Bloomberg — No interior do Brasil, barcaças carregadas de grãos navegam pelos rios amazônicos, onde antes só havia floresta.
As embarcações param em terminais a milhares de quilômetros dos portos tradicionais do país. Campos que antes eram devastados para a pecuária ou deixados intocados agora produzem milhões de toneladas do maior produto de exportação do país, a soja.
O apetite voraz do mundo pela soja agora leva os agricultores a adentrarem cada vez mais na floresta Amazônica para cultivar a oleaginosa, auxiliados por bilhões de dólares em infraestrutura que tornaram viáveis para o comércio de exportação em regiões antes inacessíveis.
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Isso tem testado a capacidade do Brasil de equilibrar sua indústria agrícola, responsável por mais de um quarto do Produto Interno Bruto, com suas metas climáticas.
Um acordo histórico do setor — a Moratória da Soja da Amazônia, que proíbe os comerciantes de comprar soja cultivada em terras recentemente desmatadas — tem mostrado sinais de desgaste, enquanto o governo investiga se há um cartel no mercado de exportação.
Enquanto isso, uma proposta controversa para pavimentar uma rodovia mais profundamente na floresta intocada ameaça acelerar o avanço da soja em um dos ecossistemas mais sensíveis da Terra.
A expansão da soja é uma questão crítica para o Brasil, que se prepara para sediar a cúpula climática COP30 em Belém, em novembro, tendo como um dos principais temas do evento a prevenção do desmatamento.
Embora a maior parte da nova área plantada com soja na região tenha substituído terras já desmatadas para a pecuária ou outras culturas, o desmatamento persiste.
Árvores ainda estão sendo derrubadas nas proximidades, muitas vezes ilegalmente, antes de serem convertidas em pastagens — um terreno preparatório para o plantio mais intensivo de soja no futuro.
Ao mesmo tempo, a demanda por soja tem aumentado, já que o maior cliente do Brasil, a China, aumenta sua dependência do país para a aquisição da oleaginosa em resposta às tarifas dos EUA.
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“Há um apelo crescente na região por parte dos atores do agronegócio para pavimentar estradas e melhorar a infraestrutura para transportar a produção”, disse Felipe Petrone, cientista ambiental cuja tese de mestrado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil se concentrou na nova fronteira agrícola na Amazônia. Com essas medidas, “a dinâmica de ocupação, desmatamento e degradação continua a ocorrer”.
A incursão ocorre há anos, mas se expandiu rapidamente na última década. Os agricultores brasileiros primeiro se estabeleceram no sul do país antes de levar a fronteira agrícola para o Centro-Oeste.
De lá, eles avançaram para o norte, para uma fronteira de quatro estados conhecida pela sigla Matopiba, antes de se mudarem gradualmente para partes da Amazônia.

A mudança é evidente. No Acre, o estado mais ocidental da Amazônia, não havia relatos de cultivo de soja até 2017. Este ano, os agricultores cultivaram uma área três vezes maior que Manhattan, de acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
O Amazonas, também um estado sem soja até oito anos atrás, teve um avanço semelhante. A área plantada com soja em Rondônia quase triplicou na última década.
“Estou bobo de ver,” disse José Marcos Leite Jr., agricultor e pecuarista na região fronteiriça entre Rondônia e Acre, sobre o crescente interesse na região.
Ele começou a plantar soja e milho há dois anos, em terras que comprou no início dos anos 2000 e que antes eram usadas como pastagem. Nos últimos três anos, diz ele, o valor dessas terras dobrou.
Embora agricultores como Leite Jr. tenham que obedecer às regulamentações locais e preservar a vegetação nativa em pelo menos 80% de suas propriedades, o aumento vertiginoso do valor das terras tem incentivado uma prática criminosa de derrubar árvores ilegalmente, na expectativa de que as restrições acabem sendo flexibilizadas. Isso se torna uma aposta em ganhos futuros, quase como no mercado de ações.
“O desmatamento se torna um negócio que na escala final vai virar uma terra na mão da pecuária ou da soja”, disse Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, uma rede de organizações climáticas.
Nos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, numa região conhecida pela sigla Amacro, quase 1,38 milhão de hectares de floresta foram perdidos devido ao desmatamento desde 2019.
Isso equivale aproximadamente ao tamanho do estado de Connecticut ou quase 1,5 vez o tamanho do Parque Nacional de Yellowstone.
“É muito crítico”, disse Cristiane Mazetti, ativista do Greenpeace que já trabalhou com comunidades locais para documentar os incêndios na região. “É uma região muito marcada pela grilagem de terras, pela pecuária e também vemos o crescimento da soja por lá.”

Desde que assumiu o cargo em 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fortaleceu as agências ambientais na luta contra o desmatamento da Amazônia.
Após atingir o pico em 2021 durante o governo do presidente Jair Bolsonaro — que reduziu as proteções ambientais e cortou os orçamentos das agências responsáveis pela fiscalização —, as taxas de desmatamento diminuíram em todo o território amazônico brasileiro, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Mas os grupos do agronegócio têm usado sua enorme influência política para fazer campanha contra os comerciantes de grãos que se comprometeram a não adquirir soja diretamente de terras desmatadas.
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A Moratória da Soja, apoiada por gigantes do comércio de commodities incluindo Archer-Daniels-Midland, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, foi criada para conter o rápido avanço do cultivo de soja na floresta tropical, e marca um dos primeiros grandes acordos voluntários da cadeia de suprimentos a vincular o agronegócio global à proteção florestal.
Para os comerciantes de soja, a moratória não é apenas altruísmo, mas uma resposta do mercado à pressão dos compradores no exterior.
A União Europeia, por exemplo, tem leis que determinam que a soja proveniente de terras desmatadas não pode entrar no bloco.
Agora, esse compromisso público está sob ataque. Em agosto, o Conselho Administrativo Federal (Cade) abriu uma investigação antitruste sobre todas as principais empresas após reclamações de membros do Congresso e de grupos como a Aprosoja Mato Grosso.
Os agricultores argumentam que a moratória vai além do que exige a lei brasileira, e limita onde eles podem expandir a produção, mesmo com o aumento da demanda global por soja.
Eles afirmam que as decisões sobre o uso da terra devem ficar a cargo da legislação nacional, e não de contratos privados elaborados por compradores estrangeiros e grupos ambientalistas.
A ADM, a Bunge, a Cargill e a Louis Dreyfus se recusaram a comentar, e encaminharam as perguntas à Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, um grupo que representa os principais comerciantes.
A organização, conhecida como Abiove, afirmou que a moratória da soja tem sido importante para garantir que o avanço da oleaginosa ocorra de forma responsável.
“O risco está na descredibilização da iniciativa, que poderia estimular a abertura de novas áreas,” disse a Abiove em nota. Isso se “contrapõe às demandas de mercados internacionais, que seguirão exigindo soja livre de desmatamento.”
Para aumentar as tensões, os principais estados produtores de soja, Mato Grosso, Rondônia e Maranhão, aprovaram leis que retiram incentivos fiscais das empresas comerciais que cumprem a moratória.
Essa medida provocou uma contestação judicial por parte de um grupo de partidos políticos, que agora está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal.
Até o momento, quatro dos 11 ministros do tribunal decidiram parcialmente a favor do estado de Mato Grosso, o que representa um revés para os comerciantes, mas o caso continua sem solução depois que outro ministro solicitou mais tempo para deliberar no final de agosto.
Aqueles que questionam a moratória estão “colocando em risco a produção agrícola e a reputação internacional das commodities produzidas no Brasil”, afirmou o WWF-Brasil em nota após a investigação do Cade.
“Permitir a expansão do cultivo de soja sobre a floresta Amazônica é um risco ambiental e climático inaceitável.”
Transporte
Enquanto a disputa segue, novos investimentos fluem para portos, hidrovias e estradas destinadas a facilitar o transporte de produtos agrícolas para exportação. ADM, Cargill, Bunge e Louis Dreyfus investiram coletivamente bilhões em terminais e frotas de barcaças, criando uma rede logística que movimenta quase 40% da soja e do milho do Brasil.
No início, as novas rotas de transporte tinham como objetivo transportar as safras do centro-oeste do país.
Mas, à medida que a infraestrutura se multiplicou, o plantio de soja se espalhou mais profundamente pela própria floresta.
A inauguração, em 2021, de uma ponte que liga Rondônia e Acre, durante o governo Bolsonaro, abriu outra fronteira, e tornou viável o transporte de máquinas, fertilizantes e grãos para áreas que antes eram muito isoladas.

Novos projetos portuários estão sendo planejados no Pará e no Amapá, a operadora de barcaças Hidrovias do Brasil está considerando expansões e cinco terminais em Porto Velho estão a caminho de movimentar 11 milhões de toneladas de soja este ano.
A Cargill inaugurou recentemente uma nova instalação em Rondônia, enquanto o governo federal se prepara para leiloar concessões de hidrovias.
Os comerciantes afirmam que expandir a área plantada de soja nunca foi o objetivo dos novos portos. As rotas marítimas são necessárias devido à capacidade limitada dos portos do sul, disse Frederico Favacho, advogado da ANEC, entidade brasileira que representa os exportadores de soja.
A Abiove, outro grupo do setor, afirmou que a infraestrutura só é implantada em locais onde já existe produção, em vez de abrir caminho para novas áreas de plantio.
“A infraestrutura logística está relacionada à eficiência e à redução de custos, e não à abertura de novas áreas no bioma Amazônia,” disse o grupo.
No entanto, cada novo passo em direção a uma logística mais fácil tem aumentado as preocupações com o desmatamento e a pressão sobre as terras.
O mais recente ponto de discórdia é a BR-319, uma rodovia que liga Rondônia ao Amazonas. Os agricultores veem o projeto de pavimentação como um elo vital para transportes mais baratos e rápidos. Grupos ambientalistas, no entanto, alertam que isso poderia submeter vastas áreas de floresta intacta ao desmatamento.
A mera especulação sobre a realização de obras na área já levou ao desmatamento ilegal, afirmou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ao Senado em maio. Sua aparição gerou discussões acaloradas com membros da bancada agrícola e um senador que a acusou de impedir o desenvolvimento por solicitar mais estudos sobre a rodovia.
Poucos minutos antes de sair abruptamente, Silva fez um apelo a todos os agricultores.
“Toda a agricultura dos países depende da biodiversidade”, disse ela em meio a interrupções. “O Brasil tem a agricultura que tem por causa de quê?”
Mais tarde, o governo anunciaria um plano para avançar com estudos sobre a pavimentação da rodovia.
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