O que o quiet quitting diz sobre o futuro das relações de trabalho

Se de um lado empresas estão demitindo, de outro há funcionários levando o trabalho menos a sério - mesmo com os temores de uma recessão

Volta aos escritórios e ao trabalho presencial ainda enfrenta resistência de uma parcela dos profissionais
24 de Setembro, 2022 | 08:07 AM

Bloomberg Línea — Quiet quitting. Ou desistir silenciosamente (ou fazer o mínimo no trabalho) em tradução livre. O que começou como uma tendência apenas no TikTok, com vídeos de jovens reclamando sobre a falta de equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, hoje reflete uma mudança geracional global, segundo especialistas.

O termo sugere que as pessoas cumpram com nada além do mínimo em seus trabalhos, sem mais esforços, e sucede outro movimento que teria começado na pandemia, o chamado the great resignation, a onda de demissões voluntárias de trabalhadores dispostos a não mais sacrificar a vida pessoal.

São movimentos que acontecem em um momento de preocupação crescente com uma recessão nas principais economias do mundo, com demissões em massa em diferentes setores.

Um dos mais afetados até aqui é o setor de tecnologia. Segundo dados em tempo real do site Layoffs.fyi, que contabiliza demissões em empresas de tecnologia ao redor do mundo, mais de 80 mil funcionários dessa indústria foram demitidos em 630 startups até aqui em 2022.

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Para o Brasil, o site contabiliza 3.341 demissões em startups neste ano.

Mas a insatisfação de trabalhadores não deve ser entendida como um fenômeno novo, segundo especialistas. Para Alexandra D’Azevedo, diretora de RH da Peers Consulting & Technology, esses são comportamentos e ambições antigas.

“Começamos a dar nome a coisas que já existiam. Este é um movimento geracional e tem nos ensinado sobre equilíbrio, sobre priorizar outras coisas que não sejam o trabalho”, afirmou.

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Equilibrando os pratos

Luiza Arieta, advogada especialista em Direito Tributário e Head de Pessoas e Projetos na Pact, plataforma de resolução para disputas empresariais e passivos judiciais, disse que o lado evidente do quiet quitting pode ser a falta de comprometimento do funcionário com a empresa, mas que, ao mesmo tempo, o movimento traz o que ela considera ser um diagnóstico que não deve ser minimizado.

“Durante a pandemia as pessoas descobriram que querem mais equilíbrio. Percebemos que o propósito e como somos vistos dentro da empresa importa muito, do onboarding ao momento de desligamento”, afirmou a advogada à Bloomberg Línea.

Para Regis Ataides, Head Of Business Development da Siemens Digital Industries Software, a pandemia também impulsionou a concorrência pelos mesmos profissionais entre empresas do mundo todo, em diferentes moedas, culturas e ambientes.

“Com tudo isso acontecendo, não queremos reter talentos, queremos sustentá-los. A fórmula para atingir isso é com cultura, diversidade, liberdade, reconhecimento e, claro, salário. É também preciso criar e ter um fluxo de geração de novos talentos”, disse.

Ataides contou que o modelo de trabalho híbrido na empresa existe há mais tempo. “O que fizemos no pós-pandemia foi reduzir postos de trabalho. Não por cortes, mas porque simplesmente as pessoas não querem mais ir ao escritório.”

Arieta, cuja empresa é especializada justamente na resolução de disputas, disse que, diante de mudanças de comportamento em curso, muitas companhias acabaram revendo estratégias. “Temos Japão e Alemanha testando rotinas semanais de menos dias de trabalho, e as primeiras notícias sugerem taxas de performance iguais, com melhor sensação de bem estar dos funcionários”, disse.

No Reino Unido, uma pesquisa divulgada nesta semana pela organização sem fins lucrativos 4 Day Week Global, em iniciativa com pesquisadores da Cambridge University, do Boston College e da Oxford University, mostrou os resultados depois de três meses (de um total de seis previstos), de um programa piloto que testa a jornada de quatro dias da semana trabalhados em mais de 70 empresas do país.

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Segundo os resultados preliminares, 78% dos líderes das empresas afirmam que a transição pode ser classificada como boa ou perfeita; e 88% declararam que o modelo está funcionando bem.

Há programas semelhantes em mais de 180 empresas em diferentes países.

De acordo com o relatório EY Work Reimagined 2022, da consultoria EY, com mais de 17 mil trabalhadores e 1.575 empregadores de 26 setores, em 22 países, trabalhar alguns dias em casa e outros presencialmente é a modalidade mais adequada ao momento que o mundo atravessa.

Dos 600 respondentes no Brasil, 53% disseram que preferem trabalhar de forma remota entre três e quatro dias por semana; no cenário global, foram 38%. Sobre o trabalho remoto de zero a um dia por semana, a preferência mundial foi de 20%, e de apenas 9% dos brasileiros.

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Outro relatório, da Atlantico, uma empresa de venture capital, sobre a transformação digital do mercado de trabalho da América Latina, mostra que o índice de satisfação dos funcionários é maior em empresas que permitem uma jornada em que a maioria da equipe pode trabalhar de forma remota.

Vanessa Cabral, gerente de Recursos Humanos do Banco BV (ex-Banco Votorantim), disse que a empresa começou a repensar os modelos de trabalho bem antes da pandemia.

O trabalho remoto foi liberado ainda em 2017 pela empresa, refletindo as mudanças nas relações que, segundo ela, não são exatamente uma novidade. “Faz tempo que as relações de trabalho estão mudando. Hoje nosso modelo preza a flexibilidade e traz o indivíduo para o centro.”

Em abril deste ano, o banco, um dos dez maiores do país, começou a operar com quatro modelos de trabalho diferentes para seus funcionários: presencial, flexível, remoto e o chamado virtualizado. Os modelos foram divididos entre as áreas de acordo com a necessidade das atividades que cada equipe exerce.

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Cabral afirmou que as mudanças nos modelos também são uma forma de reter talentos. “Nossa taxa de perda de talentos diminuiu 10 pontos percentuais nos últimos 12 meses, e nosso tempo médio de casa chegou a 7 anos.”

Mas esse ainda é um movimento concentrado em grandes empresas, pondera Arieta. “Quando falamos em Brasil, precisamos lembrar que o quiet quitting também ajuda a expor a precarização de vínculos trabalhistas. É impossível dissociar essa conversa do que é esperado sobre práticas ESG.”

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- Com informações da Bloomberg News

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Melina Flynn

Melina Flynn é jornalista naturalizada brasileira, estudou Artes Cênicas e Comunicação Social, e passou por veículos como G1, RBS TV e TC, plataforma de inteligência de mercado, onde se especializou em política e economia, e hoje coordena a operação multimídia da Bloomberg Linea no Brasil.