Bloomberg Opinion — Nosso fascínio com as rixas entre irmãos pelo direito dos primogênitos de serem bem sucedidos vem de mitos e lendas antigas. Para cada Caim que assassina Abel, há um Jacó que supera um irmão mais velho e lento Esaú para ganhar a herança de seu pai.
Esses arquétipos não são menos potentes hoje em dia. O sucesso da série Succession, da HBO, sobre os filhos da família Roy que conspiram pela primazia do império midiático de seu pai Logan é construído sobre eles. E a vida imita a arte.
Em 2010, os ingleses encararam a disputa dos dois irmãos Miliband pela liderança do partido trabalhista. O mais velho no partido, David, pressupôs que a vaga era sua até que seu irmão mais novo Ed o desafiou inesperadamente e ganhou. Durante um almoço que tive com o irmão derrotado na semana seguinte, ele pegou minha cópia do The Guardian, que havia apoiado seu irmão, e a jogou no chão. Pouco depois, ele deixou o Reino Unido para exilar-se em Nova York e recusou-se a falar com seu irmão por muitos meses.
Com a publicação de sua autobiografia, Spare, e longas entrevistas nas televisões britânica e americana, o príncipe Harry dirigiu e produziu habilmente seu próprio melodrama. Detalhes lacerantes de suas brigas com William, Príncipe de Gales, garantirão aos irmãos um lugar na história. Afinal, a história repercute de maneira real. Em todo o mundo, todas as famílias se identificam. Mas as apostas são mais baixas para o resto: as partes prejudicadas não dão entrevistas para Oprah Winfrey.
De muitas maneiras, o príncipe Harry, Duque de Sussex e segundo filho do rei Charles, muitas vezes pareceu se sentir em segundo plano no Palácio de Buckingham. Agora ele conseguiu sua vingança ao publicar uma autobiografia sincera, escrita por um autor americano. O título vem de uma piada que Charles contou para a princesa Diana no nascimento de Harry – seu trabalho estava feito porque agora ele tinha “um herdeiro e um reserva”. A palavra “spare” significa “sobressalente” em português.
Os tabloides britânicos já massacraram Harry por trair os segredos da família, ao mesmo tempo em que publicavam toda fofoca lançada. O material indiscreto e lúgubre pirateado dos primeiros exemplares do livro amplificará as enormes vendas antecipadas e a exposição mundial.
Os comentaristas muitas vezes chamaram a questão de “a novela real”, mas agora teremos a versão do horário nobre. Harry conta como se engalfinhou com William e foi jogado no chão em cima de um comedouro dos cães que quebrou e machucou suas costas. Ouvimos sobre como o príncipe perdeu sua virgindade com uma mulher mais velha em um campo atrás de um bar. Ele cheirou cocaína, ingeriu cogumelos e fumou maconha.
Para consternação dos antigos companheiros de exército, o Duque de Sussex também relata o abate de 25 combatentes Talibãs durante uma patrulha no Afeganistão. Harry afirma não ter sentido nada na época – eram como “peças de xadrez” retiradas do tabuleiro. Falar sobre os Talibãs que ele ajudou a matar dificilmente aumentará sua segurança pessoal.
O Duque também condena o pacto infernal entre o Palácio de Buckingham e os principais tabloides britânicos. Aliás, ele acusa sua família de jogar sua esposa Meghan, Duquesa de Sussex, aos lobos a fim de melhorar sua própria imagem na imprensa.
Seu irmão e seu pai não quiseram responder à altura. O rei Charles dificilmente está em condições de repreender seu filho mais novo por “acabar com a magia” – o que arruinaria o encanto da monarquia, como Walter Bagehot advertiu no século XIX. Como Príncipe de Gales, Charles cooperou em uma entrevista biográfica e televisiva na qual confessou que seu casamento nunca havia tido amor verdadeiro. Sua esposa, Diana retaliou à altura, destacando sua amante Camilla Parker-Bowles - agora esposa do rei - por ser “a terceira pessoa” em seu casamento.
O rei não foi tão criticado na entrevista de seu filho com Tom Bradby no domingo (8): suas habilidades como pai foram gentilmente ridicularizadas, mas o afeto do filho por seu pai também transpareceu. Mesmo com a suposta frieza da família real britânica, Harry elogiou o pai por pedir desculpas após não oferecer a terapia que era obviamente necessária após a morte de Diana.
O verdadeiro veneno ficou reservado para seu irmão, a quem ele acusa de repetir as falas do jornal Fleet Street sobre o suposto jeito autoritário de Meghan. Ninguém pode julgar a veracidade das alegações sobre incidentes que ocorreram a portas fechadas, mas algo deu muito errado em uma relação já competitiva. Brigas entre garotos são comuns, mas dois adultos discutirem sobre Harry fazer a barba para o dia de seu casamento parece absurdo, se não patético.
William e sua esposa Kate claramente não se deram bem com Meghan desde o início. Nada de anormal nisso, mas Harry afirma que eles não gostavam de sua esposa porque ela era divorciada, mestiça e atriz. Depois disso, eles não conseguiam parar de brigar mesmo no funeral de seu avô Philip. Charles, segundo ficamos sabendo, foi forçado a implorar: “por favor, rapazes, não façam dos meus últimos anos de vida um inferno”. Seu desejo pode não se realizar.
A reconciliação com parentes afastados é o objetivo declarado de Harry, mas é difícil acreditar que ele está no caminho certo. Espero que seu pai o convide para sua coroação em caráter não oficial. Mesmo assim, a guerra do Duque afastado contra a burocracia institucional da família real vai continuar. Mas se ela é tão podre como ele diz, por que ele ainda se agarra ao seu título?
Harry teve de responder essa pergunta em uma entrevista para o programa 60 Minutes nos EUA. Sua resposta foi: “e faria alguma diferença?”
Seria mais sensato cortar seus vínculos oficiais com o Palácio enquanto tenta recuperar algo nos escombros de sua relação privada com seu irmão. Mas possivelmente, Harry só gosta de pertencer à família real porque está acostumado e isso convém a ele e a sua esposa. Existe um paradoxo: o homem que abalou a monarquia ao sair dela, mas que, de alguma forma, não consegue abandoná-la.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.
Martin Ivens é editor do Times Literary Supplement. Foi editor do Sunday Times de Londres e seu principal comentarista político.
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