Do pó à manteiga: como a tarifa dos EUA pressiona a cadeia de cacau no Brasil

Sem competitividade no mercado americano com as taxas, indústrias que processam os derivados projetam maior ociosidade e retração da moagem, com efeito dominó sobre a cadeia, disse a presidente da AIPC, Anna Paula Losi, à Bloomberg Línea

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Bloomberg Línea — A decisão dos Estados Unidos de impor uma tarifa de 50% sobre o Brasil, em vigor desde o começo de agosto, tem atingido em cheio um segmento importante do agronegócio: os derivados de cacau, como a manteiga, o pó e o liquor, que são essenciais para diferentes aplicações na produção de chocolate.

A sobretaxa ameaça inviabilizar um mercado que responde por quase um quinto das exportações brasileiras do setor e agrava o desafio de uma cadeia já pressionada por déficit produtivo e volatilidade de preços.

Segundo a Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), a tarifa americana inviabiliza o segundo maior mercado de destino das vendas do segmento para o Brasil e, “por tabela”, ameaça ampliar a ociosidade da indústria, já pressionada por queda na moagem e escassez de amêndoas.

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“Quando ele [Trump] coloca uma taxa de 10% para um país, 15% no outro, 25% no outro e 50% contra o Brasil, nós perdemos competitividade. Dessa forma, o país perde os EUA, um mercado de exportação importante”, disse a presidente-executiva da AIPC, Anna Paula Losi, em entrevista à Bloomberg Línea durante a ExpoCacau, evento que reuniu grandes empresas do setor.

O desafio para o setor começa uma etapa antes, no fornecimento da matéria-prima antes do processamento.

Atualmente, produtores no Brasil entregam em média entre 190 mil e 200 mil toneladas de cacau ao ano para as empresas moageiras - e seria necessário alcançar cerca de 300 mil toneladas para garantir a autossuficiência.

Esse déficit leva a indústria moageira a importar amêndoas da África para manter em funcionamento sua capacidade instalada, de aproximadamente 275 mil toneladas.

A Bahia concentra a maior parte da produção, seguida pelos estados do Pará, do Espírito Santo e de Rondônia.

Hoje, a produção de cacau commodity da região, sem ser do tipo fino e artesanal, é destinada em grande parte às moageiras.

São elas as responsáveis por aplicar os primeiros processos industriais na amêndoa e transformá-la em pó e manteiga de cacau, dois subprodutos valiosos para a produção do chocolate.

Cargill, Barry Callebaut e a Ofi (ex-Olam) são as principais moageiras em operação no país, com plantas na região de Ilhéus, no oeste bahiano. Depois, esses derivados são vendidos a gigantes globais como Mars e Nestlé para a produção de chocolate destinada ao consumidor final.

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A Bloomberg Línea acompanhou um dia de visitas à fábrica da Cargill, em Ilhéus.

Ali, o processo começa com a limpeza e a moagem das amêndoas de cacau, que gera uma pasta chamada de liquor, que é então prensado para a separação natural entre dois subprodutos: de um lado, a manteiga de cacau (cerca de 45%); de outro, a torta de cacau (55%), um resíduo sólido que, depois de moído, dá origem ao cacau em pó.

Essa proporção é fixa. Ou seja, não é possível produzir apenas um derivado sem gerar o outro.

Exportação de derivados

A Argentina é o principal destino das exportações brasileiras de derivados de cacau, com US$ 83 milhões no semestre, seguida por Estados Unidos (US$ 35 milhões), Chile (US$ 10,4 milhões) e Holanda (US$ 10,3 milhões).

Ou seja, os EUA respondem por cerca de 18% das exportações de derivados do país. Em 2024, esse mercado movimentou US$ 72,7 milhões, e só no primeiro semestre de 2025 somou US$ 64,8 milhões.

Em um cenário em que a tarifa americana é mantida sobre as exportações brasileiras, a AIPC estima uma perda de US$ 36 milhões, cerca de R$ 180 milhões, apenas neste ano.

O impacto mais imediato recai sobre a manteiga de cacau, já que praticamente toda essa produção é destinada ao mercado americano.

Sem esse destino, as indústrias não conseguem manter a produção plena, o que pode elevar a ociosidade média para 23,8% do total e, em cenário mais crítico, até 37%.

O risco, segundo a entidade, é o de uma retração ainda maior na moagem, que já caiu 14% no primeiro semestre, além de um efeito dominó sobre toda a cadeia: menos exportações, mais ociosidade industrial, queda da demanda por amêndoas e, por fim, pressão sobre os produtores e também sobre os preços.

“Quando olhamos para o montante de recebimento nacional de cacau no primeiro semestre frente ao meu potencial produtivo no período, sem contar com importação, a ociosidade da fábrica seria de 57% [de todas as moageiras do país]. Que indústria funciona com uma ociosidade acima da metade do que ela tem potencial para produzir?”, questionou Losi.

A medida protecionista americana também afeta operações feitas sob o regime de drawback, que permite importar amêndoas com suspensão de impostos desde que os derivados sejam exportados em até dois anos.

O governo brasileiro prorrogou os prazos do drawback em um ano, mas o setor considera a medida insuficiente. Isso porque, sem o mercado americano, as concessões ficam mais complicadas e chegam a ser “inviáveis”, de acordo com especialistas do setor, o que gera risco de multas e aumento dos custos.

Oscilação dos preços

Além da questão tarifária, o preço do cacau vem em uma espiral crescente nos últimos anos, diante de problemas nas colheitas dos principais produtores da amêndoa, em ranking liderado atualmente por Costa do Marfim e Gana. O Brasil ocupa a sexta posição na produção mundial do fruto.

Os futuros da commodity, que rondavam os US$ 2.300 por tonelada no fim de 2022, subiram para até US$ 12.600 em dezembro de 2024.

Neste ano, a amêndoa tem passado por flutuações e perdeu força nos últimos meses, cotada a US$ 7.527 em 1 de setembro, ainda bem acima, portanto, do patamar anterior. No acumulado do ano, a amêndoa caiu cerca de 30% na ICE, a bolsa de negociação de commodities em Nova York.

O fator preço é fundamental, com a venda do cacau adotando como base as cotações negociadas na ICE.

Apesar disso, produtores reclamam do que chamam de “descasamento de preços”.

Historicamente, o cacau brasileiro opera com ágio, já que a produção não cobre a demanda interna. Por essa razão, empresas que compram a amêndoa oferecem um prêmio sobre o produto brasileiro.

“Como o Brasil tem um déficit, na maior parte do tempo vai existir esse ágio. Hoje o cacau brasileiro é o mais caro do mundo”, explicou Losi.

Em momentos de queda da demanda ou excesso de oferta, porém, ocorre o deságio: o preço interno pago pela amêndoa aos produtores fica abaixo da bolsa internacional, o que gera insatisfação entre agricultores, sobretudo os pequenos, que representam cerca de 70% da produção nacional de cacau.

Na ponta produtora, agricultores tentam ganhar eficiência com a mecanização e o uso de biológicos na produção e na colheita da amêndoa. Mas a instabilidade de preços e a dependência de importações criam incertezas.

“Se o Brasil tiver volume [de produção], pode até perder parte desse prêmio, mas ganha competitividade e estabilidade”, disse Losi, que apontou a cadeia do café como um exemplo a ser seguido pelos cacauicultores.

“Devemos buscar o mesmo caminho que o café percorreu: construir escala, diversificar nichos e explorar subprodutos como polpa e mel do cacau”, disse Losi.

Para especialistas, a solução de longo prazo está em aumentar a produção nacional e reduzir a dependência externa.

A produtividade média no Brasil é de 350 kg/ha, mas especialistas indicam que poderia atingir até 1.000 kg/ha com manejo adequado. A meta de autossuficiência é vista como crucial para blindar o setor contra choques externos.

Diante desse cenário, o setor tem feito ações diplomáticas para que o cacau e seus derivados sejam incluídos na lista de exceções das tarifas americanas, além de buscar medidas como a prorrogação dos prazos do drawback, a criação de linhas de crédito específicas e a diversificação de mercados.

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