Bloomberg — Em setembro, a pequena casa de leilões Gaston & Sheehan, em Pflugerville, no Texas, vendeu Red Man One, uma pintura de 1982 de Jean-Michel Basquiat, por US$ 22.002.790, após 456 rodadas de lances entre 13 licitantes diferentes — todos em valores milionários.
O preço representou uma alta de 519% em relação a maio de 2009, quando a obra foi vendida na Sotheby’s por US$ 3.554.500, e de 139% em comparação a março de 2013, quando a galeria Helly Nahmad, em Manhattan, a negociou por US$ 9.191.040 para Jho Low, que comprava um presente para seu amigo Leonardo DiCaprio.
Historicamente, obras de arte sempre foram vistas como bens de consumo — comprá-las era considerado um gasto, não um investimento. Basquiat, o expoente do neoexpressionismo que morreu de overdose de heroína aos 27 anos, em 1988, passou a simbolizar a transformação da arte em objeto de investimento, adquirido cada vez mais com a expectativa de valorização.
Em Jean-Michel Basquiat: The Making of an Icon (Thames & Hudson, 14 de outubro), o consultor de arte Doug Woodham descreve como Basquiat foi deliberadamente transformado, com enorme sucesso, de um artista do circuito alternativo nova-iorquino em um ativo de primeira linha — digno de investimento.
Woodham retira o véu que cobre esse processo — as campanhas publicitárias, o livro infantil campeão de vendas, o mito popular do gênio atormentado — para mostrar os bastidores e o pequeno grupo de homens que controlava os fios.
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Woodham é ele próprio um produto do mercado de arte financeirizado: ex-sócio da McKinsey e ex-banqueiro do UBS, ele passou quatro anos como presidente da Christie’s nas Américas antes de fundar a consultoria Art Fiduciary Advisors.
Seu livro não soa como uma denúncia nem como um escândalo revelado. Ainda assim, para quem acreditou ingenuamente no leiloeiro Tobias Meyer, da Sotheby’s, quando ele disse em 2006 que “a melhor arte é a mais cara, porque o mercado é inteligente”, a obra de Woodham serve como antídoto.
O mercado de arte é pequeno e altamente suscetível à manipulação. Woodham mostra como a carreira póstuma de Basquiat foi cuidadosamente administrada não apenas por seu pai, executor do espólio, mas também por um grupo diminuto de investidores-colecionadores bem conectados — à frente deles, José Mugrabi, Peter Brant e o falecido Enrico Navarra.
Esses homens, e alguns outros, como o ex-marchand de Basquiat, Bruno Bischofberger, entravam em ação sempre que os preços davam sinais de fraqueza. Tinham disposição e recursos para comprar obras em volume.

Um ponto crucial é que havia muita obra disponível para especular. Navarra passou anos montando um luxuoso catálogo em dois volumes e 12 quilos sobre Basquiat, listando mais de 850 trabalhos. Depois, distribuiu-o gratuitamente a mais de 25.000 convidados selecionados, após sua publicação inicial em 1996. (Hoje, o conjunto é vendido no mercado de usados por mais de US$ 2.000.)
O livro deu segurança a colecionadores e investidores de que havia Basquiats suficientes em circulação para formar um mercado líquido, onde o valor de cada obra pudesse ser estimado com base em “comparáveis”.
Um dos paradoxos do mercado de arte é que os artistas mais valiosos — como Pablo Picasso ou Andy Warhol — costumam ser extremamente produtivos. O valor vem não apesar da abundância, mas por causa dela. Essa fartura multiplica o potencial de lucro para quem consegue comprar obras em quantidade. E, de fato, a rápida escalada nos preços de Basquiat ocorreu à medida que o mercado começou a precificar o fato de que o artista havia produzido intensamente durante sua curta e trágica vida.
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Basquiat já era um ativo razoavelmente líquido mesmo em vida — desde o início foi reconhecido como um artista cujas obras tinham valor real e podiam ser revendidas, ainda que por valores de quatro dígitos. Mas essa facilidade de revenda se tornaria um problema em meados dos anos 1990, quando sua morte provocou uma bolha especulativa em torno de suas pinturas.
Um dos temas mais interessantes no livro de Woodham é a tensão entre o comercial e o colecionável. Basquiat nunca foi um artista de vanguarda: encaixava-se naturalmente no movimento neoexpressionista e não enfrentou as acusações de “rabiscos infantis” dirigidas a veteranos como Cy Twombly.
O problema percebido era o oposto — muitos achavam que ele agradava demais ao mercado, em vez de criar algo atemporal e sublime.
Woodham cita um colecionador dizendo que havia um “cheiro de comercial” nas obras, que “pareciam falar mais de dinheiro do que de arte”. (O crítico Robert Hughes escreveu em 1988 que Basquiat ganhara fama, nos últimos anos de vida, de produzir trabalhos de baixa qualidade apenas para sustentar o vício em drogas.)
Quando a bolha em torno de Basquiat estourou, no início dos anos 1990, os preços caíram mais de 60% — o suficiente para arruinar a carreira de quase qualquer artista. Mas Basquiat sobreviveu graças a Mugrabi, Brant e Navarra, que compraram centenas de obras, gastando milhões para sustentar o mercado.
Mugrabi, sozinho, possuiu ou ainda possui mais de 400 Basquiats, segundo Woodham. Como um banco central intervindo para defender sua moeda, esses colecionadores conseguiram conter a queda e, pouco a pouco, reverter a tendência. Com o tempo, as obras passaram a ser compradas por celebridades como o U2 e Johnny Depp e exibidas em retrospectivas de grandes museus.
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O fator talvez mais decisivo para o sucesso póstumo de Basquiat foi, paradoxalmente, o preço de suas obras em leilão. No fim dos anos 1990, seus quadros começaram a ser vendidos por valores de sete dígitos — um feito notável para um artista negro, sem formação acadêmica em arte, que teria pouco mais de 30 anos se estivesse vivo.
Os preços em espiral criaram uma febre de compra entre colecionadores que viam neles a confirmação do gênio do artista, que antes apreciavam apenas pelo impacto visual, sem considerá-lo um mestre de peso histórico.
Os leilões, aliás, foram um terreno de sorte para Basquiat. Em novembro de 1998, um grande autorretrato de 1982 foi vendido na Christie’s. A manchete do New York Times dizia na manhã seguinte: “Obra de Basquiat é arrematada por US$ 3,3 milhões”.
Na verdade, o segundo maior lance veio de um impostor sem dinheiro, e a Christie’s acabou recebendo cerca de US$ 2,4 milhões — o que o comprador real, Philip Niarchos, teria pago se não houvesse a falsa disputa.
Mas o que importava era a manchete: o mercado não se preocupou com o valor final, e sim com o quanto Niarchos parecia disposto a pagar.
Algo parecido aconteceu em maio de 2013, quando Dustheads, uma obra monumental, foi vendida por US$ 48,8 milhões — quase o dobro do recorde anterior de Basquiat, de US$ 26,4 milhões — e desencadeou outra onda de euforia.
Nesse caso, o problema foi o comprador: Jho Low, que usava dinheiro desviado do fundo soberano da Malásia, o 1MDB. Ele acabou forçado a revender a pintura, com prejuízo, pouco antes de outro Basquiat ser arrematado na Christie’s por US$ 57,3 milhões.
Woodham argumenta que o comprador dessa segunda obra, Yusaku Maezawa, provavelmente não teria oferecido tanto se soubesse do revés anterior de Dustheads.
Mas isso pouco importou: a cada novo recorde, outro logo o superava — até que Basquiat, em maio de 2017, se tornou o artista americano mais caro já vendido em leilão. Perdeu o título em 2022 para seu amigo e colaborador Andy Warhol, mas não seria impensável que o recuperasse, já que suas obras mais valiosas seguem em mãos privadas, e não em museus.
O sucesso de Basquiat no mercado de arte continua superando o interesse dos curadores e o reconhecimento crítico. Ele é popular entre o público e entre um grupo considerável de bilionários, mas está pouco representado em museus como o MoMA, a Tate ou o Guggenheim, que não possuem nenhuma pintura importante dele.
Apenas duas instituições no mundo têm várias obras de peso: o Broad Museum, em Los Angeles, e a Nicola Erni Collection, em Zug, na Suíça — ambos fundados por colecionadores que adquiriram as peças há anos.
Hoje, os grandes museus aceitariam de bom grado doações (o que nem sempre foi o caso), mas os colecionadores preferem manter as obras, confiantes de que elas continuarão se valorizando.
Como observa Woodham, Basquiat é um exemplo perfeito do que os economistas chamam de “curva de demanda ascendente” — quanto mais caro ele fica, maior é a demanda por suas obras, que são instantaneamente reconhecíveis como caríssimas.
Esse é o tipo de prestígio que muitos colecionadores de hoje buscam, pagando fortunas por um artista que ainda não recebeu a consagração definitiva dos curadores do cânone da arte contemporânea.
Mas talvez críticos e curadores nunca tenham sido determinantes. Afinal, não foram eles que levaram Basquiat — que nunca vendeu uma obra por mais de US$ 30.000 em vida — ao clube dos artistas de cem milhões de dólares. Foram os investidores.
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