Opinión - Bloomberg

Por que o próximo Papa será italiano, não importa qual seja sua nacionalidade

A história do papado está intrinsecamente ligada à Itália, desde os Estados Papais até a criação da Cidade do Vaticano como um país independente em 1929. E a relação entre eles ainda se reflete nos dias atuais

Bishops arrive for the funeral of Pope Francis in St. Peters Square in Vatican City, on Saturday, April 26, 2025. Global leaders paid tribute and sought to associate themselves with the legacy of the late Pope Francis, highlighting his role in key global conflicts at a time of heightened geopolitical tensions. Photographer: Alessia Pierdomenico/Bloomberg
Tempo de leitura: 5 minutos

Bloomberg Opinion — Já faz quase meio século que as perguntas não podem ser respondidas com veracidade: “O Papa é italiano?”

Durante esse tempo, a Igreja Católica Romana foi liderada por um polonês, um alemão e um argentino – a mais longa linha consecutiva de não italianos desde que sete franceses ocuparam o trono de São Pedro. E isso foi durante o período de 67 anos no século XIV, quando o papado foi transferido para Avignon, na França.

Até a eleição de João Paulo II em 1978 – nascido Karol Wojtyla e arcebispo de Cracóvia –, houve 455 anos de papas italianos.

Enquanto a Santa Sé se prepara para o conclave que começa nesta quarta-feira (7) para eleger um sucessor para o falecido Papa Francisco, uma lista não oficial, mas autorizada, de 22 papabili (papas aptos) inclui apenas cinco cardeais italianos.

PUBLICIDADE

De fato, os principais porta-estandartes das alas liberal e conservadora da Igreja são do Sudeste Asiático e da África Ocidental, respectivamente: o cardeal Luis Antonio Tagle, das Filipinas, e o cardeal Robert Sarah, da Guiné.

Leia mais: Quem são os candidatos mais fortes para se tornar o próximo Papa

Mesmo que um italiano seja ungido, ele vai liderar uma das organizações mais diversificadas e globalizadas, religiosas ou não: o papa é o chefe espiritual e moral designado de quase 1,4 bilhão de pessoas em todo o mundo que se identificam como católicas. A Itália não é nem mesmo o país católico mais populoso. Esse seria o Brasil.

PUBLICIDADE

E, no entanto, “O Papa é italiano?” ainda é uma pergunta pertinente.

A chance de ganhar o papado aumenta com a capacidade de falar italiano (tanto Tagle quanto Sarah são fluentes). O Papa João Paulo II, que reinou de 1978 a 2005, era famoso por falar oito idiomas sem esforço, inclusive italiano. Seus sucessores, Bento XVI e Francisco, também falavam italiano.

Leia mais: Papa Francisco buscou desatar nós da Igreja Católica. Conclave vai testar seu legado

Bento foi um dos pilares da burocracia do Vaticano por muito tempo e falava um italiano fluente, com toques de sotaque alemão.

PUBLICIDADE

Francisco era orgulhosamente argentino, mas, como muitos de seus compatriotas, era descendente de imigrantes italianos e falava o idioma de seus ancestrais da Ligúria. “O papa fala italiano?” ainda será um ponto crítico para o novo pontífice. Há vários motivos para isso.

Primeiro, o papa é tecnicamente o bispo de Roma – o sucessor de São Pedro, o membro sênior dos 12 discípulos originais de Jesus. Como tal, suas responsabilidades incluem ministrar aos paroquianos de Roma.

Ele pode nomear e nomeia auxiliares para lidar com essas tarefas sacerdotais, mas ainda precisa fazer mais do que aparições ocasionais em seu domínio imediato.

PUBLICIDADE

Em segundo lugar, o papa é o governante autocrático de um território independente encravado na capital da Itália, o remanescente de uma superpotência europeia que lutou contra reis, imperadores e sultões.

Ele tem defendido essa prerrogativa terrena com proeza maquiavélica ao longo dos séculos, apenas para manter a promessa que Jesus fez a Pedro: “Em verdade te digo que tudo o que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra será desligado no céu”.

Foi esse direito dado por Deus de elevar ao paraíso ou condenar ao inferno que ajudou a desencadear as cruzadas séculos atrás - e talvez tenha ajudado os poloneses a enfrentar Moscou no final da Guerra Fria e os filipinos a derrubar uma ditadura em 1983.

A existência do Vaticano como um país envolve uma política real muito mais suja.

À medida que a Itália moderna surgiu com a unificação da península no século XIX, os Estados Papais – governados diretamente pelo pontífice desde o século VIII – perderam lentamente propriedades até que Pio IX, cujo reino abrangia 3 milhões de súditos e um exército de 15.000 soldados, viu-se praticamente barricado na área ao redor da colina do Vaticano em Roma, onde fica a Catedral de São Pedro.

Ele se recusou a reconhecer o novo estado italiano em um impasse que duraria os quatro papados seguintes.

Somente em 1929, Pio XI e Benito Mussolini assinaram um tratado que criou a Cidade do Vaticano como um país separado, dando ao papado poderes terrenos mais uma vez em troca do reconhecimento papal da Itália moderna e de uma compensação financeira pela perda de seus territórios. Nesse sentido histórico, o papado moderno é inseparável da Itália.

A piada de mau gosto da Casa Branca sobre a IA, que imaginou o presidente dos EUA como o próximo papa, pode de fato contribuir para a política do conclave – dificultando a ascensão de um cardeal americano ao trono papal.

Leia mais: Papa Francisco foi um defensor da agenda ambiental. Seu legado pode estar em risco

A Igreja ainda se lembra do antigo papado de Avignon como uma época em que os pontífices desfrutavam de menos poder, tendo ficado sob o domínio dos monarcas franceses.

É improvável que os cardeais modernos elejam um pontífice que possa ser manipulado por Washington, muito menos pelo próprio presidente americano – que, até onde sei, não fala italiano fluentemente.

De qualquer forma, o entrelaçamento entre a Itália e o papado continuará. Toda essa crueldade histórica envolvida resultou, ironicamente, em uma espécie de círculo virtuoso.

O Vaticano, com espaço físico e independência garantidos pelo Estado italiano, continua sendo o guardião de alguns dos maiores tesouros da arte e da arquitetura italianas.

E, à medida que a Igreja Católica se tornou mais global, toda essa linda filigrana italiana se tornou parte do soft power projetado pela Santa Sé – um carisma inextricável da Itália.

Muito se fala em separar o papado de suas raízes europeias e italianas à medida que a igreja se torna mais africana, asiática e latino-americana.

Isso será difícil.

Afinal de contas, é a Igreja Católica Romana.

E ela sempre foi capaz de desempenhar um papel duplo. Ao longo dos séculos, os papas falaram urbi et orbi – expressão latina que significa “para a cidade e para o mundo”, ou seja, tanto para Roma quanto para o planeta.

O próximo papa pode vir de fora da Itália – mas ele terá que se tornar italiano.

Esta coluna reflete as opiniões pessoais do autor e não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Howard Chua-Eoan é colunista da Bloomberg Opinion e escreve sobre cultura e negócios. Anteriormente, atuou como editor internacional da Bloomberg Opinion e foi diretor de notícias da revista Time.

Veja mais em Bloomberg.com

Leia também

Crise do império do coco: Ducoco propõe a credores pagar 10% da dívida

Do frete marítimo a portos: como a guerra tarifária afeta a logística no Brasil