Gustavo Franco: o desafio fiscal vai além da revisão do teto de gastos

Em entrevista à Bloomberg Línea, ex-presidente do BC e sócio da Rio Bravo defende uma reforma das regras orçamentárias para tornar o gasto público mais sustentável e eficiente

É preciso corrigir os desequilíbrios fiscais na origem
15 de Outubro, 2022 | 02:35 PM

Bloomberg Línea — Ex-presidente do Banco Central e sócio-fundador da gestora Rio Bravo Investimentos, o economista Gustavo Franco avalia que a criação de uma nova âncora fiscal no próximo governo deveria levar em conta uma atualização das regras sobre a própria elaboração do Orçamento. Em entrevista exclusiva à Bloomberg Línea, Franco diz que é preciso corrigir os desequilíbrios fiscais na origem da formulação das despesas e não somente definir um limite para os gastos, como ocorre hoje com a regra do teto.

O economista lançou este mês a segunda edição do seu livro “Cartas a um Jovem Economista” (Editora Sextante), publicado originalmente em 2010, em que faz reflexões sobre o seu aprendizado na carreira. Presidente do BC entre 1997 e 1999, no governo de Fernando Henrique Cardoso, Gustavo Franco é um dos mais importantes economistas do país e fez parte da equipe econômica responsável pela criação do Plano Real, em 1993.

À Bloomberg Línea, Franco evitou comentar o resultado das urnas e falar dos apoios que o candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva recebeu de economistas ligados ao Plano Real e de Fernando Henrique Cardoso. Franco foi filiado ao PSDB entre 1989 e 2017. Desde então tem apoiado o Partido Novo. Sobre a eleição em si, o economista avalia que a expectativa de um processo tumultuado não se confirmou no primeiro turno e que o clima de tranquilidade do dia da votação foi um ponto positivo que ajudou a acalmar os temores do mercado financeiro e do empresariado.

Na nova edição do livro, Gustavo Franco diz que reviu alguns textos levando em conta os acontecimentos que ocorrem no Brasil e no mundo desde a publicação original, há 12 anos, especialmente os reflexos da crise econômica de 2008, o drama do impeachment do governo Dilma Rousseff e as pedaladas fiscais, a Operação Lava Jato, a consolidação do sistema de metas do BC e também o avanço tecnológico que permitiu o surgimento das criptomoedas e de sistemas de transferência instantânea como o Pix.

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“Esses temas novos trazem uma perspectiva sobre o que já tinha acontecido. Também pude voltar ao Plano Real e para as controvérsias lá de trás. Algumas pessoas achavam que a gente fez tudo errado. A âncora cambial era isso e aquilo. Passaram-se 28 anos e está aí a criatura. A gente não pode parar de celebrar as coisas que funcionam e que a gente fez direito”, diz Franco.

“Também pude escrever um pouco sobre como é trabalhar no sistema financeiro. Hoje tenho a capacidade de escrever sobre as três vertentes da profissão. A acadêmica, a pública e a do setor privado, e o setor financeiro especificamente. Eu não tinha essas três experiências quando fiz o livro em 2010. Então ficou um livro mais completo para o jovem que procura essa profissão”, afirma.

Ele também acaba de publicar, junto do economista Fabio Giambiagi, o livro “Antologia da Maldade 2″ (Companhia das Letras), que reúne mais de 1.500 frases de políticos, empresários, artistas, jornalistas, entre outros, que ilustram o cenário brasileiro e mundial, de forma cômica e trágica.

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Reforma orçamentária

Em entrevista à Bloomberg Línea, Franco avalia que o equilíbrio fiscal é uma das questões que o Brasil não conseguiu resolver ao longo das últimas décadas desde o Plano Real e isso passa por organizar uma discussão orçamentária mais sólida, em que os deputados e senadores são obrigados a discutir a escassez de recursos. “No resto do mundo, onde quer que exista uma discussão orçamentária séria, os parlamentares competem por recursos escassos. Aqui, não. Isso não leva a lugar algum senão à irresponsabilidade”, diz.

Ele defende que o Congresso e o governo voltem a discutir um projeto de lei, já aprovado no Senado em 2016, que propõe mudanças na Lei de Finanças Públicas e hoje tramita na Câmara. Entre outros pontos, o projeto (PLP 295/2016) estabelece regras mais rígidas para a previsão de receitas na elaboração do Orçamento e prevê o monitoramento dos gastos públicos com base em metas, com avaliações periódicas.

“O ideal é que a gente pudesse extrair âncoras fiscais daí, e não de medidas como um teto constitucional na despesa pública, que causa todo tipo de distorção como os críticos do nosso teto não se cansam de apontar”, afirma Franco.

Especialistas em contas públicas e economistas do mercado financeiro têm apontado que falta espaço no teto de gastos em 2023 para acomodar despesas que têm sido prometidas na campanha eleitoral e que são necessárias, entre elas o aumento permanente do Auxílio Brasil a R$ 600 e o reajuste dos salários dos servidores públicos federais. As propostas são defendidas tanto por Jair Bolsonaro (PL) quanto por Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Gustavo Franco concorda que a eficácia da regra do teto de gastos é limitada e avalia que “será uma obrigação” reiniciar uma discussão sobre a âncora fiscal no primeiro semestre do ano que vem.

“A gente precisa aperfeiçoar essas regras do Orçamento, especialmente no que elas dialogam com os desequilíbrios fiscais que afetam a nossa sustentabilidade financeira e fiscal como nação do futuro. É a primeira das reformas de um novo cardápio que o próximo presidente deverá trazer”, afirma Franco.

Ele também aponta que a Lei de Responsabilidade Fiscal não estabeleceu limite para o endividamento da União e que esse poderia ser um ponto a ser avaliado na construção de um novo arcabouço fiscal.

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“Por que a LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] não determina algo sobre endividamento? Muitas vezes o parlamento trata o endividamento como se fosse apenas uma outra fonte de recursos. Só que não é. É uma oneração – não sobre alguém que está pagando o imposto no presente, mas sobre todos os nossos filhos e netos que vão ter que pagar essa dívida lá na frente. A gente trata como se essa dívida não tivesse que ser paga. Mas terá que ser”, afirma.

Independência do Banco Central

O economista também destaca o sucesso do Banco Central em combater a ameaça inflacionária, o que ficou comprovado durante a eleição. Depois de atingir um pico no primeiro semestre, a inflação vem cedendo desde então, ajudada pelos cortes de impostos do governo e a redução da alíquota do ICMS sobre combustíveis, energia elétrica e telecomunicações. Franco ressalta que a independência do Banco Central reforçou o sucesso da política monetária, especialmente num período de eleições.

“Essa é a primeira eleição que tem lugar com o Banco Central independente e com o presidente do Banco Central que vai permanecer no cargo durante dois anos da próxima administração, qualquer que seja o resultado da eleição. Isso alterou a dinâmica da inflação num período especialmente crítico da política brasileira”, diz Franco.

“É uma eleição difícil, concorrida. E no entanto a ameaça inflacionária foi domada. Pode-se discutir se o Banco Central pesou a mão demais nos juros. A discussão sobre dosagem da política monetária é um clássico. Mas o Banco Central tomou sua decisão. Foi bem-sucedido em domar a inflação. Temos uma grande vitória para todos nós que foi a consolidação desse conceito da independência do Banco Central, sobre o qual muita gente tinha dúvida. Muita gente que inclusive está concorrendo na eleição”, afirma.

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Outros desafios

Entre outros desafios que o Brasil enfrenta, Gustavo Franco também aponta a necessidade de atualizar a agenda de produtividade que, segundo ele, estava muito focada na privatização das empresas e na abertura comercial.

Na avaliação dele, existem poucas empresas públicas realmente saudáveis e que poderiam atrair o capital privado num processo de vendas. As demais estatais, em sua maior parte, são custosas demais, dão prejuízo e são difíceis de vender. Por isso, a agenda tem se concentrado muito mais nas concessões, em projetos de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos.

“O programa de concessões virou uma espécie de grande programa de transferência de responsabilidade de investimento para o setor privado. Que nome dar a isso? Não sei se isso é privatização. Talvez devêssemos dar um outro nome. Diferentes governos falam em fazer isso. Os mais à esquerda não gostam. Mas aceitam. Na falta de dinheiro, tem que fazer por aí”, afirma.

Outro ponto que precisa ser aprimorado é a reforma trabalhista. Segundo ele, existem temas que não foram tratados no projeto aprovado durante o governo Michel Temer e que precisam de uma resposta. Entre eles, está o desafio de incluir os trabalhadores informais da chamada “gig economy” – como os entregadores de aplicativos de delivery e motoristas de aplicativos – que estão fora das regras trabalhistas e não recebem benefícios e proteções sociais.

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Já no campo da reforma tributária, Franco avalia que a complexidade tributária do país não será resolvida com a adoção de um imposto único sobre valor agregado, como está previsto em propostas no Congresso.

“Muito da complexidade do sistema tributário revela, na verdade, muitos anos de aprendizagem sobre como tratar dificuldades e peculiaridades tributárias de cada setor da economia. E diferentes setores aprenderam coisas ao longo do tempo que estão nos códigos tributários. Não dá para achar que a gente pode jogar isso tudo fora, só para simplificar, não. Não é assim”, diz.

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“O que acontece é que a reforma trava. Sempre tem algum setor muito insatisfeito a ponto de jogar todas as suas energias em vetar o andamento da coisa. É que tem alguma coisa errada com a proposta. Só pelo fato de a gente não ter nunca conseguido votar uma coisa desse tipo, é que o projeto não está certo”, conclui.

Leia a seguir entrevista completa abaixo, editada para fins de clareza:

Bloomberg Línea: Qual a sua avaliação do resultado do primeiro turno?

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Gustavo Franco: Olhando do ângulo do mercado financeiro, a principal incerteza sobre a mesa era sobre o transcurso normal do processo da eleição. Claro que é só o primeiro turno. Mas foi super tranquilo. Sem incidentes. Sem chororô, sem reclamação. Exceto àquela associada ao resultado, que é do jogo. Mas a partida central transcorreu normalmente. Essa é a notícia mais importante. Os resultados foram anunciados. Os participantes estão agora tratando de alianças e se preparando para o jogo da volta. E isso é muito bom para o Brasil, para a economia. Tudo que tinha sido adiado na expectativa de um processo tumultuado e de muita volatilidade agora está voltando.

Alguns analistas apontaram que a eleição mostrou uma força do conservadorismo no Brasil e uma guinada mais à direita do Congresso. O senhor concorda?

Sobre os resultados, eu preferia não comentar. Não estou envolvido nas conversas políticas.

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Alguns nomes ligados ao centro declararam apoio ao Lula, como o Fernando Henrique Cardoso e o Armínio Fraga. Como vê esse movimento?

Vamos ver muitos movimentos desse tipo até ao segundo turno. Todos temos um encontro marcado com a cabine de votação. Em algum momento, todo mundo vai ter que fazer a sua opção.

O senhor cogita declarar apoio público a algum dos candidatos?

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Nada a comentar sobre os assuntos de eleição.

Falando então de economia, quais os desafios econômicos que o Brasil enfrenta na sua visão e que deveriam ser prioridade no próximo ano na sua avaliação?

Primeiro, sobre o presente, tem alguns acontecimentos importantes a registrar. O primeiro foi o sucesso em combater uma ameaça inflacionária que parecia avassaladora. E é inevitável que se traga para essa conversa o fato de que essa é a primeira eleição que tem lugar com o Banco Central independente e com um presidente do Banco Central que vai permanecer no cargo durante dois anos da próxima administração, qualquer que seja o resultado da eleição. Isso alterou a dinâmica da inflação num período especialmente crítico da política brasileira. É uma eleição difícil, concorrida. E, no entanto, a ameaça inflacionária foi domada.

Pode se discutir se o Banco Central pesou a mão demais nos juros. A discussão sobre dosagem da política monetária é um clássico. Mas o Banco Central tomou sua decisão. Foi bem-sucedido em domar a inflação. Temos uma grande vitória para todos que foi a consolidação do conceito da independência do Banco Central, sobre o qual muita gente tinha dúvida. Muita gente que inclusive está concorrendo na eleição. Esse é um ponto.

Quais são os outros pontos?

Outro ponto foi a própria atividade econômica. Havia muita discrepância de prognóstico para este ano e o ano que vem. E está melhor do que a maior parte dos analistas profissionais imaginavam. Não falo nem dos analistas amadores. Mesmo os profissionais estavam um tanto mais pessimistas do que os números acabaram vindo. O mercado de trabalho está um pouco mais forte do que todo mundo imaginava, o que é uma boa notícia.

A terceira notícia é o fiscal, que, claro, continua amedrontando muita gente. Mas não está amedrontando mais do que normalmente amedronta. É um problema crônico nosso, sobre o qual temos que pensar como vai ser. É um tema que é importante para os candidatos, para o próximo governo. Mas por que o Brasil precisa conviver com um risco fiscal tão grande e sempre? Por que o parlamento e os políticos estão sempre na direção da irresponsabilidade, como se isso fosse popular e fosse o lado da defesa do vulnerável, quando não é? Isso é inflacionário. A inflação não é a favor de ninguém. Ela é contra o pobre e vulnerável.

E, por isso, aí passando ao futuro, eu acho que nós temos uma obrigação no primeiro semestre do ano que vem de reiniciar uma discussão sobre âncora fiscal. Muita gente é contra o teto de gastos. Outros argumentam que a medida já se esgotou. Não se trata de ser contra ou a favor. Mas sua eficácia já está limitada mesmo. E todo mundo concorda que nós precisamos ter âncora. E isso tem que vir do Parlamento.

Temos uma grande vitória para todos que foi a consolidação do conceito da independência do Banco Central, sobre o qual muita gente tinha dúvida. Muita gente que inclusive está concorrendo na eleição

Gustavo Franco, ex-presidente do BC

Como lidar com esse desafio fiscal?

A resposta tem que vir idealmente da discussão da nova lei das finanças públicas, que é uma lei complementar muito arrumadinha, extensa, e que reforma as regras orçamentárias sobre as quais a gente tem discutido muito. O dito orçamento secreto é um grande tema político e econômico. E a gente precisa aperfeiçoar essas regras do Orçamento, especialmente no que elas dialogam com os desequilíbrios fiscais que afetam a nossa sustentabilidade financeira e fiscal como nação do futuro. É a primeira das reformas de um novo cardápio que o próximo presidente deverá trazer. Essa proposta, inclusive, já tem meio caminho andado no próprio Congresso.

Por que é tão difícil o Brasil sair dessa discussão da sustentabilidade fiscal? Compara esse desafio com o que foi enfrentado pelo senhor e a equipe econômica na época do Plano Real?

É como se fosse o mesmo desafio, a mesma bactéria, só que agora muito menor. A bactéria já sofreu muitos ataques. Tem uma capacidade de criar problemas muito menores do que no passado, mas ela ainda não morreu totalmente. O que a gente não fez ainda no assunto fiscal foi organizar uma discussão orçamentária sólida, como ocorre em muitos outros países, em que você coloca o Parlamento para discutir a escassez de recursos.

Parece que o Parlamento brasileiro não gosta dessa conversa de que os recursos são limitados. E parece que sempre trabalham como se não existisse restrição orçamentária. No resto do mundo, onde quer que exista uma discussão orçamentária séria, os parlamentares competem por recursos escassos. Aqui, não. Isso, evidentemente, não leva a lugar algum senão à irresponsabilidade. A gente precisa crescer nesse assunto. Virar adulto.

Como seria uma proposta de reforma da lei orçamentária, para criar esse ambiente de competição entre os parlamentares?

A expressão reforma orçamentária acho que é boa. Acho que vai tomar o lugar de outras que já foram feitas parcial ou totalmente, ou saíram da pauta e ficaram menos importantes, até porque se dividiram em pautas diferentes. Mas a reforma orçamentária vai virar uma das grandes do futuro, da nova safra.

O senhor tem trabalhado em desenhar alguma proposta? Tem tido conversas com alguém?

Acompanho as conversas em torno desse projeto de reforma da Lei das Finanças Públicas, que já passou no Senado. Agora, a discussão começou lá atrás na nossa época [no governo]. A gente não tinha ainda a Lei de Responsabilidade Fiscal. E tinha um debate entre nós se a gente faria uma LRF incluindo também temas orçamentários, que são limites ao endividamento, limites à folha de pagamento, e coisas desse tipo. Mas, optamos por não fazer.

É um assunto sensível politicamente. Os eventos recentes demonstram o quanto o assunto é sensível do ponto de vista político. Veja toda a discussão de emendas parlamentares, secretas e não secretas. É um assunto importante para o presidencialismo de coalizão. Para rearranjar as práticas orçamentárias, é preciso uma conversa profunda com o Congresso. Isso ficou para depois e depois. E tanto é difícil que, mesmo tendo concluído o projeto no Senado, ele parou na Câmara. Daqui para frente é o novo governo que vai tocá-lo para frente ou não, não sei. Se tiver uma ideia melhor sobre âncora fiscal, vamos ver.

Essa seria uma proposta mais contundente do que as reformas ao teto de gastos debatidas até agora?

Tem uma larga experiência internacional com regras fiscais estabelecidas inclusive por via constitucional. E aí há um debate se deve-se controlar o gasto ou o déficit diretamente, ou a dívida. A própria literatura acadêmica diz que o ideal seria trabalhar com o nascimento do gasto e o nascimento das receitas, que é algo que ocorre no âmbito do Orçamento. É onde o desequilíbrio fiscal nasce. Limitá-lo através do teto é mais difícil do que se trabalhar na prevenção, que é o que a discussão orçamentária permite.

Alguns países como os EUA, por exemplo, têm instituições orçamentárias mais elaboradas. Isso ocorre também em outros países europeus, que têm um histórico de vida parlamentar mais longo que o nosso. A gente ainda está desenvolvendo esse arcabouço. O ideal é que a gente pudesse extrair âncoras fiscais daí e não de medidas como um teto constitucional na despesa pública, que causa todo tipo de distorção como os críticos do nosso teto não se cansam de apontar.

O ideal seria trabalhar com o nascimento do gasto e o nascimento das receitas, que é algo que ocorre no âmbito do Orçamento. É onde o desequilíbrio fiscal nasce. Limitá-lo através do teto é mais difícil do que se trabalhar na prevenção

Gustavo Franco, economista

Em um artigo recente, o senhor comparou o projeto com uma segunda Lei de Responsabilidade Fiscal. Seria algo nessa direção?

Isso. E aproveita para consertar uma coisa ou outra da primeira [LRF], que foi muito eficaz nos primeiros anos, mas depois voltou tudo para mais ou menos onde estava no começo. Talvez precisássemos apertar um ou outro parafuso no terreno das limitações de endividamento das unidades federativas. E outro assunto que aparece é: por que a União ficou fora das limitações de endividamento que valem para os Estados? Também é outra boa pergunta para a próxima lei complementar de responsabilidade ou de finanças públicas?

Isso deveria ser adotado?

É um tema bacana para discutir. E, veja, quando o Brasil utiliza o seu arcabouço constitucional orçamentário, que tem esse personagem que é a LDO, a Lei de Diretrizes Orçamentárias. É onde nós definimos a meta de superávit primário para o país. Mas no plano de contas do orçamento, que é ordenado pela Lei 4.320 de 1964, sequer existe o conceito de superávit primário. Precisa ajustar isso.

Agora, por que a LDO não determina algo sobre endividamento? Muitas vezes o Parlamento trata o endividamento como se fosse apenas uma outra fonte de recursos. Como se fosse a receita de um imposto. Só que não é. Ela é outra coisa. É uma oneração, não sobre alguém que está pagando o imposto no presente, mas sobre todos os nossos filhos e netos que vão ter que pagar essa dívida lá na frente. A gente trata como se essa dívida não tivesse que ser paga. Mas terá que ser.

Fora a questão fiscal, quais são os outros desafios mais urgente da agenda econômica?

Temos uma agenda de produtividade que precisa ser atualizada. Ela estava muito focada em abertura, privatização. São temas que são grandes demais ou estão parcialmente executados, como no caso das privatizações. A agenda de privatização tem a ver principalmente com concessões de serviços públicos. O que tem para privatizar de empresas públicas agora é diferente. Tirando as grandes estatais, as jóias da coroa, o resto são empresas que dão prejuízo. Por isso mesmo são difíceis de vender e ao mesmo tempo difíceis de manter. O que fazer com elas?

E isso em um país que já não faz mais investimento público porque o gasto corrente e social demanda muito recurso. Vide o número de obras paradas. O programa de concessões virou uma espécie de programa de transferência de responsabilidade de investimento para o setor privado. Que nome dar a isso? Não sei se isso é privatização. Os governos mais à esquerda não gostam. Mas aceitam. Na falta de dinheiro, tem que fazer por aí.

E além das privatizações?

No terreno da abertura, é um desafio. Porque é um tema que ninguém fala. Mas é difícil pensar em uma agenda de produtividade sem falar nisso. A agenda de produtividade também precisa trabalhar e precisa de discutir a reforma trabalhista. Talvez não do jeito antigo. Vários temas das reformas trabalhistas foram endereçados e resolvidos. Não creio que vai voltar o imposto sindical, por exemplo. Essa é uma distorção do passado, como o juiz classista, que também sumiu ao longo do caminho e ninguém quer que esses mecanismos retornem.

O que dá para fazer? Existe todo o problema da economia gig, de novas relações de trabalho. Ou seja, tem temas novos sobre os quais é preciso refletir. E quando falamos de abertura comercial, multinacionais e globalização, o panorama também é diferentes do que nos anos 90 quando essas agendas foram concebidas. Demorou muito para a gente voltar a conversar sobre esses assuntos todos.

E na questão da reforma tributária?

O que a gente tem pronta para votar é uma reforma dos impostos indiretos. É só uma parte do problema. Aí tivemos uma questão com a própria ideia de simplificação tributária. O absurdo é imaginar que se resolve a complexidade tributária brasileira, por exemplo, com um imposto único. Se fosse assim, a vida seria fácil. Só que não. Muito da complexidade do sistema tributário revela, na verdade, muitos anos de aprendizagem sobre como tratar dificuldades e peculiaridades tributárias de cada setor da economia.

Diferentes setores aprenderam coisas ao longo do tempo que estão nos códigos tributários. Nas regulamentações de leis tributárias. Não dá para achar que a gente pode jogar isso tudo fora, só para simplificar. Não é assim. A reforma dos impostos indiretos tem um pouco esse viés, de querer colocar tudo em uma camisa de força, de uma alíquota única, de um imposto único de valor adicionado, como se a gente soubesse medir valor adicionar direito para cada setor da economia brasileira, observadas as diferenças de cada um. Não é.

O que acontece é que a reforma trava. Sempre tem algum setor muito insatisfeito a ponto de jogar todas as suas energias em vetar o andamento da coisa. É que tem alguma coisa errada com a proposta. Só pelo fato de a gente não ter nunca conseguido votar uma coisa desse tipo, é que o projeto não está certo.

Falando dos seus novos livros, por que fazer o lançamento do “Antologias da Maldade 2″ agora?

O “Antologias” tem a ver com o sucesso do primeiro. E com o fato de que a gente, depois do primeiro, manteve manteve o método, eu e Fabio, de colecionar as barbaridades que as pessoas dizem nos jornais todos os dias, sabendo que um dia a gente junta todas e faz um volume como esse. A gente fez o volume dois, como pode fazer o três e o quatro. No primeiro, a gente teve mais ou menos 2 mil frases. No primeiro, já tinha uma coleção notável de frases de personagens como Churchill, Oscar Wilde, que são clássicos frasistas, mas também de Dilma Rousseff e uma porção de personagens do noticiário, às vezes personagens secundários, que são às vezes os que falam as coisas mais interessantes. A gente continuou a fazer isso no dois.

Claro que o contexto é diferente. Já que o primeiro tinha Dilma Rousseff, que tinha várias tiradas engraçadas. No segundo, tínhamos em seu lugar Jair Bolsonaro, que não é propriamente engraçado. Às vezes até procura fazer graça, mas é um humor completamente diferente. É difícil até de tratar como humor do mesmo jeito que tratou Dilma. Foi mais fácil trabalhar com o Paulo Guedes.

E no caso do livro “Cartas a um Jovem Economista”? Por que quis fazer essa nova edição?

O “Cartas” foi publicado originalmente em 2010 e ele era muito demandado por gente jovem, entrando na faculdade ou já na faculdade, em dúvida sobre a sua vocação. O livro estava esgotado. E 12 anos depois aconteceu muita coisa que alterou um pouco as perspectivas. Começando pela crise de 2008. No momento em que escrevi, a crise ainda estava fumegando. Estava longe de se aprender a real extensão da coisa, que a gente veio a entender alguns anos depois. Depois disso, no Brasil teve todo o drama das pedaladas, do impeachment, do petrolão, da recessão causada pela nova matriz macroeconômica, que trouxe de volta uma porção de fantasmas de escolas de pensamento e suas rivalidades aqui no Brasil. E, ao mesmo tempo, a política de metas de inflação se firmou. E, no terreno tecnológico, tivemos novidades avassaladoras das criptomoedas ao Pix, e essa pauta toda.

E uma das atrações do livro é uma história muito comovente do Gabriel Buchmann, que foi meu aluno e faleceu de forma trágica na África. Fizeram um filme sobre o episódio. Não estou no filme, mas no meio dessa viagem ele me mandava emails. Ele estava aplicando para um doutorado no exterior, para o qual ele foi aceito. Ele estava andando pela Ásia e depois pela África. E os últimos 20 dias da viagem dele são tratados num filme, um filme premiado, lindíssimo. É muito importante para que essa história sirva como uma fórmula de engajamento de jovens que querem escolher essa profissão.

O que são as reflexões principais nessa nova edição?

Esses temas novos trazem uma perspectiva sobre o que já tinha acontecido. E, ao reescrever, pude voltar ao Plano Real e para controvérsias lá de trás. Algumas pessoas achavam que a gente fez tudo errado. A âncora cambial era isso e aquilo. Está bem. Mas passaram-se 28 anos e está aí a criatura. A gente não pode parar de celebrar as coisas que funcionam e que a gente fez direito.

O senhor chegou a mudar de ideia em relação a algum ponto que estava na primeira edição do livro?

Não. Mas deu para preencher algumas lacunas. Esse livro tem a ver com a minha trajetória profissional. Pude escrever um pouco sobre como é trabalhar no sistema financeiro. Hoje tenho capacidade de escrever sobre as três vertentes da profissão. A acadêmica, a pública e a do setor privado, e o setor financeiro especificamente. Eu não tinha essas três experiências quando fiz o livro em 2010. Estava começando a experiência privada. Então ficou um livro mais completo para o jovem que procura essa profissão.

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Filipe Serrano

É editor da Bloomberg Línea Brasil e jornalista especializado na cobertura de macroeconomia, negócios, internacional e tecnologia. Foi editor de economia no jornal O Estado de S. Paulo, e editor na Exame e na revista INFO, da Editora Abril. Tem pós-graduação em Relações Internacionais pela FGV-SP, e graduação em Jornalismo pela PUC-SP.