Bloomberg Línea — O cenário global é desafiador para produtores e consumidores de café.
Mudanças climáticas, quebras de safra, desafios na cadeia produtiva, preços em alta histórica e até mesmo a proliferação de produtos falsos transformam a realidade da popular bebida em todo o mundo.
O quadro ganhou complexidade com mudanças em políticas comerciais e práticas ambientais capitaneadas por Donald Trump nos Estados Unidos.
Mas a sustentabilidade deixou de ser uma escolha para se tornar uma questão de sobrevivência no setor cafeeiro global, segundo Marcelo Burity, Head Global de Nescafé Plan, em entrevista à Bloomberg Línea em passagem pelo Brasil.
Para a marca global da Nestlé, as práticas ambientais, sociais e de governança (conhecidas pela sigla ESG) representam uma estratégia de negócio estruturada para enfrentar desafios concretos que ameaçam a cadeia produtiva mundial da commodity.
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“A produção de café tem que se tornar mais resiliente”, disse o executivo, que fica baseado em Londres. “Isso não é uma opção cosmética ou moda. É uma necessidade estrutural, se quisermos continuar a ter café disponível para consumo daqui a 20 anos.”
A lógica por trás da estratégia é simples: com a demanda mundial por café que cresce entre 1% e 3% ao ano - impulsionada, entre outros fatores, pelo crescimento do PIB global -, a estimativa da Nescafé é que o planeta precisará de 50% mais café em 20 anos.
E essa expansão deverá ocorrer, na maioria dos casos, sem aumento de área cultivada. “É por isso que precisamos de modelos agrícolas mais eficientes e sustentáveis”, disse Burity.
A resposta a esses desafios passa por uma estratégia de longo prazo, segundo ele: o fortalecimento de práticas sustentáveis no campo, com ganhos tanto ambientais quanto produtivos.

Aumento de 60% na produtividade
Esse processo está no foco da Nestlé, dona da Nescafé, desde 2010, quando a gigante global de alimentos começou a desenvolver o Nescafé Plan - batizado no Brasil de Cultivado com Respeito. Foi apresentado como o maior programa do mundo de agricultura regenerativa na cadeia do café.
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O programa articula práticas agrícolas sustentáveis com metas de produtividade e qualidade.
Segundo Burity, trata-se de um movimento de expansão e profissionalização de ações que antes eram mais pontuais e regionais.
O plano apoia produtores, oferece capacitação técnica e incentiva melhores práticas agrícolas enquanto atua para proteger e regenerar os recursos naturais e promover uma cadeia de valor considerada mais justa e resiliente.
A iniciativa está presente em 18 países e conta com mais de 150.000 cafeicultores parceiros. No Brasil, apoia mais de 2.200 produtores.
Segundo Burity, o programa leva a um aumento de produtividade de 60% em comparação com as fazendas convencionais.
“Nos primeiros dez anos, o foco foi desenvolver o fornecimento responsável. Saímos de quase zero para 70% do nosso café sendo rastreável e produzido segundo práticas verificadas”, contou Burity.
Hoje, essa proporção subiu para 93% globalmente e já alcança 100% em países como o Brasil.
Segundo dados da empresa, quase um quarto do volume global já vem de produtores que adotam agricultura regenerativa - conceito que abrange desde redução de emissões até aumento de renda no campo.
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Brasil 100%
Burity explicou que o Brasil ocupa papel central nesse plano. Além de sediar uma das principais fábricas da marca (a unidade de Araras, no interior do estado de São Paulo), o país se destaca pela eficiência produtiva.
“O Brasil tem uma produtividade muito boa. O desafio aqui não é aumentar a produção mas manter esse retorno econômico com uma pegada ambiental melhor”, disse Burity.
Ele citou como exemplo o uso considerado excessivo de fertilizantes em algumas regiões, cuja redução pode resultar em menor custo, menor emissão de carbono e até melhoria de renda para os produtores.
A Nestlé investe também em pesquisa de variedades mais resistentes e práticas agrícolas adaptadas às novas condições do clima.
“A mudança climática já está impactando as plantas. A produção agrícola, no geral, vai ficar mais difícil. Por isso precisamos agir agora”, explicou o executivo.
Um dos braços dessa estratégia é o programa de melhoramento genético de café arábica e robusta, que busca desenvolver variedades mais produtivas e resistentes a choques climáticos.
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O foco em sustentabilidade está integrado à operação e ao próprio desenho da marca, segundo Burity. Desde sua criação, a Nescafé sempre produziu localmente em países produtores.
“Hoje, quase metade do Nescafé no mundo é feito em fábricas instaladas nos países de origem. Isso nos obriga a desenvolver as cadeias locais”, disse.
“Fazemos isso não para ganhar selos ou agradar consumidores mas porque acreditamos que esse investimento é o único caminho para garantir nossa matéria-prima e criar valor compartilhado.”
Para o futuro imediato, a empresa projeta normalização da cadeia de suprimentos, o que pode reduzir a pressão sobre os preços que afetou o mercado no último ano.
“Temos projeções muito boas para que em 2025-2026 tenhamos uma cadeia de abastecimento em patamares regulares”, disse Burity.
Com a volatilidade no mercado global, o executivo evitou fazer previsões de preços, mas se disse otimista com o médio prazo.
“Com os níveis atuais de remuneração, os produtores estão motivados a produzir mais. E, com condições climáticas mais normalizadas, a tendência é a de uma maior oferta nos próximos anos”, explicou.
Em um prazo mais longo, entretanto, a transição para modelos sustentáveis não pode ser trabalhada como uma agenda paralela: precisa se consolidar no centro da estratégia corporativa da marca.
“Nós já executamos muita coisa, mas ainda há uma montanha para subir. Essa é uma jornada eterna, mas essencial para garantir o futuro do café - e do nosso negócio”, disse.