Ela era ‘a menina que perguntava demais’. E agora recebeu o ‘Nobel da agricultura’

A engenheira agrônoma Mariangela Hungria foi premiada com o World Food Prize por tornar o uso de bioinsumos uma solução escalável para a produção de alimentos. E desenvolve hoje um projeto para incentivar mulheres a ingressar na ciência

Mariangela Hungria recebeu o 'Nobel de agricultura' pelo seu trabalho em bioinsumos
05 de Junho, 2025 | 12:11 AM

Bloomberg Línea — Desde criança, Mariangela Hungria sonhou em ser cientista. O incentivo veio da avó, que lhe deu de presente, aos oito anos, o livro Caçadores de Micróbios.

Nas páginas da obra, Hungria conheceu a trajetória de grandes microbiologistas e, a partir desse contato, passou a se imaginar seguindo a mesma carreira. Anos depois, teve contato com a biografia de Marie Curie, cientista laureada duas vezes com o Nobel por suas descobertas no campo da radioatividade.

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“No dia seguinte, disse que queria ser microbiologista. Guardo esse livro [Caçadores de Micróbios] até hoje como um tesouro”, disse a pesquisadora à Bloomberg Línea.

Ela também disse que ouviu muitos “nãos” ao longo de sua trajetória: “por ser mulher, por ser a menina que perguntava demais, que acreditava em biológicos, por ter sido mãe por acidente, por ter uma filha com necessidades especiais”.

A mentora de Hungria foi Joana Doberainer, um dos nomes mais conhecidos em biologia do solo. Segundo informações do site da Embrapa, Doberainer foi responsável, juntamente de sua equipe, a encontrar mais de nove novas espécies de bactérias diazotróficas, que ajudam na fixação de nitrogênio nas plantas.

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A instituição também destaca o trabalho de Doberainer como mulher em um ambiente predominantemente masculino.

“A doutora Joana Doberainer, minha mentora, nunca questionou meu valor por ser mulher, mãe, ou por não ter estudado fora. Foi uma visionária, e eu devo muito a ela”, disse Hungria na entrevista.

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59 anos depois, em maio de 2025, o nome de Hungria ganhou projeção global ao receber o World Food Prize, o mais prestigioso prêmio internacional da agricultura, por sua contribuição ao uso de bioinsumos em larga escala no Brasil.

A honraria, pensada pelo agrônomo Norman Borlaug, que criou o conceito da Revolução Verde, reconhece a trajetória de cientistas que transformam a produção de alimentos com impacto global.

O trabalho de Mariangela Hungria que foi premiado neste ano consiste no uso de bactérias benéficas no cultivo da soja, sobretudo no Paraná, onde ela identificou microrganismos capazes de melhorar a fixação de nitrogênio e dispensar o uso de fertilizantes químicos.

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“Eu não esperava ganhar o prêmio, muito menos essa repercussão tão bonita, que veio de todos os lados: partidos, empresas, agricultores. Acho que o mais legal é isso: parece que conseguimos unir os setores em torno de uma causa comum, que é a sustentabilidade”, disse Hungria.

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O trabalho da pesquisadora resultou na adoção em larga escala da reinoculação anual e, depois, da co-inoculação com diferentes tipos de bactérias, e já é utilizado em aproximadamente 85% da área cultivada com soja no país (cerca de 40 milhões de hectares).

Os bioinsumos consistem em técnicas de origem biológica que tentam maximizar a produção de alimentos. Trata-se de uma técnica considerada mais sustentável do que a utilização de químicos, por exemplo.

Hungria é agrônoma e contou que, quando se formou como engenheira agrônoma, a aposta da vez era justamente a utilização de adubos químicos, enquanto não se cogitava a viabilidade de uma agricultura baseada em insumos biológicos.

Hoje, o Brasil é um dos principais produtores de bioinsumos no mundo. Como noticiou recentemente a Bloomberg Línea, a próxima fronteira é ampliar a presença no mercado internacional.

As exportações brasileiras de bioinsumos movimentam cerca de US$ 90 milhões por ano, e a expectativa é que essa fatia cresça nos próximos anos.

Um legado com bioinsumos

Com mestrado e doutorado no Brasil, Hungria disse que enfrentou ceticismo acadêmico por não ter formação internacional. Por isso, aceitou convite para o pós-doutorado das universidades de Cornell e da Califórnia em Davis, ambas nos Estados Unidos, mas recusou permanecer para trabalhar nesse país.

“Sabia que o impacto do meu trabalho seria muito maior no Brasil”, disse.

Mariangela Hungria

Depois de seis anos na Embrapa Agrobiologia, no Rio de Janeiro, Hungria migrou para a Embrapa Soja, em Londrina (PR), em 1991, para conciliar o trabalho com a família.

Começou do zero: novo laboratório, nova equipe, nova estratégia. “Foi quando realmente me tornei profissional. Tive autonomia para fazer o que acreditava.”

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No Paraná, viu de perto a urgência dos produtores médios e grandes e continuou a desenvolver soluções.

A abordagem era clara: só recomendaria um biológico que fosse capaz de igualar ou superar os rendimentos das alternativas químicas. E a lógica deu resultado.

Com dados consistentes sobre o seu campo, conquistou a confiança dos agricultores, sobretudo quando os ensaios demonstraram que a reinoculação anual gerava aumento de produtividade superior ao do uso de fertilizantes nitrogenados.

Com o aumento da demanda, surgiram novas pesquisas. Primeiro, vieram os inoculantes para milho e trigo, que, além de fixarem nitrogênio, estimulam o desenvolvimento radicular, facilitando a absorção de água e nutrientes.

Depois, a combinação desses microrganismos com os da soja levou à criação da co-inoculação, uma tecnologia que se tornou referência e ajudou a ampliar o uso de bioinsumos no Brasil, explicou Hungria.

Para Luis Rua, secretário de Comércio e Relações Internacionais do Ministério da Agricultura, a premiação da Mariangela representa um marco para o país.

“É um Brasil conectado com o mundo, que participa das discussões. Isso, para além de qualquer questão política, mostra a excelência da nossa produção agropecuária e premia a instituição de que mais gosto: a Embrapa”, disse em entrevista à Bloomberg Línea em evento de bioinsumos na semana passada.

Oportunidade para o agro

Ao longo de mais de 30 anos de carreira, Hungria sempre teve como foco o impacto local e levar inovação ao campo, sem deixar de lado a realidade do agricultor.

“Muitos diziam que biológicos eram coisa de agricultura alternativa, de nicho. Mostramos que dá para ser sustentável sem abrir mão da produtividade. Essa foi a chave.”

Apesar de desafios recorrentes, a pesquisadora disse acreditar que o agro brasileiro está diante de uma grande oportunidade para se reinventar.

“Todos os setores, do grande produtor à agricultura familiar, querem sustentabilidade. Existem maus profissionais em todas as áreas, mas eles não são maioria”, afirmou.

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Para ela, o diálogo entre os diferentes perfis de produtores é possível, e também muito necessário, para enfrentar os desafios climáticos e sociais do país.

“Não precisava esperar a COP30 [em Belém em novembro deste ano] para que esses setores se sentassem à mesa e encontrassem denominadores comuns. Ambos querem produzir alimentos, usar mais biológicos e ser sustentáveis.”

A integração entre diferentes elos da cadeia do agronegócio também pode ser benéfica em termos práticos, segundo Hungria.

A cientista citou um projeto da Fundação Bunge, uma das maiores tradings de grãos do mundo, com atuação relevante no país, como exemplo de cooperação entre grandes empresas do ramo e agricultores familiares.

No projeto, eles descobriram que abelhas aumentam a produtividade da soja, o que levou os agricultores a incentivarem a criação de colmeias nas propriedades vizinhas.

“O agricultor grande ganha em produtividade, os pequenos produtores ganham renda com a produção de mel. E todos se preocupam mais com o uso de defensivos, porque não querem matar as abelhas.”

Para ela, questões como mudanças climáticas e segurança alimentar exigem muito mais do que soluções pontuais.

“Não adianta pulverizar uma praga com agrotóxico. Mudança climática é um problema global. Se o entorno do grande produtor não estiver bem, nada funciona.”

Instituto para incentivar mulheres

A educação, inclusive, é um dos principais gargalos que ela enxerga no país. Dessa inquietação nasceu também um projeto pessoal: criar um instituto para incentivar mulheres em diferentes áreas, que ela planeja criar a partir dos prêmios que recebeu ao longo da vida.

“Um desses [prêmios] me permitiu fazer doutorado e pós-doutorado nos Estados Unidos. Agora, quero que outras mulheres tenham essa chance.”

O plano de Hungria, aos poucos, ganha contornos de sair do papel e já tem até nome: Instituto H3, referência às três “Hungrias” da família, dela e de suas duas filhas.

A ideia é premiar mulheres da ciência agrícola, da comunicação (no caso da filha mais velha, que é jornalista) e aquelas que atuam em prol de pessoas com deficiência (em homenagem à filha mais nova).

“Já me disseram que eu nunca daria em nada. Hoje, até colegas da faculdade reconhecem que eu fui além do que muitos esperavam.”

“Meninas, vocês podem ser o que quiserem. Se alguém disser que vocês não podem, não acreditem. E se ouvirem um ‘não’, deixem entrar por um ouvido e sair pelo outro”, aconselhou.

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Naiara Albuquerque

Formada em jornalismo pela Fáculdade Cásper Líbero, tem mestrado em Ciências da Comunicação pela Unisinos, e acumula passagens por veículos como Valor Econômico, Capricho, Nexo Jornal e Exame. Na Bloomberg Línea Brasil, é editora-assistente especializada na cobertura de agronegócios.