Fim do american dream: Governador Valadares sofre efeitos de deportações de Trump

Cidade mineira ganhou fama e impulsionou a economia com o envio de milhares de migrantes para os EUA, legalmente ou não, por décadas. Agora, busca se readaptar a um retorno forçado

Outodoor anuncia serviços de apoio para brasileiros deportados ou que decidiram retornar para Governador Valadares (Foto: Ana Caroline de Lima/Bloomberg)
Por Andrew Rosati
09 de Maio, 2025 | 10:10 AM

Bloomberg — A centenas de quilômetros da costa do Atlântico e de qualquer aeroporto internacional, uma cidade pacata nas montanhas brasileiras reina como a principal “exportadora” de pessoas do país sul-americano.

As ruas de Governador Valadares estão repletas de agências de viagem, que anunciam serviços de imigração. As placas de lojas e escolas de idiomas são estampadas com as estrelas e listras da bandeira americana.

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As “gangues de coiotes” que ajudam a contrabandear migrantes operam nas sombras, capitalizando os sonhos de chegar ao solo americano.

Durante décadas, essa cidade de 257.000 habitantes foi o epicentro da migração brasileira, enviando dezenas de milhares de pessoas para os Estados Unidos - legalmente ou não.

A cidade construiu toda uma indústria em torno do transporte de pessoas para o norte da América, à medida que os fluxos de saída de pessoas decolavam durante a crise econômica da década de 1980.

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Agora, sua riqueza e seus residentes estão em risco graças às deportações do presidente Donald Trump e à mudança de atitude dos Estados Unidos em relação à migração.

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Até o momento, a cidade tem tentado receber os expulsos por Trump com uma mensagem otimista.

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“Seu retorno é o início de uma nova história”, dizem os outdoors colocados ao longo de parques tranquilos e ruas movimentadas. Por mais acolhedor que isso pareça, os Valadarenses, como os moradores locais se chamam, sabem mais.

“Sentimos uma certa obrigação de agir, sabendo que a maioria dos brasileiros lá é de Valadares”, disse o prefeito Sandro Fonseca em uma entrevista à Bloomberg News, apontando para estimativas de até 60.000 habitantes de sua cidade nos EUA.

Meia dúzia de voos de deportação chegaram ao Brasil até agora desde que Trump voltou ao cargo. Além de estender o tapete de boas-vindas, a prefeitura oferece aos residentes pródigos serviços de reintegração e linhas de apoio aos deportados.

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Serviços para pessoas que queiram se mudar para os EUA ainda estão presentes pela cidade de Governador Valadares

O desejo arraigado de seus moradores de chegar aos EUA rendeu a Governador Valadares o apelido de “Valadolares”, em referência aos dólares que voltam do exterior para casa.

E, embora seja muito cedo para avaliar o efeito total que a repressão de Trump terá sobre a cidade, o impacto mais imediato parece ser o fato de que muito menos pessoas estão perseguindo esse sonho.

“Tudo está parado, ninguém quer tentar”, disse Gilmar Mesquita, 43 anos, um morador que foi deportado para o Brasil em fevereiro. “Até os ‘coiotes’ estão fugindo.”

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Eles provavelmente estão tomando nota da experiência de aspirantes a emigrantes como Mesquita, proprietário de duas lojas de roupas que rumou para os EUA no ano passado planejando trabalhar na construção civil para expandir seus negócios.

Ele viajou para Santo Domingo, na República Dominicana, e tentou chegar ao solo americano por mar. Mas a viagem foi interrompida quando o motor do barco quebrou, deixando-o preso no Caribe para ser recolhido pelas autoridades.

“De nove irmãos, eu fui o único que não conseguiu”, disse ele.

Desde a década de 1960, os emigrantes de Governador Valadares e das comunidades vizinhas no estado de Minas Gerais, rico em minérios, têm buscado um novo começo nos Estados Unidos.

Os valadarenses criaram raízes e ajudaram a formar enclaves brasileiros em Massachusetts e na Flórida. O fluxo ganhou força quando a maior economia da América Latina foi atingida por uma série de crises no que ficou conhecido como a década perdida do Brasil.

Em meio a tudo isso, os valadarenses enviaram dinheiro para o Brasil ou voltaram para casa cheios de dólares. Os fluxos, que continuam até hoje, ajudam a movimentar a economia de US$ 1,3 bilhão da cidade.

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“Devemos um grande agradecimento a esses pioneiros que começaram isso”, disse Fonseca, um ex-militar conhecido como Coronel Sandro.

Não se sabe ao certo quanto dinheiro está entrando na cidade.

O prefeito cita estimativas de que cerca de US$ 2 milhões por dia fluem dos EUA, o que, segundo ele, impulsiona setores-chave como habitação e construção e mantém a economia em geral. Os pesquisadores, no entanto, dizem que o valor provavelmente é muito menor.

O que é certo é que os vínculos da cidade com os EUA deixaram uma marca no comércio local: além da abundância de bandeiras vermelhas, brancas e azuis, um shopping center é adornado com um busto da Estátua da Liberdade. E muitos ganham a vida simplesmente ajudando outros a deixar o país.

Shopping em Governador Valadares com referência à Estátua da Liberdade: não faltam menções a cidades americanas

A demanda para emigrar excede em muito as opções legais, tornando o contrabando de pessoas um grande negócio. As autoridades dizem que a passagem ilegal para os EUA custa, em média, US$ 20.000 por pessoa.

A cidade enfrenta incursões regulares para eliminar os traficantes. Em fevereiro, a Polícia Federal prendeu 14 pessoas e congelou contas bancárias com até US$ 7,5 milhões que, segundo eles, pertenciam a uma quadrilha acusada de enviar ilegalmente 669 pessoas para os EUA via México.

É difícil calcular quantos Valadarenses estão vivendo fora do Brasil. De acordo com o censo de 2010, o último dado oficial disponível, cerca de 7.600 pessoas da cidade estavam residindo no exterior.

Mas esse número provavelmente está muito aquém da realidade, já que muitos migrantes não registrados não têm documentos.

Em 2022, cerca de 230.000 brasileiros estavam vivendo nos EUA sem autorização, de acordo com o Pew Research Center.

E as tentativas de Trump de fechar as fronteiras e investigar as pessoas sem documentos fizeram com que o Brasil - nos últimos dois séculos mais um destino de imigrantes do que uma fonte - contemplasse pela primeira vez o que fazer com os deportados.

O status de ser deportado

“Esse imigrante não quer ser visto porque a deportação é uma forma de fracasso”, disse Sueli Siqueira, socióloga da Universidade Vale do Doce em Governador Valadares. “E o Estado nunca se preocupou com eles.”

Impulsionado por um voo de retorno desastroso ao Brasil, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva instalou um posto avançado no aeroporto internacional de Minas Gerais - o principal destino dos deportados - oferecendo Wi-Fi e serviços federais básicos aos repatriados.

Em Governador Valadares, a prefeitura tenta oferecer ajuda mais especializada para a reintegração dos moradores. Isso inclui assistência psicológica, ajuda com documentação, obtenção de serviços sociais e uso do banco de empregos local.

O gabinete do prefeito não quis dar detalhes sobre quantas pessoas utilizaram os serviços.

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Fonseca não tem palavras duras para Trump, que ele parabenizou nas mídias sociais após sua vitória na reeleição. “Como se pode criticar um presidente que foi eleito legitimamente e está dando continuidade a uma política?”

O prefeito tem razão.

O ex-presidente Joe Biden deportou milhares de brasileiros enquanto estava no cargo. Mas isso não serve de consolo para Sandra Souza, que foi arrancada sem aviso prévio quatro anos depois de começar sua nova vida no sul da Flórida.

Sandra Souza, que foi deportada depois de quatro anos morando nos EUA

A professora de 36 anos e sua família foram informadas de que seriam deportadas em janeiro, enquanto compareciam ao que pensavam ser uma reunião de rotina com a Immigration Customs and Enforcement (Alfândega e Fiscalização de Imigração) para apresentar documentos médicos que embasassem seu pedido de visto.

Depois que seus pedidos de asilo foram negados, os advogados de Souza defenderam que eles ficassem no país devido às necessidades de seu filho, que é autista.

“Eu me senti enganada”, disse ela entre lágrimas.

Agora, de volta a Itambacuri, uma cidade minúscula a duas horas de carro de Governador Valadares, a família de quatro pessoas vive com os rendimentos do trabalho na construção civil nos EUA, enquanto reforma sua casa e se readapta. “Voltamos relativamente bem, mas há muitos que estão destruídos”, disse Souza.

Cidade de Governador Valadares recebe um impulso para a economia com a indústria em torno do envio de migrantes para os EUA

Ironia do apoio a Trump

Em toda a região, os governos se apressam para atender aos que estão sendo expulsos dos EUA.

O México, por exemplo, está construindo centros de recepção ao longo de sua fronteira norte, enquanto a Guatemala tenta reintegrar os migrantes que retornam, colocando-os em contato com empregos.

A ironia não passa despercebida em Governador Valadares, cujos eleitores são obcecados pela política americana tanto quanto pela sua própria política.

Há apenas alguns meses, alguns dos outdoors mais proeminentes da cidade anunciavam a aprovação tanto de Kamala Harris quanto do então candidato Trump.

A cidade ainda está dividida em relação às políticas do presidente, apesar de sua postura abertamente antimigrante, com alguns expressando abertamente seu apoio.

“Você tem que ir pelo caminho certo, senão é considerado uma invasão”, disse o vendedor ambulante Fabio Henrique de Sousa Silva, 68 anos. E agora, graças a Trump, o caminho de volta a Governador Valadares fica mais movimentado.

João Victor Batista Alves, 26 anos, natural de Valadares, deixou o Rio de Janeiro para se juntar à sua família na Flórida no ano passado, primeiro para El Salvador e depois para o México.

A viagem terminou na fronteira com os Estados Unidos. Seu pedido de asilo foi negado e, após um mês em um centro de detenção lotado, ele foi enviado de volta ao Brasil.

Sua família tomou conhecimento. Depois de cinco anos nos Estados Unidos, seu padrasto retornou a Governador Valadares por medo de sofrer um destino semelhante. Sua mãe logo o seguirá, agora que Alves não pode se juntar a ela. “Se ela já estava desanimada antes, agora está ainda mais”, disse ele.

Ela não está sozinha.

Ryan Alves, 19 anos, funcionário de um posto de gasolina, disse que sempre pensou em emigrar, como muitos de seus colegas já fizeram. “Sempre quis ter um iPhone e como posso conseguir um aqui? Mas mesmo que eu tivesse dinheiro para viajar, lá a nova política é muito assustadora. Imagine pagar todo esse dinheiro a um coiote e ser mandado de volta.”

-- Com a colaboração de Beatriz Amat e Meg Lopes.

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