível em lojas e bares, não enfrentam.

Com um preço médio de 2,10 euros por garrafa, um próspero mercado para a cerveja — onde é comprada legalmente no mosteiro e depois vendida a preços mais elevados em outros locais — tem sido um desafio persistente para os monges.

O site britânico Beautiful Beers exige mais de dez vezes o preço de varejo original por garrafa, enquanto o Belgianshop.com nos EUA quer mais de US$ 300 por um pacote com seis.

Desde 2019, o mosteiro tenta combater a atividade de revenda — abrindo indiretamente as portas para uma abordagem mais moderna dos negócios. O chamado “disk cerveja”, que deixava os clientes esperando horas na linha, foi substituído por um sistema de pedidos online, o que facilitou para a cervejaria rastrear para onde a cerveja estava indo.

Para comprar a premiada cerveja da Abadia, a Westvleteren, o consumidor agora precisa primeiro criar uma conta online.

Essa é a parte fácil. Em seguida, é preciso ficar de olho no calendário online da cervejaria. A natureza aleatória do horário de funcionamento da loja virtual adiciona um pouco de risco.

Westvleteren

Se a loja estiver aberta, o cliente deverá aguardar em uma “sala de espera” online por até uma hora antes de ter 10 minutos na loja para fazer seu pedido — o máximo é quatro caixas de 24 garrafas de cerveja por pessoa. Os clientes devem fornecer o número da placa do carro e escolher uma data e hora para entrar na fila na Abadia de São Sisto.

Os horários de entrega são rigorosamente cumpridos, e o uso do carro de outra pessoa também não é uma opção: a pessoa simplesmente não poderá entrar. O não cumprimento das restrições significará que o cliente será proibido de comprar.

Em 2023, os irmãos se afastaram de sua política rígida de vender cerveja apenas a consumidores individuais.

Em um esforço para combater o que chama de “especulação” por parte dos revendedores holandeses, a Abadia de São Sisto decidiu exportar 240 mil garrafas por ano para alguns pontos de venda cuidadosamente selecionados entre seus vizinhos do norte, cujas margens são muito mais razoáveis. Os preços são monitorados de perto e as lojas holandesas que não cumprem as regras têm o fornecimento suspenso.

“Eles querem oferecer um produto artesanal, mas a um preço justo”, diz Yves Panneels, que gerencia a comunicação de duas cervejarias trapistas, incluindo a Westvleteren, bem como de uma abadia de freiras trapistas que fabricam produtos de beleza naturais. “Eles também querem uma distribuição justa para que todos possam comprá-lo”, diz ele em uma entrevista. “Não apenas aqueles que têm muito dinheiro.”

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Abadia com cervejaria

Os monges beneditinos que vivem e administram essas abadias buscam o mínimo contato com o mundo exterior, mas, além de uma vida de oração e reflexão, sua filosofia de vida exige que eles trabalhem e se sustentem por conta própria — sem depender de caridade ou doações.

É um modelo de autossuficiência em exibição na cervejaria trapista Westmalle, nos arredores de Antuérpia, que não só produz cerca de 120 mil hectolitros de cerveja por ano, mas também queijo para venda em lojas especializadas, proveniente de seu próprio rebanho de vacas. Há também uma padaria e uma ferraria em funcionamento no local.

Os monges deixaram de se envolver diretamente em algumas abadias, dirigindo a estratégia por meio de um conselho, mas deixando as atividades de fabricação de cerveja para funcionários profissionais em operações maiores, como Westmalle e Chimay, cerca de 130 km ao sul de Westmalle, na região francófona da Valônia, na Bélgica.

Philippe Van Assche trabalhava na área financeira, no que hoje é o BNP Paribas Fortis, quando assumiu a direção da cervejaria Westmalle como gerente geral há quase três décadas. Ele diz que foi atraído pela abordagem e filosofia de negócios da empresa.

“Eles queriam conhecer todas as pessoas que trabalham aqui”, diz ele em uma entrevista nos escritórios da cervejaria, a poucos metros dos enormes tanques onde a cerveja fermenta. “É uma abadia com uma cervejaria, e não o contrário.”

A ideia é manter os lucros e a produção estáveis, sustentar a abadia, fazer doações para instituições de caridade e reinvestir no negócio quando necessário. A fábrica de engarrafamento da Westmalle fervilha de atividade durante o dia, com garrafas sendo lavadas, rotuladas, enchidas e preparadas para entrega.

Na capacidade máxima, são processadas 45 mil garrafas por minuto. Mas a linha de produção fica ociosa fora do turno diurno e não funciona nos fins de semana, pois os monges querem que os funcionários trabalhem em horários sociáveis. Ela deve ser substituída até 2030 por uma nova instalação modernizada, por meio de um grande investimento autofinanciado na cervejaria.

Gráfico

Os valores dessas empresas são um atrativo não apenas para os consumidores, mas também para os funcionários. Fabrice Bordon ocupou vários cargos na cervejaria trapista Chimay nos últimos 24 anos. Foi uma mudança de ritmo ingressar na empresa após cinco anos em outra marca conhecida na Bélgica: a maior cervejaria do mundo, a AB InBev.

“Sem acionistas, os lucros são destinados à solidariedade, para ajudar a região e elevar o nível de vida dos habitantes”, explica Bordon por telefone.

A Chimay produz cerca de 170 mil hectolitros e emprega 125 trabalhadores apenas na cervejaria, com outros 125 em outras funções sob a supervisão dos 14 monges da abadia.

Ainda assim, há um desafio de longo prazo que afeta todas essas instituições monásticas: menos pessoas estão seguindo a vocação de monge beneditino.

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O receio é que o número cada vez menor e a dificuldade em recrutar novos membros possam levar mais abadias trapistas — e, por extensão, suas cervejarias e modelos de negócios sociais — a seguir os passos de Achel, que perdeu sua designação trapista e foi vendida para uma cervejaria comercial após a saída de seus últimos monges.

“Esse é um desafio que provavelmente sempre existiu, mas a cada ano se torna um pouco mais visível e tangível”, diz Van Assche, de Westmalle.

No entanto, alguns veem sinais tímidos de otimismo. Bordon viu o número de monges em Chimay crescer de 12 para 14 nos últimos sete anos, além de três noviços — embora parte desse aumento se deva à transferência de monges de mosteiros que fecharam.

Ainda assim, há um desejo intenso por parte daqueles que fazem parte dessas instituições de protegê-las, não apenas para os consumidores, mas também pelo que elas contribuem para suas comunidades.

“Estamos aqui há 200 anos”, diz Van Assche, de Westmalle. “Gostaríamos de preservar este belo lugar com uma fazenda, uma cervejaria, uma queijaria, um local de oração, um local de descanso e silêncio.”

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